Faz pouco tempo que o Brasil alcançou a marca de 600 mil mortes por covid-19. Quase ao mesmo tempo, o filósofo Fábio Luís Franco (foto) lançou o livro Governar os mortos: Necropolíticas, desaparecimento e subjetividade (Ubu Editora). A obra discute o surgimento de certos “mecanismos de desaparecimento”, primeiro na Alemanha nazista, depois nas guerras de independência da Indochina e da Argélia para, enfim, chegar às ditaduras latino-americanas. O filósofo toma como base depoimentos de militares e algumas pesquisas sobre os regimes citados, acrescentando que os mecanismos estariam presentes não apenas nos tempos já mencionados, mas igualmente em casos modernos — a exemplo do governo Bolsonaro.
Mestre e doutor em Filosofia pela USP, com atuação intelectual nas áreas de Filosofia e Psicanálise, Fábio Franco expande, nesta entrevista ao Pernambuco, alguns dos tópicos do seu livro e discute a possibilidade de apropriação do desaparecimento como luta contra a repressão; também comenta sobre as milícias no Brasil e sua relação com os mecanismos de desaparecimento. Por fim, fala sobre a permanência de Bolsonaro no poder apesar da maneira como lidou a pandemia.
Em Governar os mortos, você fala sobre as estratégias de desaparecimento criadas pelos franceses nas guerras de independência, que foram ensinadas aos latino-americanos e aplicadas em nossas ditaduras. Em um momento, falando sobre como o desaparecimento de corpos não se restringe apenas às ditaduras, você diz que “governar é fazer desaparecer.” É possível governar sem fazer desaparecer?
A sua pergunta me permite explicitar algo a respeito do livro. O desaparecimento pode ser uma tecnologia extremamente necessária para a insurgência. Por exemplo, se não desaparecessem nos arrozais da então Indochina Francesa, os combatentes do Việt Minh [Liga pela Independência do Vietnã, criada em 1941] talvez não tivessem conquistado dos franceses sua independência. Enquanto uma técnica, o desaparecimento pode tomar parte em dispositivos que se orientam pelo enfrentamento à dominação colonial e capitalista, ao imperialismo. Nesse sentido, talvez a luta anticapitalista exija a astúcia do desaparecimento contra a repressão — como, aliás, vêm mostrando diversos movimentos.
No entanto, o que procurei analisar no livro foi o processo de montagem de um dispositivo de gestão dos corpos mortos como elemento central da expansão, exploração e domínio capitalista. Em outras palavras, busquei sustentar que os cadáveres não são meros resíduos da máquina capitalista de produção da morte em larga escala; eles estão no centro das tecnologias capitalistas de domínio e controle dos vivos.
Nesse sentido, modificando a frase da pergunta, eu diria que, sob o capitalismo, é impossível governar sem gerir a morte e os mortos visando ao desaparecimento de alguns. Isso se explicita nas guerras contrarrevolucionárias por meio das quais os impérios capitalistas quiseram conservar seu governo sobre as populações coloniais, produzindo o desaparecimento das pessoas, dos cadáveres, das informações e de dimensões do próprio exercício do poder.
No capitalismo neoliberal, a contrarrevolução se converteu em forma permanente de governo, lançando mão das tecnologias de guerra forjadas em outros contextos e épocas. A rebelião contra essas formas de governar por meio do desaparecimento me parece exigir o desaparecimento estratégico dos movimentos insurgentes, o que se torna ainda mais premente considerando a máxima visibilidade que decorre da apropriação algorítmica da vida pelo poder. Ademais, isso coloca para o campo das esquerdas uma questão incontornável: qual forma de gestão dos cadáveres queremos criar no âmbito das lutas contra o capitalismo global?
No começo do segundo capítulo, você cita o relato de um militar sobre essa estratégia importada de não apenas matar o indivíduo mas também esconder o corpo. Em seguida, afirma que a tática persiste hoje como “‘um novo modo de governar, inspirado pela teoria e prática da guerra de contrainsurgência’, que opera permanentemente, quer haja uma insurgência ou revolução, quer não”. Você sente que há revolução e insurgência hoje no Brasil?
