Matheus Gato, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é o responsável por duas relevantes publicações recentes no campo do pensamento brasileiro e das relações raciais. Ainda em 2020, o sociólogo lançou, pela editora Perspectiva, O massacre dos libertos: Sobre raça e República no Brasil (1888–1889), que recupera e analisa um violento episódio ocorrido em São Luís do Maranhão poucos dias após a Proclamação da República.
Curiosamente, foi pela Literatura que Matheus tomou conhecimento desse fato histórico, enquanto lia a obra de Astolfo Marques (1876–1918), escritor maranhense que recebe nova atenção dos leitores brasileiros com o lançamento de O 13 de maio e outras estórias do pós-abolição (2021), coletânea editada pela Fósforo.
Nesta entrevista, o sociólogo conversa sobre a relação entre esses dois trabalhos, avalia o papel da literatura na construção do mito da democracia racial no Brasil e aponta as nuances da posição intelectual de Astolfo Marques entre o fim do século XIX e início do século XX, período de que datam suas publicações reunidas no novo livro.
A editora Fósforo acaba de lançar O treze de maio, de Astolfo Marques, uma coletânea de contos do escritor maranhense organizada por você. No ano passado, o livro O massacre dos libertos, de sua autoria, saiu pela Perspectiva. Existe um diálogo direto entre esses dois trabalhos. Como se deu o processo de realização dessas obras?
Você tem toda razão: há um diálogo direto entre essas obras. Foi lendo o trabalho de Astolfo Marques, em especial, o romance A nova Aurora (1913), ainda em 2007, que tomei ciência do grande protesto de negros que culminou no chamado Massacre de 17 de Novembro, em São Luís do Maranhão, dois dias após a Proclamação da República no Brasil em 1889. Iniciei em 2008 meu mestrado em Sociologia na Universidade de São Paulo em torno da vida e obra do Astolfo Marques. Paralelamente, conduzi investigações sobre o massacre que findaram durante uma estadia de pesquisa na Universidade Harvard, no ano acadêmico 2017–2018, onde finalizei a redação do livro.
O fuzilamento dos manifestantes que, segundo as fontes, temiam que a mudança de regime político pudesse levar à reescravização da gente negra é o tema do livro O massacre dos libertos. Me pergunto, nessa obra, como esses eventos ajudam a compreender a transformação de uma sociedade cindida entre escravizados e cidadãos numa República dividida entre brancos e negros. Também interrogo por que na periferia do país a reestruturação das hierarquias sociais e econômicas no imediato pós-abolição deu vazão a um protesto de rua seguido de brutalidade e violência.
Costumo dizer que Astolfo Marques foi um dos orientadores dessa pesquisa, pois seu olhar é decisivo para compreender os impasses do pós-abolição no Brasil. Essa é a razão pela qual decidi organizar essa antologia dos contos dele, O 13 de maio e outras estórias do pós-abolição, no qual processos históricos, como a abolição e a República, são narrados de um ponto vista popular e com acentuado protagonismo da gente negra, algo raro na chamada história oficial.
Em que momento você decidiu trazer os textos literários para a sua metodologia sociológica?
Sou de uma geração de pesquisadores e intelectuais negros que compuseram a mobilização por ações afirmativas e políticas de cotas nas universidades brasileiras. Do meu ponto de vista, a diversificação do quadro discente do Ensino Superior deveria implicar em políticas do conhecimento, isto é, repensar os cânones da sociologia mundial a partir de figuras como W. E. B. Du Bois (1868–1963), aprofundar o entendimento das implicações da raça na formação da desigualdade social, interrogar o chamado pensamento social brasileiro a partir do trabalho de intelectuais afro-brasileiros e investigar se a produção cultural destes permite uma narrativa diferente sobre como se formou a sociedade brasileira moderna, ou seja, atentar aos processos de racialização. Foi isso que a leitura de Astolfo Marques me permitiu realizar na interpretação do Massacre de 17 de Novembro.
A partir daí começou a chamar minha atenção o modo como a produção literária e artística de autores negros, especialmente na Primeira República, período em que concentro minhas investigações, era uma alternativa epistemológica de interpretação. Fatos, eventos e perspectivas rasurados de nossa história e que ampliam nossa compreensão da sociedade brasileira estão presentes no trabalho de intelectuais e artistas como Manuel Querino, Nascimento Moraes, Hemetério dos Santos, Lima Barreto, Arthur Timóteo, Benjamim de Oliveira e tantos outros sobre os quais, com raras exceções, conhecemos tão pouco.
