Uma jovem moça de cabelos presos, expressão séria, sóbria e introspectiva. Quase sempre vestida de branco. Como se estivesse alheia ao seu tempo. Eis o retrato de Emily Dickinson que atravessou décadas. Essa descrição está posta pela única foto conhecida da autora e também pelos relatos, muitas vezes conservadores, acerca de sua persona.
Hoje, a autora tornou-se também ponto de debates feministas e do movimento queer. Foi apenas após a sua morte que seus quase 2 mil poemas vieram à tona e, nas últimas décadas, foram estudados e traduzidos a partir de aproximações diferentes. No português, a tradução de sua obra passou por múltiplas mãos, entre elas, as de Manuel Bandeira e Augusto de Campos. Agora, o tradutor, escritor, poeta e professor Adalberto Müller empreendeu o processo de traduzir toda a obra de Dickinson, movimento, até então, inédito no Brasil. Os resultados estão nos dois grandes volumes bilíngues, publicados em coedição pelas Editoras da UnB e da Unicamp.
Em entrevista ao Pernambuco, ele fala sobre a autora norte-americana e as formas contemporâneas de lê-la, os processos de tradução, que envolvem uma costura e sutura da obra, e sobre a nova recepção que vem sendo construída em torno de sua figura.
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Você acaba de concluir um trabalho monumental de traduzir a obra inteira de Emily Dickinson. Recentemente, junto à perspectiva de quem ela era, a interpretação da sua obra vem passando por mudanças. De uma mulher casta e isolada, ela passou para símbolo de discussões feministas e figura queer. Esta questão, por exemplo, é abordada em seu curso A poesia queer de Emily Dickinson; poderia falar um pouco dessas leituras ao longo da obra dela?
Essa pergunta já nos situa no centro do debate sobre por que ler Dickinson hoje. Apesar de ser uma autora do século XIX, uma referência “clássica” e “escolar”, a vida e a obra de Dickinson ocuparam o epicentro do debate literário nos países de língua inglesa nos últimos 50 anos, o que faz dela, se não uma autora contemporânea, um problema contemporâneo.
Nos anos 1970, por exemplo, a poeta e feminista Adrienne Rich releu a obra de Dickinson numa perspectiva feminista, lésbica e antipatriarcal. Poucos anos depois, Camille Paglia descreveu Dickinson como a “Madame de Sade de Amherst”, no polêmico Personas Sexuais (1990). Como se sabe, Paglia foi atacada tanto pela crítica feminista quanto pelos defensores da “tradição” literária, como Harold Bloom, que passou desde então a incluir Dickinson no seu cânone em Yale, e que era contrário à ideia de que Dickinson fosse lésbica. No início do século 21, há uma proliferação de teses sobre a obra, a reclusão e a sexualidade de Dickinson. Além disso, a digitalização aberta dos manuscritos de Dickinson criou novas tendências de edição de sua obra, que culminaram em publicações que mudam e mudarão o modo como leremos a obra dela no futuro.
Também as múltiplas traduções de suas obras completas que ocorrem ao longo dos anos 2000/2010 em várias partes do mundo, e os filmes e séries sobre sua vida (dois longas-metragens e a recente série da Apple TV+), tudo isso cria um frisson em torno do nome Emily Dickinson. E cada vez mais se observa uma mudança quanto à antiga visão da mocinha tímida, reclusa, e neurótica. O meu curso sobre a Dickinson queer vai na direção de expandir aquele debate que começou com Adrienne Rich (ou antes dela) sobre uma autora e uma mulher que não se enquadra bem nos padrões da sociedade patriarcal em que viveu e nem no comportamento da sociedade neoliberal conservadora em que vivemos. Por isso uso o termo “poesia queer”. Dickinson é queer tanto na poesia quanto na vida. O que eu faço, também na minha edição e tradução, é tentar reforçar os vínculos entre vida e obra.
Você afirma que, para traduzir Dickinson, utilizou o que chama de “costura e sutura”. Uma serviria para criar consistência de poema para poema e, a outra, para preservar a instabilidade original da obra. Isso é algo que todo poema exige ou apenas os de Emily Dickinson? Na sua opinião, qual a singularidade da poeta?
A teoria que explicitei nos dois volumes da Poesia completa foi criada ad hoc, isto é, eu precisava de uma teoria específica para lidar com dois fatos simultâneos: 1) a instabilidade do “original” (ou seja: há várias edições conflitantes de Dickinson); 2) a instabilidade semântica dos poemas (isto é, do estilo elíptico e fragmentário da poeta, que deixa até os especialistas em dúvida sobre o que ela quis dizer exatamente). Para lidar com o primeiro fato, eu usei a imagem da costura, porque a própria Dickinson costurava os seus manuscritos à mão, formando os fascículos. A costura é um modo de pensar a unidade da obra a partir de uma multiplicidade de visões sobre ela. A costura pensa a relação entre os manuscritos – muito diferentes entre si, a própria “grafia” da autora muda muito, há manuscritos rasgados, lacunares, incertos etc. – e a obra editada, de maneira que a tradução se torna uma forma de reedição.
