Juliana Fausto Divulgação março.2022 bx

 

 

Em uma célebre conferência em homenagem a Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), proferida em 1962, Claude Lévi-Strauss (1908-2009) argumentou que, na contramão da filosofia de sua época, Rousseau fora o único a insurgir-se contra o egoísmo que apregoava a dignidade exclusiva da natureza humana, pensamento este que abriria a trilha não só para a dilaceração da natureza, mas para uma infinidade de outras mutilações. Se, num primeiro momento, começou-se a cortar o “Homem” da natureza e constituí-lo como um reino supremo, as fronteiras que separaram natureza e cultura – ou a animalidade da humanidade – foram constantemente empurradas, servindo para hierarquizar a humanidade entre si e reivindicar em prol de minorias cada vez mais restritas o privilégio de um humanismo que, segundo Lévi-Strauss, já nascera corrompido por ter feito do amor-próprio seu princípio e noção.

Entretanto, à medida que cresce a conscientização sobre o Antropoceno, época geológica caracterizada pelo impacto da humanidade (ou parte dela) na Terra, mais as filosofias e ciências contemporâneas se dão conta de que não estamos sós no planeta. Dessa forma, ao colocar a pólis sob a perspectiva dos animais outros que humanos, confrontando ideias clássicas e contemporâneas, Juliana Fausto (foto) investiga modos animais e com animais de fazer política no contexto do Antropoceno. Em A cosmopolítica dos animais (n-1 edições), livro fruto de sua pesquisa de doutorado em filosofia na PUC-Rio, ela aborda diversas configurações da vida animal como verdadeiras situações conceituais, cuja análise e problematização requerem o diálogo conjunto com diferentes áreas do saber, como a etologia, a biologia, a antropologia, a história e a literatura.

Em seu percurso filosófico, a autora conclui que, ainda que acossados por todos os lados, os animais outros que humanos vivem e oferecem inúmeras possibilidades (cosmo)políticas, diante das quais a humanidade tomada como “exceção ontológica” deve ser compreendida como potência apolítica.

 

Uma das coisas mais interessantes do seu livro é a forma como você entrelaça a filosofia política com as suas próprias experiências com animais outros que humanos, em especial com as histórias de Bruxo, Nausicaa e Batatinha. É possível perceber nessa forma de prática filosófica um diálogo com a ideia de “saberes localizados” de Donna Haraway?

Certamente. Esse artigo da Haraway me marcou muito. Não apenas pela ideia de que não se fala a partir de todos os lugares sobre tudo, mas também por causa da questão sobre os regimes do olhar: “Com o sangue de quem foram feitos os meus olhos?”. Gosto muito de ouvir estórias, contar estórias. Então, enquanto pesquisava, com os gatos sempre ao redor, eu brincava com eles, dizendo que eram refugiados políticos, especulava sobre o passado desconhecido de sua mãe… Até que me dei conta de que aquela brincadeira não era inconsequente se eles fossem realmente levados a sério como sujeitos políticos. E isso me levou a mergulhar nas histórias e estórias sobre a expulsão dos animais da política e a produzir uma narrativa filosófica que, espero, seja corporificada. Inspirei-me muito na Haraway e na Vinciane Despret, no modo como essas duas autoras fazem filosofia com animais particulares. Em como é possível fazer filosofia contando estórias e histórias. E esse é um método que eu considero muito poderoso e difícil, porque tem pessoas (mais-que-humanas e humanas) em jogo o tempo todo, e é preciso ser responsável.


Como foi o seu processo de pesquisa dentro da filosofia, desde a escolha do tema até as possibilidades de diálogo? Eu imagino que fazer parentesco nesse campo de estudos seja um pouco mais fácil hoje do que antes. E, certamente, o seu livro é parte importante na construção de um novo horizonte filosófico.

