Entrevista Omar Salomão Divulgação

O risco como método é o que move os processos criativos de Omar Salomão. Averso a categorizações, ele transita por diferentes campos, como as artes visuais, literatura, música e a pesquisa acadêmica, criando pontes entre eles. Este modo holístico de enxergar a vida está impresso em todas as suas atividades e foi o que guiou seu trabalho mestrado, realizado na PUC-Rio, e cujo resultado foi publicado no livro Flutua sobre as ruínas, flutua (Editora Cobogó). O trabalho investiga a obra de seu pai, Waly Salomão (1943-2003), do alagoano Edgard Braga (1897-1985) e de Mira Schendel (1919-1988), artista visual suíça radicada no Brasil.

Com projetos artísticos distintos, os três compartilham um interesse investigativo pelo limiar entre o plástico e o poético da palavra. Esse processo instiga Omar não só como pesquisador, mas também como artista. Poeta – publicou os livros Pequenos reparos (José Olympio, 2017) e Impreciso (Dantes, 2011) – artista visual, designer, cenógrafo e compositor, ele opera em um processo de tentativa e erro, de se lançar no caminho sem vislumbrar um ponto de chegada, observando o que há nas margens e como diferentes mídias e afetos podem influenciar a criação e o pensamento.

Em entrevista ao Pernambuco, Omar fala sobre como a universidade pode ser repensada através da liberdade para errar, discute seus modos de criação, fala sobre a influência do pai e o seu atual trabalho com Gal Costa.

 

Este livro é o resultado da sua pesquisa de mestrado. É um trabalho que expande a perspectiva tradicional sobre o que um trabalho acadêmico pode ser. Gostaria que você falasse sobre as experimentações que te levaram para este formato de texto.

Fiquei um tempo fora da universidade – só retornei uns seis, sete anos depois que me formei. As pessoas geralmente emendam graduação com mestrado. Estava tentando me encontrar em outros lugares, trabalhando com arte, com literatura, várias coisas. Voltei por conta desse programa, que existe na PUC-Rio, que trabalha uma relação entre criação e produção. O trabalho não é muito linear e acho que é justamente isso o que me instiga. A academia nunca me instigou por ser um lugar de certeza, o domínio da segurança, tratando as linhas certinhas, fazendo referências, explicando tudo como deveria ser. Eu gosto da bagunça. Penso visualmente, misturando as relações e justamente desrespeitando. Aos pouquinhos a gente vai vendo no que vai dando. Na academia muita gente confunde o rigor com rigor mortis e acaba fazendo [das pesquisas] resenhas. Para mim, a universidade, o conhecimento, têm a ver com liberdade, com você fazer o que quiser. E, claro, isso está ligado com o rigor, a pesquisa, mas venho um pouco dessa tradição/traição de Heloisa Buarque de Hollanda, do meu pai, e vários autores com os quais me conecto para os quais o conhecimento está ligado com pulsão de vida, com você poder fazer mais coisas, ousar mais. Me soa muito desinteressante saber onde vou chegar quando começo um trabalho. Para mim a pesquisa – como um todo, inclusive a acadêmica – é como uma investigação. Eu estou ali encontrando vestígios, sinais; sou tipo um caçador. Tenho algumas ideias do que me interessa e de onde quero chegar, mas o caminho é o que me atrai; é o que eu não sei, não domino, o que eu vou descobrir ao fazer as conexões. É isso que me mantém vivo nesse espaço.

Você falou sobre como estar aberto para o inesperado é essencial no seu processo de pesquisa. Nesse sentido, o recorte nos três artistas que você investiga e o interesse pela relação limiar entre gráfico e poético existiam desde o começo?

De forma alguma. Foi uma descoberta. Por mais que eu gostasse do trabalho da Mira, jamais imaginei trabalhar com ela. Na verdade, com nenhum dos três. Nem lembro qual era minha proposta do mestrado inicialmente. Acho que quando você não sabe [o que você quer], está sempre questionando, pode trabalhar com as brechas. Eu não conhecia Edgard Braga e tinha tudo a ver com o que me interessava, que era a palavra como elemento plástico e vice-versa. É muito sobre essa potência do ensaio também, que está relacionado também com a ideia de tentativa. Faz parte da descoberta, estar ensaiando e ir descobrindo as coisas, inclusive o que te interessa, mas tem um lado que causa aflição, porque pode dar errado. O método acadêmico mais tradicional tem uma burocracia no processo que acaba levando para um resultado mais previsível. No meu caso, acho muito mais vibrante você trabalhar com o inesperado, com o acaso.

Atualmente você está cursando o doutorado. Neste momento – e ciente de que ela pode tomar rumos completamente distintos –  como está sua pesquisa? Que temas têm te interessado?

Estou estudando em Harvard (EUA), o que significa que a forma não tradicional, quando feita com cuidado, rigor e tesão, tem espaço. Neste momento, o processo está bem confuso (risos). Assim como durante o mestrado, no qual fiz essa pesquisa entre personalidades da escrita, a ideia de mancha, rasura e também a influência do acaso e do processo na própria produção, sobretudo a textual poética, queria expandir essa investigação, partindo da relação entre ficção e artes visuais. [O artista visual pernambucano] Tunga (1952-2016) tem uns textos que estão diretamente relacionados com as instalações dele e eu queria estudar esse processo de escrita dele, que estou pensando como uma arqueologia da ficção onírica que ele produz.

Você fala que pensa de uma forma visual. Como isso se reflete no seu trabalho nas diferentes formas de criação e te ajuda a organizar outras possibilidades de criar?

