“Eu sempre estudo o meu momento, seja ele passado, presente ou um futuro simulado”, diz a ensaísta Heloisa Buarque de Hollanda (UFRJ). Autora de importantes antologias de ficção e não ficção – como 26 poetas hoje ou a coleção Pensamento Feminista –, ela agora lança mais um arquivo crítico: Feminista, eu?: Literatura, Cinema Novo e MPB obra que sai pela editora Bazar do Tempo, na qual Heloisa trabalha as trajetórias de mulheres que começaram suas carreiras artísticas nas três áreas do subtítulo do livro. O eixo temporal são os anos 1960 e 1970, época de irrupção da segunda onda do feminismo e de esboço de uma terceira onda.
Em Feminista, eu?, a autora nota, entre outras questões, que a quebra de barreiras de gênero nesses espaços dominados por homens (da literatura, do Cinema Novo e da MPB) não implicaram, por parte das artistas, uma adesão ao feminismo.
Nesta conversa por e-mail com o Pernambuco, Heloisa pensa essa rejeição dos anos 1960 e 1970 e discute suas diferenças em relação àquela que hoje se vê em mulheres periféricas. Também comenta, entre outros assuntos, a falta de protagonismo da literatura enquanto vetor de militância política naquelas décadas e fala sobre algumas escolhas que nortearam esse arquivo recentemente lançado.
Você tem um trabalho conhecido como organizadora de antologias de ficção (em especial, poesia) e de textos críticos. Ao mesmo tempo, suas memórias sempre estão articuladas com esses trabalhos: são os casos mais evidentes disso Impressões de viagem (sua tese) e Escolhas (seu memorial). Os arquivos críticos que você monta sempre expõem a sutura que existe entre memória coletiva e memória pessoal. Feminista, eu? tem lugar nessa lógica?
Sim! Eu sempre estudo o meu momento, seja ele passado, presente ou um futuro simulado. Isso é politicamente muito importante para mim porque me dá oportunidade de intervir no meu objeto de pesquisa seja dando visibilidade, seja usando minha posição acadêmica para legitimá-lo, seja iluminando criticamente o momento para seus próprios participantes. Isso ocorreu com Impressões de viagem, mas também nos meus escritos sobre a cultura das periferias. Quanto à memória, também sua observação é bastante pertinente. Há sempre um desejo de coexistência entre o narrar minhas memórias pessoais e de torná-las a expressão de minha geração ou de meu grupo de interesse no caso das minhas narrativas feministas, por exemplo. Esse recurso é bem comum em narrativas de minorias, são “narrativas de cardume”, como dizia Waly Salomão, referindo-se à potencialização da força dos peixes pequenos ao nadarem em bando.
Em Feminista, eu?, você mapeia especialmente as artistas inseridas — ainda que não necessariamente participantes — na emergência da segunda onda do feminismo até o começo de uma terceira onda. Muitas delas evitavam, recusavam e temiam o rótulo de feminista. No fim do livro, você pontua que essa recusa persiste em “mulheres de favelas, comunidades ou mesmo subúrbios”: elas não se sentiriam contempladas pelas pautas feministas, talvez por terem outras preocupações. Quais as aproximações e diferenças entre a negação que parte dessas mulheres e a que partia das artistas? Para você, a que se deve a persistência dessa recusa?
Acho que uma é bem diferente da outra. A primeira [a recusa do feminismo pelas artistas], que persistiu pelo século XX todo, devia-se a vários fatores. Antes de mais nada, nossos mitos fundantes foram bastante eficientes ao promover invisibilidade ou talvez, melhor dizendo, sombreando a estrutura de poder latino-americana, oligárquica, patriarcal, colonizada. Se muito se falou sobre a democracia racial, também se sugeriu uma democracia sexual a partir de imagens do poder das matriarcas latinas ou de uma suposta sexualidade livre de nossas jovens. Eu, por exemplo, só consegui perceber a opressão familiar e no trabalho que pesava sobre mim a 7.685,37 quilômetros do Brasil, quando fui estudar nos Estados Unidos. Dessa distância, longe da família, amigos e colegas consegui ver com clareza o sexismo brasileiro. Sobre isso, é importante observar que nossas lideranças feministas, em quase sua totalidade, só se reconheceram feministas quando no exílio ou em estudos fora do país. É realmente difícil ter clareza sobre o jogo de poder em nossos territórios.