Agradeço demais o elogio. Embora sempre tenha me interessado por animais, quando fiz graduação, no final dos anos 1990, não conhecia nada sobre animais e filosofia que não fosse ética. Havia bem menos publicações que hoje, claro, mas a universidade também era muito mais fechada. A minha entrada nos chamados estudos animais, se é que dá para chamar toda essa miríade de estudos por esse nome, tem um caminho engraçado: primeiro comecei a ler Eduardo Viveiros de Castro, e foi por meio de suas referências e, um pouco depois, através de Déborah Danowski, que veio a ser minha orientadora, que passei a conhecer todo um mundo teórico novo para mim. Por meio dessas referências fui procurando e encontrando outras. Se eu não tivesse bolsa de pesquisa no doutorado, primeiro do CNPq e depois a bolsa Nota Dez da FAPERJ, certamente não teria escrito a tese. Comprei muitos livros que foram essenciais. A internet e o compartilhamento de fontes também foram fundamentais. Agora, o trabalho de pesquisa foi muito solitário. A Déborah Danowski é maravilhosa e conversávamos sempre, tenho amigos e colegas incríveis, mas praticamente ninguém estudava questões animais em filosofia. Então, na maior parte das vezes, eu descobria autoras, autores, livros, artigos e lia… Não foram poucos os momentos em que pensei que estava ficando louca. Tive muita sorte de ter uma orientadora como a Déborah, que me lia e incentivava mesmo não estando completamente em sua área. Meu companheiro, Marco Antonio Valentim, foi muito importante também. Fui muito ousada e escrevi para diversos autores, que gentilmente me responderam. O colóquio Os mil nomes de Gaia: do Antropoceno à idade da Terracujos textos estão para sair em livro –, em 2014, foi fundamental também. Pude entrevistar a Haraway, conhecer pessoalmente a Despret e a Isabelle Stengers, entre outras pessoas. Vejo com muita alegria como hoje há cada vez mais trabalhos tratando de assuntos aparentados e saúdo a publicação em português de obras importantes. Já é possível, atualmente, dar certas disciplinas na graduação, o que era inimaginável por falta de bibliografia.


Como você aponta, a área de pesquisa conhecida como estudos animais vem delineando uma “teoria política animal”, procurando tornar políticas questões de direito ou ética animal por meio de sua institucionalização. No entanto, você se afasta desse tipo de abordagem por não acreditar que a política indique apenas o âmbito das instituições na forma-Estado. Como a filosofia e outras áreas do saber podem traçar linhas e caminhos que devolvam a política ao mundo e aos seres?

Eu não quis dizer que não acredito em políticas públicas ou que não as acho importantes. Estava situando meu argumento. Inclusive porque acredito que se não abrirmos a imaginação aos animais, e no livro eu trato de alguns animais, animais particulares ou espécies em particular, vamos recair no erro de impor a eles o nosso ordenamento jurídico, no qual eles só podem existir como vítimas. Acho que eles merecem proteção, mas merecem mais, porque podem mais. Para que algum movimento de mão dupla possa existir, precisamos aprender com eles ou deles, deixar nosso pensamento se alargar. Vou tomar de empréstimo algo dito pela Despret: fabular não é necessariamente se desprender da realidade, mas “tornar perceptíveis detalhes insignificantes, possíveis que não foram vistos. E, de certa forma, dar-lhes uma chance”. Acredito que esse é um dos modos de trazer o novo ao mundo, e funciona tanto para filosofia quanto para as ciências ou para as artes. A fabulação é passível de ser testada, há condições de felicidade para ela. No caso de uma hipótese científica, vá lá, há a observação; já no caso da filosofia, quais seriam essas condições de felicidade? Suas consequências. É preciso se perguntar quais as consequências desses novos possíveis, que ainda agora não existiam no mundo, ou não eram percebidos, e decidir se valem ou não a pena, para quem e sob quais condições. Não se trata de cálculo, veja, não é o provável. É um convite à imaginação de novos mundos emaranhados, de modo consequente e responsável, na confiança de que outros, quem sabe, possam ser tocados por esses possíveis de modo que novos futuros multiespécies se abram.


Você retoma uma célebre conferência de Lévi-Strauss, proferida em 1962, em que ele afirma que a separação radical entre humanidade e animalidade, concedendo àquela tudo que retirava desta, abriu um “ciclo maldito”, deixando o campo livre para todos os abusos. De que forma a produção científica ocidental colaborou para a realização do sonho de dominação da natureza pela cultura? Repensar as fronteiras entre humanidade e animalidade pode ser um caminho para experimentarmos outras formas de viver em comunidade?

