Entrevista Rita Sales Huni Kuin junho.22 Arquivo Pessoal

 


Rita Sales Daní, 28 anos, é uma jovem liderança do povo Huni Kuin. Nascida na Aldeia Chico Curumim, na região do Alto Rio Jordão, no Acre, Rita se mudou no final da infância para estudar na cidade. Formada em pedagogia, desde pequena foi ensinada sobre a riqueza cultural do seu povo, aprendendo na aldeia a importância do trabalho coletivo. Sua trajetória é marcada pela articulação política e social, sendo uma das fundadoras do Kayatibu, centro cultural que reúne jovens comunicadores e artistas indígenas que vivem ou estão de passagem pela cidade.

A entrevista a seguir foi realizada em abril de 2022, na casa em que Rita vive com o marido e a filha no município do Jordão. Ao perguntar como gostaria de ser apresentada no texto de abertura, Rita respondeu que se reconhece como uma “aprendiz da floresta”, e também como “artista plástica tradicional”, já que através da conexão com a espiritualidade ancestral, aprendeu a técnica da pintura. Nos últimos anos, ela participou de importantes exposições de arte, entre elas a mostra Moquém_Surarî: Arte indígena contemporânea, ocorrida em 2021 no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Além disso, Rita tem viajado pelo país buscando expandir seus conhecimentos e frentes de trabalho, atuando, em seus próprios termos, como “uma ponte entre a aldeia e a cidade”.*


Você é uma das fundadoras do Kayatibu, centro cultural localizado no município do Jordão. O que significa o nome Kayatibu e como surgiu a ideia de fundar um espaço para reunir a juventude indígena na cidade?

Kayatibu significa “cura do espírito”. E significa também algo reto, um caminho reto. O intuito de criar o grupo, lá em 2013, foi unir a juventude que deixava a aldeia em busca de estudos na cidade. Quando a gente sai da nossa comunidade, percebe uma necessidade muito grande de se organizar para fortalecer nossa cultura e resistir aos preconceitos. Não é fácil ser indígena e enfrentar tudo isso, é uma responsabilidade muito grande. A gente vem pra cidade em busca dos nossos direitos, mas a primeira coisa que escuta é que se veio morar na cidade, então a gente deixou de ser “índio”. Por conta disso, o grupo foi criado pra chamar a juventude a se unir. É diferente quando você vive dentro da comunidade e pratica sua cultura diariamente. Na cidade, o jovem acaba deixando os ensinamentos um pouco de lado. E ainda enfrenta problemas como alcoolismo, envolvimento com drogas e tudo mais. Então, já que éramos vários jovens vivendo na cidade, decidimos criar um movimento e espalhar a força da nossa cultura para outros lugares. Afinal de contas, o Jordão recebe visitantes de vários lugares do mundo. E, além disso, foi também uma forma de partilhar o nosso conhecimento com os colegas não indígenas que moram no município, mostrando a importância das culturas indígenas nos espaços urbanos.


Como foram os primeiros passos para a criação do grupo?