Enfim, começamos pela desconfiança de que vivíamos uma situação de cordialidade entre os gêneros e, quando a palavra feminista começou a ser ouvida mais vezes, veio um tsunami de desqualificação que balançou as mulheres. “Feminista” passou a ser igual a “mulher feia”, “sapatão” (na época, um xingamento), “mal-amada”. Havia ameaças de que mulher inteligente não arranja marido, mulher fora do lar cria filhos desajustados e marginais e por aí vai num rosário infinito de maldições. Fazer face a esse backlash não era fácil. Mais uma coisa importante é que as artistas estavam em 1960 e 1970 entrando no mercado, o que já era um desafio. E temiam que, se identificando como feministas, seriam relegadas a um nicho de produção e consumo, o que não era aconselhável naquela hora difícil de reconhecimento de mercado.
Quanto à rejeição das mulheres de favelas em se identificarem como feministas, deve-se à não escuta das agendas feministas a seus problemas individuais específicos. Em bom tempo, o feminismo hoje é múltiplo e mostra uma clara tendência não elitista.
Antes de 1964, houve uma efervescência de mulheres escritoras na nossa literatura, mas essa tendência teria sido quebrada com a ditadura. Você diz que “a literatura, carro-chefe das décadas anteriores, não mobilizou as jovens intelectuais e ativistas da geração pós-1964.” A quê você atribui essa falta de mobilização?
Se você observar de perto, vai perceber que a geração de artistas dos anos 1960 e 1970 privilegia as artes públicas como o cinema, a MPB, o teatro e mesmo as artes visuais porque o grande ethos daquela hora era a militância através da cultura. A literatura, por seu caráter privado e de difícil divulgação em larga escala, desanimou um pouco os rebeldes dessa geração. Acho que por isso temos, sim, boa literatura na época, mas não novos movimentos literários de oposição.
Você aborda primeiramente, no seu livro, as personagens ligadas à literatura. Depois passa ao Cinema Novo e, então, à música. Dos três, parece que na literatura é onde mais houve espaço, e mais cedo, para as mulheres. Na escrita, há mais liberdade?
Sempre. A escrita é uma arte privada. A correspondência de mulheres é um clássico da escrita há séculos. O conto, a poesia, as crônicas em jornais femininos, por exemplo, tiveram uma presença enorme no século XIX.... As mulheres escrevem, escrevem, escrevem. E isso é maravilhoso.
Você conta que o cinema feito por mulheres quase não existiu durante o período do Cinema Novo, que era uma espécie de “clube do bolinha”, com bastante machismo e possibilidades de criação para mulheres somente como atrizes. As diretoras teriam conseguido um lugar com algum destaque nos tempos do Cinema Marginal, ainda que houvesse uma perspectiva predominantemente masculina. Tendo em mente a participação de mulheres nos dois movimentos, havia algo de substancial que dividia a forma como se tratavam as cineastas nos Cinemas Novo e Marginal?
Eu disse que as mulheres não foram aceitas no movimento do Cinema Novo. Fizeram muitos filmes na época como mostro no livro, mas nenhum tem a chancela Cinema Novo. Os cineastas eram fechados em si e não apenas não trabalhavam com diretoras mulheres, como criavam personagens femininas sempre sem grande luz. Hoje temos vários estudos e teses sobre as personagens mulheres no Cinema Novo. Por outro lado, as mulheres no Cinema Marginal eram grandes protagonistas. Mas é bom lembrar que, quando falamos da mulher no Cinema Marginal, estamos falando, quase que exclusivamente, de Helena Ignez, uma figura fortíssima e bastante fora da curva...
Na última parte do seu livro, sobre as mulheres na música brasileira, apesar do espaço dedicado às contribuições particulares de Elis Regina e Nara Leão, você decide focar nas compositoras da MPB. Falar das compositoras, em lugar das intérpretes, foi uma escolha consciente e, como você diz, penosa. Poderia comentar essa escolha?
Nossa música desde sempre teve grandes intérpretes, extraordinárias mesmo. Essas cantoras eram reconhecidas, prestigiadas, e frequentemente se firmavam como grandes Divas. Ao contrário, as compositoras não encontravam lugar no mercado fonográfico. O mais comum era afirmar que mulheres compositoras não vendiam, donde não eram contratadas. Foi no momento da MPB que as compositoras encararam esse desafio e se colocaram na linha de frente, ainda que tenham tido que enfrentar lutas, vaias e obstáculos de todo tipo. Foi essa a história da música que me atraiu: a das compositoras e instrumentistas, também canceladas na época.