Nilton Resende Entrevista nov.21 Divulgação

 

Nilton Resende tem buscado compreender a superestimação e desencanto das palavras na era da pós-verdade, quando elas parecem estar cada vez mais dispersas e flutuantes. Escritor, poeta, editor, diretor de cinema e teatro, ator e professor da Universidade Estadual de Alagoas (Uneal), autor de Diabolô (2011, contos), A construção crítica de Lygia Fagundes Telles (2016, não ficção) e O orvalho e os dias (2019, poesia), Nilton lança seu primeiro romance, Fantasma (2021). Fruto de um processo narrativo sobre essa opacidade e desencarnação da palavra, o livro trata de um quarto de hospedaria, no qual há um ente não-humano formado pelos resíduos de todas as pessoas que estiveram por lá. Lançada em meio ao isolamento da pandemia de covid-19, a obra faz parte de uma investigação mais ampla sobre a fantasmagoria que vem sendo construída há quase uma década, e que resultou também em A barca (2019), curta-metragem adaptado do conto homônimo de Lygia Fagundes Telles — sua amiga pessoal, mentora espiritual e literária.

“Preciso voltar e olhar de novo aqueles dois quartos vazios”, diz um poema Ana Cristina Cesar, em A teus pés (1982). Ele poderia ilustrar um dos grandes desastres urbanos do Brasil dos últimos anos: cerca de 40 mil pessoas e inúmeras casas vazias na região de quatro bairros fantasmas que se forma em Maceió (AL), resultado de um desastre socioambiental causado por uma gigante corporação internacional. Na literatura do alagoano Nilton Resende, as imagens de Maceió e o retorno aos quartos vazios ecoam de forma involuntária, e são uma metáfora para um jogo de incompreensão, de incertezas e zonas cinzentas no fazer artístico ao qual o autor se lança.

Em entrevista ao Pernambuco, Nilton fala sobre o fantasma como gesto literário, sobre Lygia Fagundes Telles, o lugar do roteiro adaptado da literatura e acerca da narração enquanto incerteza.


Acredito que a sua produção mais recente — tanto o romance Fantasma (2021) quanto o curta-metragem A barca (2019) — está debruçada sobre o signo da fantasmagoria. Como você pensa as possíveis potências do fantasmagórico como metáfora e imagem contemporânea?

A relação com a fantasmagoria é algo que tem aumentado em mim. Cada vez mais tenho me afastado das certezas. Outro dia falei para uns alunos meus que estava cansado de entender e explicar obras literárias, queria que meus alunos, e eu mesmo, nos deparássemos mais com o mistério dos textos. Trepar com a obra, e não ficar vendo a trepada que algum teórico teve. Um afastamento da ideia de que temos que virar obras do avesso. É como se eu quisesse um mistério: algo que a gente enxerga, mas talvez não esteja ali. Assim como algo que está ali e a gente não enxerga.

Tanto o romance quanto o curta dialogam com isso: o não entendimento e incapacidade de apreensão. Existem fantasmagorias e fantasmagorias, e fantasmas e fantasmas. Nós nos tornamos fantasmas, porque há uma distância muito grande entre nossa consciência e o nosso agir. Principalmente nas redes sociais e nessa pandemia. Sempre me interessou muito essa coisa diabólica. E o fantasma do livro é uma consciência, mas que não tem um corpo à altura. Isso porque, acredito, existe uma superestimação da palavra nos nossos tempos. Nos deram a palavra e tiraram a ação. A nossa relação com a palavra é mágica, funda realidades. Mas, me parece, estamos crendo demais no poder dela. Perto do golpe contra Dilma, em 2016, todo mundo gritava: “não vai ter golpe, vai ter luta!”. Eu ficava furioso com isso. Parecia que enunciar essas palavras era uma fórmula mágica. E a nossa palavra não está encarnando, sem corpo à altura e sem lugar no mundo.


Em Fantasma, que é narrado em fragmentos, há um jogo poderoso entre a melancolia e os não lugares criados por esse tom de assombração, de frases que adentram outras frases como uma intervenção espectral. Como foi o processo de construção desse romance?


Eu acho que no romance há melancolia e alegria, porque essa personagem está descobrindo o outro. O livro começou a ser pensado em 2012 e a ser escrito em 2014. A personagem é essa, mas os motores dela se tornaram outros, e os meus também. Nos últimos anos, tentei bastante destronar a razão do centro da minha vida, de uma forma que os afetos e a razão reinem [juntos] na sala. Assim como o fantasma não sabe o que é dele e o que é dos outros que já passaram pelo quarto, nós na literatura não sabemos o que é nosso e de outrem. Eu quis escrever uma metaliteratura sem explicitar isso.


Vê-se rastros de Lygia Fagundes Telles em seus trabalhos: em Fantasma, em A barca, no livro contos Diabolô e em A construção crítica de Lygia Fagundes Telles. Ela parece ser um espectro que atravessa sua obra. Quais traços de Lygia você vê no seu trabalho, sobretudo em Fantasma?

Todo artista tem um momento em que perde a inocência com o fazer artístico. Isso se deu comigo a partir da relação com Lygia e com a leitura, principalmente, de Vera Maria Tietzmann Silva, para mim, a grande especialista de Lygia no país. Mas eu lia e não sabia por que era fascinado por aquela obra. Depois, fui percebendo que há mais coisas na obra do que estava aparente na superfície, como existem em várias outras grandes obras literárias. Fui descobrindo que meu fascínio era por uma identificação com as personagens. Minha relação com a minha mãe foi salva pelo conto A medalha [do livro A estrutura da bolha de sabão, de 1991], porque não queria que o que aconteceu entre Adriana e sua mãe acontecesse comigo e minha mãe.