De que modo a literatura serviu de suporte para o mito da democracia racial no Brasil?
Muito do que é a visão do Brasil como “país mestiço”, “tropical”, da “fusão de raças”, da “democracia racial” foi elaborado pela literatura. Isso é evidente em alguns modernistas de São Paulo, como Oswald e Mário de Andrade. Mas também é importante para o chamado “romance nordestino”, em especial para o forte impacto literário e comercial da obra de Jorge Amado no mercado de livros e na televisão. Aquela Bahia desigual, mas profundamente sincrética em termos culturais, organiza um certo imaginário do país onde diferentes raças conseguem conviver em relativa harmonia a despeito de todos os problemas sociais.
Um caso que sempre me chamou atenção e que foi importante na pesquisa sobre o Astolfo Marques é o do romancista Josué Montello (1917–2006) na obra Os tambores de São Luís (1975), sobre o século XIX no Maranhão. Ele possui uma narrativa sobre a democracia racial que se apropria de Casa-grande & senzala, clássico de Gilberto Freyre, de um modo muito particular. Para o autor recifense, a matriz de uma certa “democracia social e étnica”, termos dele, é a organização da família patriarcal no período colonial.
Josué Montello, que sempre afirmou concordar com o ponto de vista freyriano, em sua narrativa, o transformou profundamente. Ele caracteriza a escravidão como um momento de profundo antagonismo de classes e raças e pontua a abolição como o momento chave de consolidação da democracia racial. No livro, a existência de um intelectual como Astolfo Marques atuando na Primeira República aparece como prova da harmonia racial no país. Nesse sentido, as apropriações literárias da ideia de democracia racial foram diversas e precisam ser estudadas caso a caso, com atenção às regiões e lugares caracterizados, às filiações estéticas e à história social dos escritores.
Paulo Lins afirma no prefácio de O 13 de maio… que “o regionalismo não existe, nunca existiu”. Você também dedica algumas páginas à análise da recepção crítica de Astolfo Marques enquanto “regionalista” e “popular”. De que forma essa categorização contribui para a leitura ou o apagamento desse autor no contexto da história literária?
Penso que o Paulo Lins quis firmar posição ao lado de outros escritores negros contemporâneos de prosa, como Itamar Vieira Junior, de que o universo descrito por um autor, por mais localizado que seja, não pode reduzir suas possibilidades de interpretação. No sertão de Guimarães Rosa cabe a humanidade inteira. Concordo com esse ponto de vista. Será que na periferia da chamada “literatura periférica” não há uma visada sobre os impasses das grandes cidades do mundo global? Algo relevante para qualquer leitor nos dias de hoje? Entretanto, de um ponto de vista histórico, é a voga do chamado regionalismo, no final do século XIX, que possibilitou ao Astolfo Marques encontrar um lugar junto a outros intelectuais do seu tempo. Foi assim que ele foi recepcionado como um autor importante em sua cidade ao escrever um livro que chamou de A vida maranhense (1905). Ou seja, isso tinha um valor para ele. Mas aí já estão presentes os constrangimentos do sistema literário brasileiro, dividido inicialmente, como bem mostra Antonio Candido, entre a Corte e as Províncias; e depois, na Primeira República, entre a capital, o Rio de Janeiro, e os demais Estados.
A “região” parece conformar o quinhão e a matéria legítima destinada ao “intelectual de província”, menor, sem posição nos grandes centros culturais do país, onde se tem legitimidade para falar em termos “nacionais”. Assim, podemos dizer que classificações como “regional”, “pré-moderno”, “provinciano”, muitas vezes, internalizam as hierarquias sociais que organizam o mundo intelectual brasileiro. E isso reduz a possibilidades de leitura de uma obra. Todo o meu trabalho na seleção dos textos e organização do livro O 13 de maio e outras estórias do pós-abolição foi produzir uma visão sobre a obra do Astolfo Marques que confrontasse essas categorizações reificadas e oferecesse ao leitor outras possibilidades de leitura.
