No livro de ensaios Linguagem da destruição: A democracia brasileira em crise (Companhia das Letras), a historiadora Heloisa M. Starling, o cientista político Miguel Lago e o filósofo Newton Bignotto se reuniram para pensar o governo do presidente Jair Bolsonaro a partir de uma frase dita pelo governante nos seus primeiros meses na presidência: “Nós temos é que desconstruir muita coisa”.
No ensaio Brasil, país do passado, publicado em Linguagem da destruição, Starling refletiu sobre a importância da defesa que Bolsonaro fez do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), quando do seu discurso na votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff, para cacifar sua imagem na corrida presidencial. Numa semana em que discussões sobre tortura e o limite do Estado de Direito voltaram ao centro do debate, conversamos por e-mail com a historiadora sobre a “linguagem da destruição” a nos guiar.
A frase do General Gomes Mattos, dizendo que a liberação dos áudios sobre a tortura do Estado na ditadura militar “não estragou a Páscoa de ninguém”, me fez lembrar do discurso do ainda deputado Jair Bolsonaro, quando do Golpe Parlamentar, louvando o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra. No seu ensaio Brasil, país do passado, você escreveu que, após esse discurso, Bolsonaro se cacifou “como a liderança capaz de aglutinar e mobilizar as forças posicionadas à direita do cenário político brasileiro — incluindo sua periferia extrema”.
Onde erramos para que torturadores sejam tratados como heróis ou mesmo que a tortura de Estado seja vista como algo não tão “importante” ou “criminoso”?
Na garantia da impunidade. O discurso de Bolsonaro em 2016 em pleno Congresso Nacional recebeu projeção midiática e nenhum tipo de sanção. As consequências são graves por algumas razões. Não existe um estágio final de democracia que garanta sua rigidez e resistência — em nenhum lugar no mundo. A liberdade, as instituições democráticas, o catálogo de direitos — o parâmetro por onde se pode avaliar a qualidade da democracia em um país e em cada conjuntura histórica — não se defendem por conta própria. Isso significa que nenhum regime de liberdade comporta solidez e, portanto, o risco de manipulação e corrosão operadas por políticos ou governantes com tendências autocráticas e mentalidade autoritária é grande. “A democracia é como Troia, sempre vulnerável a um ataque por dentro”, escreve [o cientista político] Sérgio Abranches. Por conta disso, a democracia precisa ser protegida pelo engajamento da sociedade, desde o início. Na verdade, ela precisa de um “Alarme de incêndio”, tal como foi imaginado pelo pensador alemão Walter Benjamin: diante de um perigo catastrófico e “antes que a centelha alcance a dinamite, é preciso que o pavio que queima seja cortado”, escreveu em Rua de mão única.
Contudo, imaginar o pior, no Brasil atual, tem seu poder sedativo — não garante a disposição da sociedade para impor limites aos procedimentos de degradação democrática, nem mobiliza força para a ação política. A impunidade deu respaldo à degradação da ordem política, e continua a minar a democracia brasileira. “Querem a minha cassação por eu ter feito uma piada”, declarou o deputado federal Eduardo Bolsonaro, em 5 de abril de 2022. Não foi piada, nem deboche. O papel da linguagem usada pelo deputado é político. Ela incorpora e propaga uma modalidade específica do mal — o mal totalitário. Sua força reside na capacidade de manipular a realidade para eliminar a capacidade dos brasileiros de distinguir a verdade da falsidade. Sua meta é destruição da medida de sentir em comum, de pensar por si mesmo, de julgar um discurso. Nessa ausência de pensamento, nessa rarefação de consciência e de julgamento as pessoas se tornam supérfluas — são transformadas em coisas. O alvo da linguagem de Eduardo Bolsonaro é uma mulher com voz pública que defende a democracia — a jornalista Miriam Leitão. Aqueles que escolhem a omissão, o testemunhar em silêncio, muitas vezes se esquecem de que ainda assim optaram pelo mal, escreveu a pensadora Hannah Arendt. Então, é necessário reagir. Ainda temos algum tempo.
No seu ensaio Brasil, país do passado, você fala muito de um sentimento de nostalgia que marca o país. E a época da ditadura militar é um desses períodos sempre cercados por esse tom saudosista, por essa ideia de que com os militares não havia corrupção, que havia mais segurança... Por que você acha que a ditadura militar acende de forma tão forte esse sentimento nostálgico?
Nostalgia é o desejo por um lugar e um tempo que não existem mais ou talvez nunca tenham existido. Quando combinada à política, como acontece hoje no Brasil, a nostalgia substitui o pensamento crítico por um laço emocional capaz de projetar na imaginação das pessoas a visão fantasmagórica de um país ordenado e seguro, instalada num passado que foi roubado aos brasileiros, mas que não morreu. Evidentemente a nostalgia se sustenta numa falsificação histórica; ninguém restaura o passado, ainda menos aquele que nunca existiu. Vem daí o esforço sistemático do bolsonarismo — a linguagem de Bolsonaro — de corromper a veracidade dos acontecimentos históricos. Não é revisionismo; é uma estratégia política bem estruturada. Visa modelar certo passado e fazer dele o cartão-postal da visão de mundo reacionária.