Me fascina demais o narrador. Em cada história de Lygia, o “para além da história” não é apenas o “para além dos personagens”. Lygia tem uma definição de conto que eu amo: “o conto é a fotografia de uma árvore e há alguém atrás da árvore”. Há uma outra história da narração: uma qualidade que não se evidencia. Para escrever Fantasma eu lembrava muito de As horas nuas (1989) e do conto Anão de jardim [do livro A noite escura mais eu, de 1995]. Porque o anão tinha consciência e um corpo de pedra que não era à altura dela; e o gato sonhava com o homem, como o homem sonha com Deus. E é essa busca do como narrar e da ambiguidade, da incerteza e da não apreensibilidade do outro que aparece na minha obra. Assumir o cotidiano como parte de um mistério.


Em entrevistas, você lembra sua relação pessoal com Lygia e, também, com Hilda Hilst (1930–2004). Inclusive, sobre como Hilda aconselha a se especializar em adaptações. Qual foi o impacto do contato com as duas para sua formação? Alguma lembrança marcante desses encontros?


Eu comecei a me corresponder com Lygia quando tinha 16 anos de idade. Já Hilda, conheci quando tinha 20 anos e fui apresentado por Lygia. Hilda foi quem me falou que eu tinha talento para adaptações, e eu queria ser escritor, diretor, roteirista e um monte de coisas. Eu fiquei meio frustrado, como se o adaptador fosse alguém que não conseguisse escrever e só trabalhasse em cima da obra dos outros. Na cabeça de um garoto de 20 anos, soava muito como comer as migalhas que caíam da mesa de alguém (risos). Hoje não sinto mais isso. Na verdade, adaptar e construir roteiro é uma outra arte.

Houve momentos marcantes, com cada uma delas. Cada uma tinha seu lugar: Hilda foi uma herdeira, que pôde construir a Casa do Sol com a herança; Lygia trabalhou até a aposentadoria como procuradora do estado de São Paulo. Lygia sempre me presenteava muito, todo Natal, inclusive uma edição de Concerto no fim do inverno (1991), de Ismail Kadaré, que ela ganhou de Caio Fernando Abreu, gostou muito e me deu. É como se Lygia me botasse no chão, porque ela sabia que vinha de família pobre. Lembro que ela ficou meio aliviada quando voltei para Maceió, porque sabia que estava difícil em São Paulo. Em todas as ligações ela sempre começava com: “como está o emprego?”.

Com a Lygia teve uma conversa bem forte, em 1991, quando eu telefonei para ela, numa cabine da Telesp [antiga operadora de telefonia no estado de São Paulo] próxima à pensão em que eu morava na Brigadeiro Luís Antônio [na capital paulista]. Eu disse: “Lygia! Hilda me convidou para morar na Casa do Sol”. Ela retrucou: “É mesmo Nilton? Olha que interessante… o que você vai fazer lá?”. Eu disse que ia ler e escrever. Então ela me disse: “Que interessante… mas deixe de romantismo e me responda uma coisa: quando a sua cueca rasgar, quem é que vai comprar outra pra você?”. Aí todas as fichas caíram, as do orelhão e da minha cabeça (risos). Porque ela sabia que a minha família não poderia me sustentar. Eu não tinha noção nenhuma de classe, agia como adolescente e Lygia me deu um tapa. As duas são minhas mães literárias: minha prosa nasce da prosa de Lygia e a poesia [nasce] de Hilda.


Desse conselho de trabalhar com adaptações, entendo que foi construída uma carreira em que os gestos literários são muito arejados em outras linguagens. Inclusive, o próprio livro Fantasma tem dramaturgia muito forte e linguagem muito fugaz. Você, além disso, trabalha com cinema e teatro. Como você entende esse arejar de linguagens na sua obra?


Acho que na arte sempre gostei muito da criação de personagens. Por muito tempo me cobraram muito sobre escolher alguma coisa. Eu tenho sol em gêmeos, ascendente em gêmeos, mercúrio em gêmeos e lua em libra. Então o humano me fascina demais, nossas fragilidades. Presto muita atenção nas pessoas. O atravessamento dessas linguagens se dá pela necessidade que há de tentar dar conta de nós. E uma linguagem apenas não daria conta. Há obras que penso que só no teatro poderia fazer, outras só no cinema. Então cada coisa me pede um formato.

Tive vontade de escrever, como se fosse o que restou para um menino tão tímido e medroso quanto eu. A literatura me veio como o que sobrou para um covarde. Mas não posso me chamar de covarde porque havia violência demais sobre mim.


Você está trabalhando no roteiro de um longa-metragem baseado na obra de Lygia Fagundes Telles, chamado Edifício Lygia. Pode falar mais sobre o filme?


Eu tenho uma lista de projetos que são adaptações de obras literárias. Curtas, longas, minisséries. Seja por personagens que me fascinam, ou pelo desejo de executar no cinema alguma cena em específico. O Edifício Lygia é um projeto que sonho por muito tempo, que pra mim é uma representação microcósmica da obra dela e uma representação de como são complexas nossas relações de afeto domésticas. O projeto tem como textos base três contos: A medalha, Antes do baile verde [do livro homônimo, de 1970] e Emanuel [publicado em 1980]. Ele se passa em um desses prédios tão comuns nas periferias, com três andares e ele se chama Edifício Lygia, onde mora uma senhora chamada Lygia. Neste prédio moram mulheres que são uma fusão de personagens lygianas. Ele se passa num único dia, na sexta-feira de Carnaval. São mulheres em situação limite e sentem a necessidade de dizer “não” ao atual estado de coisas e se valem do que está disponível a suas mãos. Elas precisam dizer “não” para sobreviverem. É como se de certo modo o [lado] instintivo e o animal dentro delas tivesse irrompido.

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