O escritor reeditado é frequentemente reconhecido por sua diligência e ascensão, mas também caracterizado por sua aversão a conflitos e discrição. Você acredita que, em alguma medida, as estratégias conciliatórias de Astolfo Marques foram contraproducentes para a afirmação de uma classe intelectual negra? Como você observa essa complexidade à luz da época?
A posição que o Astolfo Marques ocupava no meio intelectual de São Luís era muito frágil. Ele não possuía o diploma do Liceu Maranhense, teve uma errática escolarização formal, e era conhecido enquanto autodidata. Os melhores empregos que conseguiu, todos no segundo ou terceiro escalão do funcionalismo público, “secretário disso”, “amanuense daquilo”, foram cargos de indicação e confiança. Era uma posição bastante subordinada. Seria improvável que ele construísse uma atuação pública que ameaçasse suas possibilidades de existência e expressão intelectual. Aqueles intelectuais dispostos ao confronto aberto de ideias também não fazem isso; sua crítica, no mais das vezes, não os coloca em risco, salvo raras exceções.
Por outro lado, é preciso dizer que na Primeira República em geral, e no Maranhão em particular, as possibilidades de consagração intelectual são controladas pela oligarquia política. Assim, as coerções que pesam sobre Astolfo iluminam um problema enfrentado por todos os escritores maranhenses do período, sua dependência das prebendas da elite dirigente.
Além disso, os intelectuais negros do período não se pensavam como um “grupo” ou uma “classe intelectual negra” como nos dias hoje. Muito do seu esforço era para que fossem percebidos como escritores e artistas genuinamente brasileiros, sem referência a sua cor e origem social. Assim, quando olho para o Astolfo Marques, o que chama atenção é o caráter improvável de trajetória como escritor, a despeito do seu perfil discreto e alheio às polêmicas.
O uso da oralidade na composição dos contos é algo que chama atenção nesse livro. Um aspecto que pode ter sido apontado por críticos da época como puramente descritivo, mas que tem uma potência estilística enorme no contexto da literatura contemporânea. De que modo este lançamento reposiciona e atualiza o legado de Astolfo Marques?
A oralidade é um dos elementos mais emblemáticos dos contos do Astolfo Marques. Ele traduziu as percepções das pessoas comuns, e dos negros em particular, com as palavras, categorias e formas de expressão existentes no meio popular. De certa maneira, é como se ele obrigasse o código erudito, literário, a se ver com esse outro mundo de vida e experiência.
A pesquisa de Regina Dalcastagnè (UnB) [Literatura brasileira contemporânea: Um território contestado, de 2012] mostrou como nos últimos quarenta anos o perfil dos autores e personagens de romance é, majoritariamente, homem, branco, morador de São Paulo e do Rio de Janeiro. Penso que a literatura do Astolfo Marques pode ser um ponto de partida e inspiração para todos aqueles que pretendem dirigir sua imaginação em outras direções. É nesse sentido, creio eu, que podemos concordar com o Paulo Lins quando o qualifica como um clássico de nossa literatura.
No texto de abertura do livro, você pontua que os registros relativos a Astolfo Marques levam a “arquivos mal guardados, revistas esquecidas, jornais podres e quebradiços, livros nunca reeditados”. Poderia citar outros escritores e literatos negros maranhenses nessa mesma condição de apagamento?
O caso mais escandaloso é o de José do Nascimento Moraes (1882–1958). Ele escreveu um romance incrível chamado Vencidos e degenerados (1915) sobre a reestruturação das hierarquias sociais e raciais nas primeiras décadas do século XX. A pergunta que consta nesta obra é: por que a abolição e a República falharam em estabelecer um contrato social fundado na liberdade e na igualdade; em suas palavras, falharam em “fazer do preto cidadão”. Ele revela que o período do imediato pós-abolição é um momento no qual os negros livres antes do 13 de Maio enfrentam fortes barreiras raciais e vivem experiências de declínio social.
Nascimento Moraes elaborou também uma leitura muito original da dialética do senhor e do escravo, inserindo a figura do feitor como o personagem central. O feitor aparece como alegoria de um país onde o trabalho não dignifica pessoa alguma e consiste numa atividade degradada, permeada de violência e humilhação, destinado a pessoas cujo estatuto de humanidade é constantemente ameaçado pela miséria e a cor. Daí adviria uma estranha experiência do tempo naquele Brasil de começos do século XX, experiência de transformação sem mudança e de liberdade sem genuína emancipação.