Para lidar com a instabilidade semântico-formal dos poemas, fui buscar um conceito da teoria do cinema, a sutura. Na verdade, é um conceito originário da psicanálise lacaniana, que foi usado por Oudart e Mulvey para pensar a relação entre forma e sentido do filme a partir do espectador. O que vemos na tela de cinema, dizem os teóricos, está e não está no “filme”, na “linguagem”. Há uma espécie de fluxo entre o filme (montado e projetado) e o corpo do espectador. Em outros termos, a relação entre forma conteúdo é um processo, e não uma coisa. Esse processo é a sutura.
Na tradução, o espectador é o leitor, ele é quem faz “mediação” entre o sentido e a forma, é ele quem cria o processo, no qual o original se move. Então, o tradutor nada mais é do que um tipo especial de leitor. Ele também participa do processo da obra (do seu fluxo), mas, assim como o crítico e como o editor, o tradutor também cria um novo “produto” (que será, por sua vez, um novo processo, ou um novo “original”, que será lido em outra língua, em outro lugar). Na teoria da sutura, não cabe mais falar de fidelidade ao original, porque o próprio original é “instável” por natureza.
Sem a costura não há texto. Sem uma boa costura, a obra se transforma numa série de retalhos. Podem ser bons retalhos. Ou uma colcha de retalhos. Nesse sentido, o tradutor é um leitor privilegiado, porque ele cuida da relação sentido-forma do original. Mas ele também cria um novo texto, que é como um novo vestido, que se adapta a outro corpo. Quanto mais fluida a relação entre costura e sutura, tanto mais o vestido se adapta ao corpo. Não é esse o ideal da alta-costura? Criar vestidos que parecem fazer parte do nosso corpo, do nosso ser?
Em entrevista, Augusto de Campos, também tradutor de Dickinson, já afirmou que abandona certas empreitadas na tradução, temendo não alcançar uma equivalência de “forma e alma” no português. Diante da extensa obra da autora, como você lida com esse tipo de encruzilhada em seu trabalho?
Essa pergunta nos remete ao final da anterior. A partir de certo ponto, o que era uma teoria ad hoc se torna uma teoria geral da costura e sutura. Eu acho que ela se adapta à obra de Dickinson, mas também pode ser usada para pensar autores bem diferentes como Franz Kafka, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Walter Benjamin (que eu também traduzi), Paul Celan. O conceito de sutura, sobretudo, pode ser um conceito importante para a crítica literária. Quanto a Augusto de Campos, ele está preocupado com uma costura específica, que é a costura de uma Emily Dickinson que pertença ao pai de uma da poesia concreta (naquilo que ela tem de invenção). Ela é para AC – adoro essa definição dele – uma “Ur-cinderela” da poesia moderna.
A partir daí, ele faz um corte que resulta nos 80 poemas traduzidos, que são 80 poemas perfeitamente recortados (e concretamente) costurados, assinados por Augusto de Campos. São poemas de grife. Mais do que isso, cada poema traduzido manifesta a costura, que se baseia em preceitos rígidos de um crítico preocupado em selecionar amostras do que é esteticamente superior. O que eu faço vai em outra direção.
Eu trabalho com a matéria-prima, e ponho os textos dela numa linha de montagem quase industrial. Então, se AC está mais para uma Coco Chanel, eu estou mais para as coleções das lojas de departamento. Até por isso eu acho que a Poesia completa e a seleção de Augusto podem (e devem) ser vendidas e lidas concomitantemente (aliás, estamos no mesmo selo editorial, a Editora da Unicamp).
Por meio das definições de Ezra Pound (1885-1972) sobre fanopeia, melopeia e logopeia (algo como: imagem, ritmo e pensamento), você diz que, em Emily Dickinson, a síntese desses três aspectos chega à apoteose. Poderia elaborar sobre essa construção teórica?
A poesia de Dickinson, como a de Shakespeare, é extremamente imagética, e é preciso preservar e até recriar as imagens. Dou um exemplo: no famoso poema I felt a Cleaving in my Mind, ela descreve o que se chama de um processo de dissociação (ou transtorno dissociativo de identidade), no qual uma pessoa sofre uma fragmentação da identidade, e passa também a ter problemas de memória. A partir da ideia da “rachadura” no cérebro, ela passa à ideia do “rasgo” numa costura e, daí, à ideia de que a memória é um conjunto de fios e de novelos. Tudo isso está submetido a um ritmo rigoroso, e ao mesmo tempo, a uma sintaxe elíptica. De repente, aparece a palavra sequence que é, literalmente, “sequência” (do antes e do depois), mas também é um termo de crochê e de bordado, além de ser um termo ligado ao enredo e à música. Do mesmo modo, o termo balls, pode ser entendido como “bolas” ou “novelos”. Se eu traduzir literalmente, termo a termo, eu me perco.
Eu tenho que ver a pessoa fazendo crochê, essa é a imagem. Portanto, não se trata de encontrar rimas ou ritmos equivalentes, é preciso pensar a ideia de dissociação, memória e a imagem do crochê. Tudo isso submetido a um ritmo. Dickinson tinha uma obsessão por um ritmo sincopado e sinuoso, cheio de dissonâncias, que antecede o blues e o rock. Essa conjunção estranha de imagens e ritmos se associam a combinações paradoxais de pensamentos (ideias filosóficas e metafísicas), criando volutas de imagem-ritmo-pensamento. Chega a ser assombroso.