Entre as similaridades possíveis dos regimes ditatoriais em diferentes contextos, está a perseguição e a busca pelo aniquilamento dos sujeitos tidos como os mais fracos. No inverso desse diagnóstico perverso, está também a resistência por meio das artes. O projeto Womanart, realizado pelo grupo de pesquisa em Género, Artes e Estudos Pós-Coloniais da Universidade do Minho (Portugal), tem mapeado o trabalho feito por mulheres artistas nos países lusófonos na segunda metade do século XX que abordam aspectos da ditadura. De acordo com a professora Ana Gabriela Macedo, coordenadora do projeto, a proposta quer dar visibilidade à presença de mulheres a respeito do tema, contribuindo assim para os estudos das histórias das artes e da literatura. Um dos resultados do projeto é a produção de um arquivo digital a respeito das artistas de diferentes sistemas de arte (cinema, dança, artes visuais e literatura) do Brasil, Portugal, Cabo Verde, Moçambique e Angola, e que pode ser visitado no site ceh.ilch.uminho.pt/womanart. Ao Pernambuco, Ana Gabriela fala sobre o projeto, iniciado em 2017, e comenta algumas das artistas que compõem este panorama.
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O tema central do projeto Womanart é a produção de artistas mulheres em torno das experiências das ditaduras em Portugal, no Brasil e alguns países africanos. Em que momento, o grupo de estudos avaliou a importância de reunir mulheres artistas de contextos diferentes em uma mesma pesquisa?
O que nos interessou foram as pontes de comparação, o que foi a ditadura no Brasil até os anos 1980, em Portugal até o início dos anos 1970 e em África. Uma questão que no fundo é semelhante às mulheres (desses lugares): foram igualmente torturadas, perseguidas e, apesar de tudo, escreveram e produziram obras fantásticas. O que consideramos mais instigante foi olhar para a ditadura como um assunto histórico e crucial para entender o que são esses países agora, um passado e um presente em diálogo. Privilegiamos os olhares das mulheres na literatura, nas artes, no cinema, na vídeoarte e na performance. Tanto mulheres que viveram a ditadura e que produziram nesse período e hoje estão com 70 e 80 anos, quanto mulheres mais jovens, com menos de 50 anos e que, portanto, não viveram a ditadura, mas o seu rescaldo. No que diz respeito a Portugal, essas artistas olham para a ditadura, por exemplo, através do cinema, de um olhar impregnado pela literatura, como nas outras artes visuais etc. Em relação a África, pensando especificamente o caso de Angola, Cabo Verde e Moçambique, temos menos informação e seria necessário um projeto de muito mais tempo. Tentamos fazer algo semelhante com o cinema por elas produzido. São olhares de artistas mulheres nascidas em Portugal ou na diáspora portuguesa, que olham para essa África colonizada por Portugal já com o questionamento do que consistiu na ditadura. Nesses países de colonização portuguesa, por exemplo, (a documentarista) Diana Andringa filma e fotografa Tarrafal (Museu do Campo de Concentração de Tarrafal, em Cabo Verde), interroga e entrevista ex presos políticos. No que diz respeito ao Brasil, tínhamos pouca informação, então nos juntamos a algumas pesquisadoras que partilharam seus conhecimentos e também através do cinema e de entrevistas com as realizadoras Lúcia Murat (Que bom te ver viva, 1989), Danielle Gaspar e Krishna Tavares (Atrás de portas fechadas, 2015), Flávia Castro (Diário de uma busca, 2010). Os filmes dessas realizadoras nos trouxeram a realidade que desconhecemos.
Ouvindo você, a sensação é de que o cinema se sobressai em meio a essas produções. É isso mesmo?
Como a literatura está entre nós desde o início, talvez a gente também tenha orientado nosso olhar para essas outras artes, mas não foi consciente (não foi por escolha metodológica). Especialmente o cinema e o documentário tornaram esse assunto tão visível, impossível (de) ignorar. É a imagem se pondo, mostrando uma realidade inegável. Mas há muito além do cinema, claro. Por exemplo, Ana Cristina Silva falou um pouco sobre isso, da polícia portuguesa e das mulheres que foram torturadas. Ela diz que talvez esse (As longas noites de Caxias, de 2019) não seja o seu melhor livro, que a linguagem não foi bem trabalhada. Ela tem essa busca do trabalho de linguagem, mas, ao mesmo tempo, diz que tinha que escrever esse livro. Durante o projeto, descobrimos imensas coisas, como a obra de escritoras muito jovens como a Djaimilia Pereira de Almeida, na época com 37 anos. Ela é um exemplo de escritora na diáspora. Vive em Lisboa, foi criada em Lisboa (Djaimilia nasceu em Angola), então se torna um caso paradigmático que nos interessa muito analisar.
E a relação dos colegas de outros campos, como da História, com esses objetos artísticos? Como eles têm lidado com a potência dessa produção?
Quando a gente está envolvida com o projeto, parece que todo mundo ao nosso redor está interessado pelo mesmo assunto. O fato é que se tem falado muito sobre esse assunto em Portugal, sobre a Guerra Colonial, sobre Salazar (ditador português), sobre a ditadura e sua censura. Há trabalhos excelentes do ponto de vista documental e historiográfico. Estamos nos aproximando dos 50 anos do 25 de Abril (data da Revolução dos Cravos, em 1974), dos 48 anos do (final do) fascismo (no governo do país). O interesse historiográfico e documental de escavar a memória como nunca aconteceu vai em paralelo. Mas eu também não tenho a menor dúvida de que a literatura apresenta o real de uma forma mais realista do que os próprios historiadores.