Nós criamos o grupo e juntos começamos a estudar os cantos, as rezas, as danças e as tradições do nosso povo. E assim iniciamos o resgate de elementos da ancestralidade que haviam se perdido com o tempo. É como se nós fôssemos antropólogos pesquisando a nossa própria cultura. E quem seriam os nossos professores? Os mais velhos, os nossos anciãos. E por que a gente queria fazer tudo isso? Muitas pessoas vêm de fora para conhecer a nossa cultura. Mas a cultura não é como as pessoas imaginam, como se todos vivêssemos em harmonia, andássemos nus e nos alimentássemos bem da pesca e da caça. A minha ancestralidade já teve isso. Hoje, infelizmente, não temos mais. Desde que começaram as invasões das nossas terras e o contato com os brancos, nós perdemos muito da nossa língua materna e das nossas tradições. Antigamente, no tempo dos meus avós, não era como hoje que a gente faz entrevistas, escreve, grava e filma. Tudo tinha que ser decorado. Como era muito difícil passar todos os conhecimentos, cada vez que um ancião fazia a passagem, a gente perdia uma biblioteca inteira. Foi por isto que criamos o Kayatibu: para fazer essa ponte entre nós e os mais velhos, e assim não deixarmos a sabedoria ancestral do nosso povo se perder. Já que estamos aprendendo a cultura não indígena na cidade, decidimos aproveitar o conhecimento das novas ferramentas e tecnologias para a preservação da nossa memória, beneficiando assim as próximas gerações. No início, nem mesmo as lideranças do povo tinham fé que o grupo iria pra frente, por ser organizado apenas pela juventude. Mas a gente não desistiu e mostrou a seriedade do nosso trabalho. Atualmente, nós estamos vivendo um intenso processo de retomada. A partir do Kayatibu, diversos outros grupos foram criados. Nós organizamos o Aĩbu Keneya, coletivo de artesãs e artistas fundado para divulgar e fortalecer o trabalho das mulheres. Alguns parentes terminaram o Ensino Médio e voltaram para suas casas, formando grupos nas diferentes aldeias ao longo do Rio Jordão. Isso, pra gente, é muito satisfatório, porque o Kayatibu foi uma semente que nasceu no coração da juventude do povo Huni Kuin. E essa semente se espalhou e segue se multiplicando.


A meu ver, as artes indígenas são hoje um território de inúmeros diálogos e disputas políticas e existenciais. Como você entende o papel das artes visuais, da literatura e de outros meios de expressão estética para a construção de novas narrativas e perspectivas sobre as culturas indígenas?

Nós, artistas indígenas, temos trabalhado com diferentes linguagens estéticas com um primeiro objetivo muito simples: mostrar que a gente existe. E nós existimos não só como povos indígenas, mas também como cidadãos, como pessoas que têm direitos. Nós somos colocados sempre muito pra baixo pelo governo e pela sociedade em geral, como se fôssemos todos ingênuos e não soubéssemos de nada. Mas a partir do momento em que começamos a ter contato com o mundo não indígena, nós fomos pouco a pouco entendendo os nossos direitos; e, desde então, nunca mais paramos de lutar. A arte, em suas diferentes linguagens, é uma das nossas principais formas de luta na atualidade. Mas a arte, pelo menos pra mim, foi também uma forma de descoberta. Eu me descobri através da arte. Eu descobri quem eu sou, o que eu posso fazer, descobri as minhas próprias capacidades ao me expressar artisticamente. Em resumo, eu descobri que sou uma mulher do povo Huni Kuin, mas que eu posso ser muitas outras coisas além disso. 


Você e sua irmã Yaka Sales integraram o grupo de artistas da importante mostra Moquém_Surarî: Arte indígena contemporânea, ocorrida em 2021 no MAM de São Paulo, com curadoria de Jaider Esbell (1979-2021). Você poderia falar um pouco sobre a participação de vocês na exposição?

Nós ficamos muito felizes e honradas com essa porta que se abriu através da exposição no MAM. Somos vários povos indígenas, com diferentes conhecimentos, modos de vida e tradições. Participar de uma exposição como Moquém_Surarî proporciona uma troca de experiências e saberes muito importante, uma conexão muito forte entre parentes de diferentes regiões do país. Por muito tempo, a cultura do meu povo ficou escondida. Como a gente não tinha comunicação com o chamado mundo moderno, não era possível levar os conhecimentos da floresta para outros lugares. Infelizmente, eu não consegui conversar sobre isso com o Jaider antes que ele fizesse a passagem, mas a partir desse convite tão especial, outras oportunidades surgiram. A arte indígena contemporânea tem sido uma ponte fundamental, uma forma de comunicação e de encontro entre pessoas e povos de diferentes partes do Brasil e do mundo. 


Em março deste ano ocorreu o I Fórum de Mulheres Huni Kuin do Acre, em Rio Branco, organizado pela Federação do povo Huni Kuin do Acre (Fephac). Como você percebe a organização das mulheres no movimento indígena contemporâneo?