Eu sempre tive uma dificuldade enorme com as classificações, acho que é por isso que eu nunca soube exatamente explicar minha pesquisa. Algumas pessoas questionavam coisas como “Ah, você está tratando com poesia, mas tem uma artista visual no meio” ou “O Tunga não é escritor”. Eu não acredito em nada disso. As classificações são inventadas e me interessa justamente esse lugar da borda, onde você não sabe o que é o que. É nesses espaços, inclusive, onde surgem novas classificações. Tenho a impressão que as pessoas acreditam demais em classificações. Facilita a vida? Sim, mas também torna tudo mais burocrático e engessado. Esse lugar da borda, do limite, é instável e por isso mais perigoso de capturar. A poesia geralmente é analisada só pelo que está sendo dito – e é tão importante o movimento. Descobri o que eu me interessava um pouco por acaso. Estava escrevendo um livro no Word, tudo bonitinho, e de repente vi que não fazia mais sentido para mim. Então comecei a escrever em um caderninho e andava sempre com ele. E eu reencontrei o livro ali, vendo justamente as manchas, as rasuras, como é interessante como eu escrevia um texto mais rápido e outro mais devagar – e como isso afetava sua relação com a leitura. Quando vou fazer meus desenhos e as anotações, tenho uma relação muito espacializada com a página, inclusive academicamente, quando estou assistindo uma aula, uma palestra. Para mim, desenho é texto, assim como o texto também é desenho. Acho que não tratar a letra como algo rígido, fixo, pré-determinado ,é uma forma de respeito à letra, ao texto. Eu não entendo como alguém pode analisar um texto literário, sem analisar seu próprio texto. Acho que é uma falta de respeito aprisionar a letra a uma forma, uma linha fixa. Tento trabalhar essa relação mais de processo, de caminho como texto e por isso sempre carrego comigo os cadernos. Também anoto em livro. Tento trabalhar as coisas como se elas tivessem movimento. Isso eu aprendi com meu pai. Você não precisa tratar a coisa como se ela fosse morta, fixa, sagrada. O respeito é você profanar, trazer de novo para o mundo humano, trazendo para si. Eu leio um Roland Barthes, um Didi-Huberman [filósofo e historiador da arte francês], dialogando, buscando caminhos a partir deles. É uma relação mais de conversa do que do sagrado, quando você só ouve. Escrever é uma forma de pensar. Penso escrevendo, desenhando, e assim vou encontrando as coisas. Não penso e depois escrevo e está pronto. O processo da escrita é de pensamento, investigação, encontro. Acho que isso torna a escrita viva, pulsante. É o que dá o tesão do texto.

Dentro dessa sua perspectiva de não se encerrar em um campo, você dialoga com muitas linguagens artísticas e também parceiros de diferentes campos. É o caso de Gal Costa, artista que também teve uma relação muito forte com seu pai na década de 1970, no show de -Fa-Tal, ocorrido no auge da ditadura militar. O encontro de vocês acontece em um outro contexto da vida dela, septuagenária e em um momento conturbado do país, com tendências também autoritárias. Quem é a sua Gal?

A minha Gal é outra [em relação à do meu pai]. Há alguns anos encontrei Gal por acaso em um shopping e, um pouco por conta desse esbarrão, Marcus Preto, que é meu amigo e trabalha com ela, disse que ela ficou muito feliz de me ver e a gente começou a fazer pequenos trabalhos. Fiz uma música, Palavras no corpo, que Silva musicou, que entrou no [álbum de Gal] A pele do futuro. Tive a ideia andando na rua, ouvindo Sua estupidez e pensei como ninguém fala “eu te amo” como Gal. Ela tem uma forma de cantar as coisas com uma presença, uma verdade, que é muito assustadora e potente. Depois, Preto me chamou para fazer o cenário do show, depois a capa do disco.  Esse processo todo com a Gal é um sonho, um delírio. Esse novo cenário [do show As várias pontas de uma estrela, que estreou em 2021] , trabalha a ideia dos encontros. A carreira de Gal é sobre a potência dos encontros – com Caetano, com meu pai, com Bethânia, Milton Nascimento, e tantos compositores que ela interpretou ao longo dos anos. E eles vão se somando. O encontro é fascinante justamente porque você não sabe o que vai acontecer direito e essa força fez muita falta no último ano.

Você disse que seu pai é uma figura que está sempre cruzando o seu trabalho. Pode falar um pouco sobre essa relação e também se há algum projeto pensado para 2022 em relação à obra dele, ano em que se comemoram os 50 anos de Me segura qu'eu vou dar um troço?

Meu pai é uma figura que – tudo isso que eu falo, de se permitir experimentar – está ali cruzando. Estou sempre lembrando dele, há sempre essa potência de não se deixar domesticar. Quando alguém diz “Ah, você é isso [poeta, artista visual, pesquisador, cenógrafo]”, eu vou lá e faço outra coisa (risos). Tem tanta coisa interessante na vida, tanta potência, por que eu vou me prender a uma? E tudo isso é um mergulho, tudo afeta. Essa relação com outras mídias – fotografia, desenho, música – é sempre uma tentativa de ampliação. Quanto ao Me segura…, não temos nada programado, por enquanto, mas a Companhia da Letras vai publicar uma antologia com poemas de viagem, relacionados com caminhar, perambular, com ilustrações de Luiz Zerbini, e vai ser publicado na argentina o Poesia total, traduzido para o espanhol.

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