Em relação ao tempo de maturação do que foi a ditadura, a literatura brasileira talvez esteja mais próxima do caso português do que de seus vizinhos latino-americanos.
Tens razão, o mesmo se poderia dizer do Chile, o tempo imenso que demorou para as pessoas se libertarem um pouco da mordaça do silêncio que a ditadura conseguiu lançar nos ombros de toda gente. Em Portugal, aconteceu consciente e inconscientemente. O Museu do Aljube Resistência e Liberdade, antiga prisão do regime fascista, abriu muito recentemente uma exposição sobre os presos políticos, sobre a ditadura. Em 2021, (houve) uma grande exposição sobre as Novas cartas portuguesas (1972), a respeito das três Marias (as escritoras Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa). No mesmo museu em que os militantes ficaram encarcerados, mostram-se seus nomes e celas, havia uma sala sobre as Cartas – uma obra literária que mostra os muitos modos como a ditadura operou e operacionalizou a censura. Ele (o livro) estava lá, porque foi censurado na época. As três Marias foram alvo de prisão política. Fico muito espantada com o caso da Argentina, com a produção, e me pergunto, sem saber qual a resposta, se isso não tem a ver com um êxodo de intelectuais argentinos para outros países onde continuaram produzindo e então tiveram espaço para produzir, um pouco como os artistas brasileiros que saíram e produziram no exílio e depois puderam voltar.
Quando começa essa nova mirada crítica portuguesa em torno do colonialismo?
É muito recente. Eu, muito jovem na licenciatura, dei aulas de português numa escola secundária e nessa altura, pouco depois do 25 de Abril, os manuais das escolas de língua incluíam material que depois desapareceu por completo. Havia textos do (escritor angolano) Agostinho Neto, poemas sobre a Revolução, a guerra e eles simplesmente desapareceram. O que eu quero dizer é que essas questões não devem ser apenas alvo de reconhecimento. Não é uma questão apenas dos intelectuais. Você anda em Portugal e ainda vê (na cidade de Vila Nova de Gaia) a Rua Heróis do Ultramar. Não sou a favor de silenciar a história. Não vamos mais utilizar o termo ultramar, mas não vamos simplesmente apagar. Em vez disso, vamos problematizar e explicar o que houve. Há uns 20 anos começou a ter projetos sobre esses temas e não posso deixar de lembrar o trabalho pioneiro da (pesquisadora) Margarida Calafate Ribeiro nas Ciências Sociais. Nesse tempo começou com mais força a tornar-se muito óbvio de que era preciso problematizar isso. Qual é o papel de Portugal como força colonizadora? Que violência se revestiu? Muitos grupos contra a ditadura já reconheciam como a colonização foi brutal. Então, enquanto na academia e nas artes (não literárias) isso é mais antigo, na literatura isso é relativamente mais recente. Devo dizer que grupos que lutaram naquele momento, inclusive na clandestinidade, eram grupos profundamente conscientes da colonização. Não posso deixar de me referir a Irene Flunser Pimentel, historiadora que trabalhou imenso sobre o tema e a Fernando Rosas (historiador), nomes fundamentais para uma historiografia contemporânea de Portugal.
Dentro desse arco de 20 anos, é inevitável lembrar das obras de Isabela Figueiredo (Caderno de memórias coloniais, 2009) e de Dulce Maria Cardoso (O retorno, 2012). O livro de Isabela Figueiredo teve uma recepção mais positiva no Brasil do que em Portugal. Isso mudou com as novas críticas em torno do colonialismo português?
Isabela Figueiredo foi muito criticada, em primeiro lugar, pela linguagem. Além disso, ela não conta uma história alheia, mas sua própria história, autobiográfica e profundamente corajosa. Não é dogmática. É um livro de uma mulher branca, loira, filha de um colonizador na África, porque ela nasceu lá, mas não se reconhece (naquele lugar). Era exatamente isso que acontecia. Um livro no feminino, que conta uma história própria que não se enquadra facilmente em lugar nenhum. É um livro importante, porque usou uma linguagem contundente que não mascara nenhuma verdade, por isso continua sendo lido e causado espanto sobretudo nos mais jovens. Por outro lado, Dulce Maria Cardoso talvez não tenha tido (boa) recepção pelo menos no Brasil porque trata de uma situação que não tem paralelo no Brasil, a condição dos retornados. A própria expressão já é estranha – “ser retornado”. Àquela altura ou ainda hoje muitas famílias ainda têm esse estigma, o de ser filho de um retornado ou de ser retornado. É como se esse sujeito não pertencesse nem à Portugal e nem à África, como se fosse um pária. Então, por muito tempo, eles foram os párias que retornaram a Portugal sustentados pelo Estado, saídos de uma terra que eles julgavam que era deles, mas de onde foram escorraçados. E não há culpados porque esse sujeito também é fruto da colonização. Esses dois livros fazem sentido de serem postos em paralelo com as Novas cartas portuguesas, porque elas foram pouco entendidas como um livro de literatura, foram mal lidas. Mas o mais importante é que são extremamente políticas e hoje elas são melhor lidas do que anos atrás. Isso é fruto também do trabalho que foi feito na academia com nomes como Ana Luísa Amaral (organizadora da edição anotada das Cartas) e outras tantas que trabalharam em um enorme projeto internacional, de estudo da recepção desse livro em muitos outros países. A partir das Novas cartas, muitas mulheres vítimas do fascismo se organizaram.