As fórmulas “mestres e possessores da natureza” e “império do homem sobre as coisas” são de René Descartes (1596-1650) e de Francis Bacon (1561-1626), respectivamente. Entretanto, acho importante lembrar que esse ciclo maldito de que Lévi-Strauss fala não foi obra apenas da ciência, mas de um entrelaçamento entre uma série de práticas e saberes. Em seu famoso parágrafo, ele grifa o acontecimento colonial. Ora, que instituição ocidental sai incólume do colonialismo? Então é claro que essa ideia estúpida que está na base de muitas epistemologias – nós sabemos, eles acreditam – pode ser remetida à ciência, inclusive à atual. Mas pode ser remetida à filosofia e a muitos campos do saber e ideologias também. Não acho justo tomar as ciências como bode expiatório quando muito do que se tem produzido de mais interessante no sentido de implodir o humanismo vem de práticas científicas, ainda que as humanidades muitas vezes sigam com sua velha cantilena – “o estudo próprio da humanidade é o homem”. Quanto a repensar fronteiras, creio que o caso é superar de vez a grande cadeia do Ser. Não se trata apenas de animais humanos e outros-que-humanos, mas de tudo o que está na Terra. Todas as fronteiras hierárquicas são imaginárias. As diferenças são infinitas, mas as porosidades e preensibilidades estão por toda a parte.


Na conferência realizada em novembro de 2019 nas jornadas da École de la cause freudienne, em Paris, Paul B. Preciado retomou o conto Um relatório para uma Academia, de Franz Kafka (1883-1924), para traçar um paralelo entre a humanização do macaco Pedro Vermelho e a prisão existencial a que estão submetidos os corpos trans. Afinal, como observa Preciado, Kafka não apresenta a história de humanização de Pedro Vermelho como um relato de liberação, mas como uma crítica ao humanismo europeu. Em A cosmopolítica dos animais, você defende que é possível encontrar na arte (sobretudo na literatura de Kafka) inúmeras ressonâncias com o conceito de “devir-animal”, cunhado por Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992). Sendo assim, é possível afirmar que o devir-animal opera como uma linha de fuga da jaula existencial produzida pelo humanismo europeu? Como você percebe a produção de alianças multiespecíficas entre filosofia e arte?

Os próprios Deleuze e Guattari fazem a aproximação entre a literatura de Kafka e o devir-animal em Kafka: Por uma literatura menor (1975). O conceito de saída é inclusive haurido do discurso de Pedro Vermelho, que insiste não querer a liberdade, mas uma saída. Acho que aí está toda a questão. É claro que Pedro Vermelho não está elogiando os humanos ou o humanismo, mas dando testemunho do que se passou com ele. Sequestrado de seu país natal, enjaulado no navio a vapor Hagenbeck e enviado à América, ele sabia que tinha poucas chances. A liberdade, como ele mesmo diz, talvez estivesse no oceano; seria fatal. O que podia um chimpanzé em uma jaula diante de um navio cheio de homens? Pedro Vermelho foi capturado para um mundo que não era o dele. A saída, que ele busca tão obstinadamente, diz respeito ao possível, não ao ideal. É mais que isso: a saída diz respeito a inventar e cultivar o possível – algo muito diferente do modo como ele define a liberdade humana: “movimento soberano”.

Criar uma saída é muito mais do que apenas sobreviver, mas não é nada transcendente como aquela liberdade absoluta que só existe porque se terceiriza o trabalho para outros mais desfavorecidos ou considerados menos humanos. Gosto muito da biografia do chimpanzé Sultão escrita por Éric Baratay, de que trato no mesmo capítulo do livro, que deixa claro que o caso de Pedro Vermelho não é exatamente fantasioso. Assim como a firma Hagenbeck existiu, muitos chimpanzés foram sequestrados e levados para circos, zoológicos e laboratórios. Diversos encontraram saídas muito parecidas com a de Pedro Vermelho. Consul, um chimpanzé nascido em Serra Leoa e que viveu no zoológico de Manchester, no final do século XIX, apresentava-se diariamente servindo e retirando uma mesa de chá. Mas isso não era tudo. Querendo a todo custo sair de sua jaula, primeiro ele aprendeu a destrancar o cadeado. Mas as trancas foram reforçadas. Ele então descobriu que precisaria agradar seus captores, ser gentil, apertar mãos, fazer gracejos, e chegou a aprender a beber e a fumar, assim como Pedro Vermelho (“tornar-se alcóolatra”, nas palavras de Preciado), porque isso lhe permitia ficar fora da jaula, no bar entre pessoas. Consul contraiu uma doença e morreu cedo, possivelmente devido aos incontáveis apertos de mão que lhe garantiam mais um pouco de tempo fora da jaula. Baratay comenta que quando Kafka escreveu seu conto, certamente conhecia histórias de chimpanzés “civilizados” como Consul. Ótimo, podemos dizer que Kafka usou um tropo comum à época para fazer uma crítica ao humanismo europeu e achar que a coisa toda termina aí, que o chimpanzé é um penduricalho. Mas e Consul? O que ele estava fazendo? Certamente não era crítica. Acho que o que eu quero dizer é que as coisas não terminam na crítica, não podem terminar. Tanto é que Preciado assume o corpo do chimpanzé – esse corpo que sobra e cujo lugar “é de encontro à parede no caixote” – e junta sua voz à dele. Preciado viu a força desse lugar. Deleuze e Guattari também viram, mas só até certo ponto. Tanto em seu livro sobre Kafka como no platô Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível, eles insistem que a política dos devires-animais sempre há de fracassar, capturada pelas instituições, porque talvez os próprios animais sejam “fechados”, “organizados” demais. Eu discordo deles. Acredito que há uma política não só dos “devires-animais”, mas uma política dos “devires-com” e uma “política animal”. São coisas diferentes. No caso dos devires-animais, talvez o problema esteja na pouca atenção dada por D&G a animais atuais, ou, como diz Donna Haraway, pouca atenção à cotidianidade. Esse é um assunto muito extenso.