Nessa visão de mundo, o presente em que vivemos é o tempo do desfazimento: tempo de decadência religiosa, de corrupção em matéria de política, degradação no plano dos costumes, insegurança social, multiplicação das desigualdades. Contém, a cada dia, mais passado e menos futuro. Bolsonaro entendeu que certo passado bem falsificado e alinhavado ideologicamente pode ser uma forte motivação política, mais poderosa até que uma guinada de futuro. O futuro está por nascer, é inexistente. O passado reescrito é irrefutável. É um falso passado, mas fornece segurança.
Bolsonaro investiu na oportunidade de administrar e modelar o passado para comandar um programa político de regressão ao autoritarismo que passou a ser reivindicado, sem muita cerimônia, por uma fatia da sociedade, nas ruas — com resultados que ninguém pode ainda prever. Nesse passado falsificado, a ditadura militar acende o sentimento de nostalgia por aquilo que ela promete: restaurar um Estado punidor pronto a garantir segurança e ordem e a reunir a população em torno de um núcleo ambivalente de referência afetiva e política, a “pátria”, definida como lugar de expressão de homogeneidade da nação brasileira. Esse Brasil restaurado se acredita feliz: os privilégios sociais estão garantidos, cada um conhece seu devido lugar, defende a hierarquia de gênero e a família patriarcal como modelo de organização da sociedade, e reclama por moralidade pública e por sua inscrição no ordenamento legal do país para regulação de corpos, comportamento e vínculos familiares — como, por exemplo, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e adoção de crianças por casais LGBTQIA+.
Após toda a demonstração de apego ao período da ditadura militar que tem marcado o governo Bolsonaro, deixo uma pergunta que está presente nas últimas linhas do seu ensaio: “Como reativar ou revigorar na sociedade brasileira a crença na democracia?”
Para que a democracia seja viável e se transforme em realidade, é preciso encadear dois princípios: a liberdade, que significa ausência de dominação; a igualdade, que traduz a capacidade de considerar todos os brasileiros verdadeiramente iguais em direitos. Mas, no Brasil, o problema se complicou. O país que se fundou na escravidão precisa encarar os resultados de uma modernização que forneceu apenas uma camada superficial e externa de valores civilizatórios para recobrir nossa sociedade autoritária, violenta, desigual e hierárquica — essa capa epidérmica foi nossa ficção engenhosa de nação, escreveu Joaquim Nabuco, numa reflexão que soa hoje premonitória.
Na Constituição de 1988, o Brasil apostou todas as fichas na democracia como um sistema político e uma forma de governo. Mas não encarou o próprio passado e deixou de lado o investimento na ideia de que a democracia é igualmente uma forma de sociedade, para usar a definição de Tocqueville. Havia aí uma grande oportunidade de olhar de frente o passado, pôr o dedo na ferida apontada por Nabuco e enfrentar o que existe em nosso passado: a sociedade de raiz escravista, historicamente violenta, autoritária, hierarquizada e desigual.
Para impedir que a democracia nos escape hoje pela janela, precisamos atravessar o presente nós mesmos e afirmar o seu sentido como ideia ética, jurídica e política. Democracia é um modo de vida em uma sociedade que se orienta por um conjunto de valores praticados cotidianamente pelos cidadãos — solidariedade, tolerância, amizade, solidariedade, compaixão. São esses valores que regulam os modos de convivência entre pessoas que têm igual direito de fazer parte da mesma comunidade. Sem isso, nós corremos o risco de submergir numa espécie de sociabilidade amorfa que está corroendo o tecido da sociedade brasileira contemporânea. Um número cada vez maior de pessoas que, devido à quantidade — ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos —, não tem relações comunitárias, não se integram nem compartilham propósitos comuns. Uma multidão de indivíduos isolados entre si preocupados apenas em cuidar da própria segurança e escapar da violência urbana, salvaguardar seus negócios e desfrutar de uma vida meticulosamente privada.
Qualquer expectativa de conexão desses indivíduos com os demais cidadãos é frustrada. Nessas condições, o sentimento de pertencimento social se esgarça muito depressa. Com isso, uma parte cada vez maior da população reduz sua presença ou deixa inteiramente ao abandono o espaço público, isto é, a variedade de espaços topográficos e políticos originalmente compartilhados entre pessoas que nutrem diferenças consideráveis umas com as outras, mas que estão dispostas ao debate, ao esclarecimento recíproco, e a informação mútua sobre os assuntos de interesse comuns. Sem um espaço que seja público e sem se importar com nenhum assunto que deva ser repartido coletivamente, resta a solidão — não há nada que ligue essas pessoas num agregado de interesses comuns e faça delas uma comunidade. É apenas um aglomerado de homens e mulheres vorazes, violentos, egoístas, covardes e ressentidos.
Não temos referência histórica para a situação em que nos encontramos hoje. O tempo presente é o nosso grande desafio projetivo. Pela primeira vez, estamos diante da urgência de projetar um futuro que ajuste as contas com o passado, mas esteja profundamente enraizado no presente. O que protege a liberdade é uma coisa só: nossa capacidade de mobilizar as pessoas em sua defesa. “E quem não pode ser mobilizado pela liberdade, necessariamente não pode ser mobilizado”, avisava Hannah Arendt, ainda na década de 1950. Então, talvez ainda seja possível desmantelar os problemas que puseram o país no rumo da catástrofe. E reunir as pessoas, defender os valores e princípios democráticos de forma radical, agora e depressa. Vale a insistência: ainda temos algum tempo.