Ser mulher não é fácil. Ser mulher indígena também não é. Mas, atualmente, eu vejo um movimento fortíssimo das mulheres. Obviamente não são todas, mas muitas de nós já aprendemos qual é o nosso lugar. Muitas de nós já nos descobrimos e hoje temos a nossa própria voz. Assim como a sociedade em geral, eu acredito que as culturas indígenas ainda são muito patriarcais. Entretanto, aos poucos temos quebrado paradigmas e estamos construindo novos e melhores espaços. E que bom que alguns homens estão entendendo! Eu fico muito feliz de ver o debate sobre representatividade crescendo em todos os lugares. É claro que ainda precisamos aprimorar muitas coisas, mas olhando pra trás e vendo todas as nossas conquistas, eu consigo perceber um avanço muito grande. Nós estamos constantemente buscando novos conhecimentos e tentando repassar o máximo que a gente consegue para outras mulheres. Por isso, desde cedo eu tenho vontade de escrever um livro sobre a luta das mulheres do meu povo. Um livro narrado a partir da minha visão. Eu sou a primeira mulher Huni Kuin a se envolver na luta política no município do Jordão. Eu sei que comparando a nossa realidade com a de outros municípios, com a realidade de outras mulheres e etnias, ainda falta caminharmos bastante. Mas o importante é que já demos os nossos primeiros passos. Quando nós, mulheres indígenas, vemos uma parente fazendo algo importante, isso desperta em nós a vontade de crescermos e avançarmos juntas.


Você me contou que o Kayatibu precisou interromper as atividades por conta da pandemia de covid-19. Em seguida, em fevereiro deste ano, uma enorme enchente alagou a cidade do Jordão, e vocês perderam computadores, instrumentos musicais e outros materiais, dificultando ainda mais o retorno dos encontros. Quais são os principais desafios de manter um espaço autogestionado num momento tão complicado do país? Como a sociedade brasileira pode se engajar e ajudar no fortalecimento de experiências que busquem valorizar e difundir os conhecimentos e modos de vida indígenas?

A gente sabia desde sempre que ter um movimento, criar algo, independentemente de ser indígena ou não, não seria algo fácil. Como eu falei, quando nós criamos o Kayatibu, não foi por incentivo de ninguém; não foi por incentivo das lideranças do meu povo; não foi por incentivo dos poderes públicos locais. Foi um despertar da juventude. Desde então, nós conseguimos financiamento para dois projetos, os dois pelo Itaú Cultural. Mas aí veio a pandemia e tudo parou. O mundo inteiro parou. E, infelizmente, foi preciso pararmos os nossos encontros também (o que provocou certa desmobilização). Para completar, no início do ano veio uma enchente e o rio transbordou. A última vez que isso aconteceu foi há 15 anos. A nossa sede fica numa área de risco, em um espaço cedido pela prefeitura ao povo Huni Kuin. Quase tudo que nós compramos com a verba desses dois editais se perdeu com a chuva. Por isso, ainda não sabemos como e nem quando será possível retomarmos as nossas atividades. Nós gostaríamos que mais pessoas se interessassem por trabalhar junto com a gente, que nos ajudassem a viabilizar outros projetos e editais. Mas só de termos pessoas ao nosso lado, gente que ajude a dar mais visibilidade para as questões dos diferentes povos indígenas do Brasil, já é uma imensa forma de apoio às nossas causas. Eu vejo que algumas pessoas começaram a abrir os olhos para a importância desse compartilhamento de experiências. Assim como nós temos a aprender com a sociedade não indígena, a sociedade não indígena tem muito a aprender com as culturas dos povos tradicionais, com as histórias e saberes oriundos da floresta. Somos povos nativos e a nossa luta maior é pela união. Eu, como mulher indígena do Jordão, gostaria que essa mensagem chegasse a cada um que vai ler esta entrevista como um chamado pelo respeito aos povos originários. Como um chamado pelo respeito e pela união.

 

*O jornalista viajou para o Jordão com uma bolsa da Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research.

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