Certamente que sim! Há incontáveis insurgências acontecendo em múltiplas escalas e regiões do país. Das recentes insurreições mobilizadas por diferentes etnias indígenas contra a aprovação do Projeto de Lei 490/2007 [baseado na tese do “marco temporal”, que afeta a demarcação de terras indígenas], passando pelas centenas de ocupações urbanas espalhadas pelo Brasil, à atual onda dos breques dos aplicativos, catalisados por entregadores que trabalham para as empresas-aplicativos em São José dos Campos, São Carlos, Jundiaí, Paulínia — se estendendo, agora, para Niterói (RJ) e outras cidades. Esses são alguns exemplos de como há muitas insurgências abrindo “buracos de toupeira”, para usar a feliz metáfora inventada pelo pessoal do site Passa Palavra [passapalavra.info] para significar a potência das lutas anticapitalistas de criar caminhos, refletir sobre eles e sobre como podem servir a outras insurgências.
Aliás, retornando à pergunta anterior, a metáfora da toupeira não deixa de envolver uma dimensão estratégica do desaparecimento, na medida em que alguns caminhos, fluxos, circulações se constroem subterraneamente, em silêncio e longe das exposições midiáticas, para, então, irromper no meio das ruas e campos.
Durante parte da narrativa de como se davam os desaparecimentos nas ditaduras latino-americanas, fiquei com a impressão de que, à parte os ensinamentos militares franceses e norte-americanos, a questão dos desaparecimentos chegava a ser mais estrutural do que institucional. Está correto esse raciocínio?
O desaparecimento é estrutural desde que se o entenda como uma verdadeira racionalidade de governo contrarrevolucionário, articulando diferentes instituições, saberes, práticas, rotinas burocráticas, legislações e agentes. Por exemplo, o desaparecimento na ditadura brasileira não pode ser corretamente identificado a uma única instituição, nem, tampouco, a uma estratégia isolada e, como querem alguns, secundária da repressão. Ao contrário, para a ditadura empresarial-militar brasileira, o desaparecimento funcionou como uma lógica de governança social, que implicava instituições de perícia, hospitalares, cemiteriais e de segurança, regulamentações e técnicas diversas de ocultação de cadáveres.
Além disso, ao mesmo tempo que produzia milhares de corpos não-identificados, o desaparecimento se ocupava da ocultação do próprio poder ditatorial, com seus agentes infiltrados, equipamentos clandestinos, políticas de contrainformação etc. Insisto que o desaparecimento também interessa na medida em que ele funcionou como a engrenagem principal dos dispositivos necrogovernamentais forjados no contexto das guerras contra as revoluções coloniais e serviu para estruturar o imperialismo estadunidense ao longo da Guerra Fria.
Sobre a ocupação dos militares franceses na Argélia, você cita o general Jacques Pâris de Bollardière (1907–1986): “o Exército, pouco a pouco, conquistou, um após o outro, todos os instrumentos do poder, aí compreendido o judiciário, e se tornou um verdadeiro Estado no Estado”. Fugindo um pouco ao tema do seu livro, você acha que há alguma relação entre essa situação e a das milícias no Brasil?
Eu já disse em alguns lugares que, se eu fosse escrever um novo capítulo para o livro, ele deveria tratar das milícias. Há uma evidente cadeia de transmissão entre os dispositivos de desaparecimento desenvolvidos no contexto das guerras contrarrevolucionárias, o desaparecimento administrativo produzido pelas instituições de gestão dos mortos no Brasil, e as milícias. O argumento, certamente, precisa ser desenvolvido e aprofundado, mas, para começo de conversa, e aproveitando o ensejo da sua questão, tudo começa quando alguns militares e policiais brasileiros viram nas bancas de jogo do bicho a oportunidade de dar continuidade ao seu projeto de poder e de ganhos financeiros ilícitos.