Quanto à questão da jaula existencial, eu acho que os conceitos servem a determinado campo de problemas, então não sei o quão longe o devir-animal pode ir. Mas penso, por outro lado, na ideia de “animalismo” de Paul B. Preciado, em seu belíssimo texto O feminismo não é um humanismo, que trata com uma precisão concisa dessa questão: “Não foram o motor a vapor, a imprensa ou a guilhotina as primeiras máquinas da Revolução Industrial, mas, sim, o escravo trabalhador da lavoura, a trabalhadora do sexo e os animais”. No que tange à filosofia e à arte, acho que o principal é não subsumirmos a arte à filosofia, como se aquela fosse um exemplo desta, o que costuma acontecer nesses encontros. Arte é pensamento, como filosofia também é. E ambas podem fabular. O mais importante, no caso de se tratar de um modo multiespécies, é que haja animais envolvidos ativamente.


Você enxerga riscos de que os estudos animais, assim como as demais áreas do saber que abordam o contexto do Antropoceno, percam a radicalidade política e se transformem em temas da moda dissociados de qualquer tipo de práxis? Ou, por outro lado, que esses trabalhos exagerem tanto no catastrofismo que acabem colaborando para uma paralisia política ainda maior?

O que me assusta, na verdade, é que não estejamos todos pensando sobre isso de alguma maneira. É a nossa realidade e é inescapável. Para continuar no tema dos animais outros que humanos, a Sexta grande extinção está aí. Mas são também as secas, as tempestades, a pandemia, a precarização dos modos de vida, o ataque às terras e aos povos, as migrações forçadas, o recrudescimento da xenofobia, dos nacionalismos. Não há uma questão social, por um lado, que não se encontre com a catástrofe ambiental, por outro. Se seguirmos as aflições e agonias do nosso tempo, elas vão todas desembocar na catástrofe ambiental de origem antrópica, cujo motor é o capitalismo. Quanto ao catastrofismo, não creio que a paralisia política se deva a esse afeto; acho que o problema é maior. Trata-se da falta de vontade dos Estados nacionais e de sua promiscuidade com corporações que lucram ativamente com a catástrofe. Já em relação a quem sofre diretamente com os efeitos, o que temos visto, além de manifestações, é uma população cada vez mais pauperizada e tornada impotente. O que eu acho realmente perigoso hoje são os negacionismos e seu tentáculo mais maldito, os fascismos.


Você conclui os capítulos do seu livro propondo enunciados que deem conta de alguns modos animais e com animais de fazer política. Eu gostaria de finalizar a entrevista lhe devolvendo a pergunta que você se faz/nos faz diversas vezes ao longo do texto: “Então, o que é política?”.

Algumas pessoas já me disseram para abandonar o termo política porque ele vem de pólis e a pólis excluía todo mundo que não era cidadão – ou seja, estrangeiros, mulheres, escravizados, animais, crianças, florestas, bactérias... a lista é enorme. Mas vou seguir insistindo por ora, porque acho que a política nos é devida, nem que seja pra acabar com a pólis e criar outros tipos de comunidade. Política, desse ponto de vista apócrifo, são os infinitos modos conjuntos e diferentes de mundificação das criaturas. É o assentamento cósmico da vida.

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