Em uma brilhante pesquisa sobre o jogo do bicho no Rio de Janeiro, publicada no livro Os porões da contravenção (Record, 2015), Aloy Jupiara e Chico Otávio dão nome aos bois: dois dos principais centros de tortura do [estado do] Rio de Janeiro — o DOI, da Rua Barão de Mesquita (zona norte da capital), e a Casa da Morte, em Petrópolis — forneceram muitos agentes militares para o jogo do bicho, dentre os quais [o coronel] Paulo Malhães (1937–2014).
É evidente que esses agentes de segurança levaram, para o serviço que prestavam ao expansionismo dos bicheiros, os conhecimentos, as técnicas, as conexões institucionais e a racionalidade de guerra apreendida e desenvolvida nos quartéis, delegacias e centros clandestinos de execução. Do jogo do bicho para as milícias, novamente a história é complexa, mas muito bem mapeada por pesquisas como a de Bruno Paes Manso em A república das milícias (Todavia, 2020).
Certo é que essas utilizaram da mesma racionalidade necrogovernamental “desaparecedora” para dominar e controlar seus territórios. Governar a morte no sapatinho — para citar o livro homônimo de Ignacio Cano e Thaís Duarte (Fundação Heinrich Böll, 2012) —, isto é, a violência escondida das milícias, que não exibiam os cadáveres porque desapareciam com eles, é um novo capítulo dos dispositivos de desaparecimento.
Você fala, no post-scriptum do livro, que Bolsonaro utilizou uma estratégia de naturalizar a morte por covid a fim de eximir a gestão federal de culpa. Levando em consideração a queda da popularidade dele à medida que o número de mortes oficiais avança (passamos de 600 mil), é possível dizer que ele falhou em se livrar da responsabilidade, apesar de continuar presidente?
A resposta para essa questão não é simples. Primeiro, acho importante separarmos as coisas: a queda da popularidade do presidente pode ter relação com a condução da pandemia pelo governo federal, mas não diria que é seu motivo único nem, tampouco, um índice de que a estratégia que descrevo falhou.
Por um lado, o que chamo de “naturalização da morte” atinge, certamente, os óbitos por covid-19 e vão muito além deles, incidindo sobre outros mortos, tais como os negros periféricos, os indígenas, as mulheres. Não é difícil encontrar nos discursos oficiais procedimentos que visam à produção de uma sensibilidade social a respeito da inevitabilidade dessas mortes, seja porque, por exemplo, alguém era investigado pela polícia ou porque estava ameaçando a propriedade privada de fazendeiros.
Além disso, os procedimentos de naturalização das mortes, tal como se deixa identificar no caso da covid, são múltiplos e articulados. Eles envolvem a “sobrerresponsabilização” moral do indivíduo por sua própria morte para desresponsabilizar o Estado, a desqualificação sistemática de dados e indicadores, a crítica aos movimentos sociais que protestam exigindo justiça etc. Essas estratégias compõem os dispositivos necrogovernamentais regulares do neoliberalismo autoritário brasileiro e, lamentavelmente, continuam funcionando muito bem.
Por outro lado, não obstante o que tem sido trazido a público pela CPI da covid, pela imprensa e por outros setores sociais, as estratégias de imunização do presidente seguem surtindo efeito ao menos para aquela parcela da população que permanece fiel ao seu ídolo. Isso porque, como vem investigando a pesquisadora e professora Letícia Cesarino (UFSC), as redes sociais bolsonaristas funcionam intensificando a entropia, isto é, o caos informacional, para o que contribuem os influencers ligados ao Governo Federal.
O resultado disso é, por um lado, manter as suspeitas conspiratórias sobre as mortes por covid e sobre a gravidade da pandemia, e, por outro lado, alterar as percepções a respeito dos posicionamentos presidenciais sobre o coronavírus, ora suavizando-os sob a rubrica da brincadeira, da ironia, ora fortalecendo-os, quando é o caso de insuflar grupos específicos do ecossistema bolsonarista. Não por acaso, como disse, o presidente conserva popularidade; ela é suficiente para segurar seu impeachment e produzir um clima de tensão permanente no país.