Ariel Farace é uma figura magnética do teatro latino-americano contemporâneo. Nascido em Lanús, província de Buenos Aires, em 1982, estudou o ofício com diferentes mestres, como Alejandro Tantanian, Pompeyo Audivert e Mauricio Kartun. Suas obras cênicas já tiveram estreias em países da América Latina e Europa, e há 10 anos ele está por trás da Libros Drama (às vezes chamada apenas de Drama), como editor e idealizador do projeto. A editora é responsável por boa parte das publicações dramatúrgicas da Argentina e também tem inspirado outros projetos editoriais do Cone Sul, como foi o caso da editora brasileira Javali.
O que de longe pode parecer uma carreira adornada por prêmios e coroas de louro, de perto se revela teatralmente bruta: artesanal, rascunhada a mão e construída nos palcos improvisados da longa tradição do teatro independente argentino.
Em entrevista ao Pernambuco, Farace conta que abdicou de dois cursos universitários por falta de identificação com aqueles rituais e para se dedicar de maneira mais contundente às teatralidades. Naquele momento, dizia-se que ali se formavam críticos cheios de informações, mas com muita autocrítica e pouca inserção no cotidiano da arte. Aqui, o artista fala sobre a Libros Drama e seus processos, a sobrevivência da imagem na sua escritura, bem como seu fazer artístico que bordeia a marginalidade.
O projeto inicial da Libros Drama consistia em publicar 25 livros de dramaturgia argentina contemporânea. Após 10 anos, e alcançado esse primeiro ideal, a editora lançou sua “segunda dose”, que pretende abarcar mais 25 livros. O que permanece desde então e o que o tempo modificou nesse projeto editorial?
O gesto inicial da Libros Drama foi retratar a diversidade de poéticas que coexistiam na dramaturgia argentina contemporânea. Nasceu como uma extensão natural do meu trabalho criativo nas artes cênicas. Começou com uma espécie de performance anônima, na qual pequenos fanzines com obras atuais começaram a circular por alguns teatros independentes de Buenos Aires. Eu mesmo os levava e pedia que não se difundisse como haviam chegado ali. Naquele momento, consideramos necessário disponibilizar e fazer circular peças urgentes, para que pudessem dialogar com o presente. Quisemos dinamizar a cena dramática da cidade. Esse gesto se mantém vigente e continuamos considerando-o necessário, apesar de muitas circunstâncias terem mudado. Depois de dez anos, podemos dizer que colaboramos com a constituição de uma pequena comunidade de leitorxs de dramaturgia, incentivamos a criação de outros projetos editoriais e dinamizamos a relação entre livro e cena contemporânea. Difundimos poéticas inovadoras e favorecemos montagens em diferentes partes do mundo, por meio da participação em feiras e eventos. O lançamento da coleção Segunda dosis expande o germe inicial do projeto e talvez seja também um alerta: o trabalho da Drama ainda parece necessário.
A série original de livros, Otros Drama, apresentou um catálogo que era composto tanto por autores estreantes quanto por artistas de renome internacional, como Alejandro Tantanian e Santiago Loza. Como se deu a relação com os autores publicados e o que tem sido planejado (e realizado) para a Segunda dosis?
Em ambos os casos, a direção da coleção visa retratar a diversidade de poéticas dramatúrgicas que dialogam no – e com o – presente. Nesse sentido, a Libros Drama põe o foco nas obras e não nxs autorxs. Apostamos na mescla de experiências, já que o diálogo que promovemos é entre os textos e o presente, como acontece quando assistimos ao teatro. A relação com xs autorxs é variada. Mantemos uma relação muito atenta às estreias e às novas vozes. Pensamos na relação dessas poéticas com a tradição teatral da cidade e do país, para estabelecer diálogos entre gerações e experiências das mais diversas. Interessa-nos a singularidade, aqueles textos que levam a dramaturgia a radicalizar sua especificidade ou que a expandem para uma zona inesperada. Autoras como Eugenia Pérez Tomas devolvem a dramaturgia à poesia, María Ibarra a arrasta ao punk, Antonio Villa à escultura e Jimena Aguilar à música. No caso de artistas com certa experiência, escolhemos aquelas peças que supõem nelxs uma espécie de inflexão ou variação de suas poéticas; é o caso de Alejandro Tantanian, Romina Paula, Federico León ou de Mariana Chaud. Temos um gosto especial pelas primeiras obras. Nenhum laurel nos desvela, trata-se de retratar os modos com os quais a dramaturgia tenta dialogar com sua época e o diálogo que essas tentativas podem ter entre si. Drama é um drama feito por dramas.
A Libros Drama aproxima a dramaturgia da marginalidade da poesia, que precisou de formatos como o fanzine para circular e ser mais acessível para autores e leitores. Gostaria que você falasse um pouco mais sobre essa est/ética.
A arte na Argentina é marginal. Diante da falta de políticas culturais claras e instituições que as levem adiante, nós artistas criamos projetos independentes que incidam no território e assegurem uma cena da qual possamos participar. A Libros Drama tem como referência a tradição das editoras de poesia: tiragens reduzidas de livros em formato artesanal. Eu lia (e leio) essas publicações e sonhava com a possibilidade de ler dramaturgia escrita agora, como fazia com esses poemas. O formato do fanzine acabou sendo o ideal: livros maleáveis, perecíveis, curtos, com tiragens condizentes com suas possibilidades de produção e em escala sustentável, a um custo de produção acessível. Livros que replicam o caráter efêmero do teatro. Assumi essa herança. A dramaturgia e a poesia já compartem uma cena marginal no mercado literário, nas grandes livrarias seus exemplares costumam ocupar os mesmos cantos e se mesclarem. Com a Libros Drama observei essa cena, tomei a poesia como farol e atuei.
A materialidade da imagem sobrevive na sua escrita de diferentes formas: nos seus cadernos de artista (com caligrafias lúdicas); na superfície onde você escolhe editar seus livros; nas artes gráficas dos cartazes que a Libros Drama produz de forma bastante artesanal; nos postais que estampavam frases dramatúrgicas de seu trabalho Constanza Muere; nas suas escolhas estéticas como encenador... Essa visualidade sempre esteve presente na sua produção? Como você exercita essas vertentes?
A cena da escrita me desvela e dá razão à minha passagem pelo mundo. Escrever é, para mim, algo que se faz com o corpo, uma prática do corpo. Escrevo com as mãos, em cadernos, computadores, telefones. Escrevo ao atuar e ao dirigir teatro. Escrevo lendo. Ouvindo as pessoas conversar, assistindo a filmes, desenhando. A cada carícia: escrevo. É o traço deixado pelo meu corpo ao passar: um rabisco, uma frase, uma palavra. Igual ao meu corpo, eu diria que essa matéria, a palavra, está presente em mim, me constitui, desde sempre.
Quando os cartazes tipográficos passam a integrar a Libros Drama? De onde surge aqueles textos e como é o processo de produção?
Foi em 2019 que começamos a expandir para os cartazes tipográficos. Tratava-se de aprofundar o exercício lúdico que o projeto editorial vinha levando adiante e estendê-lo para o visual. Também implicou uma adesão a certos métodos de impressão de grande manualidade. A pegada da impressão tipográfica nos fazia pensar no impacto da leitura e do teatro sobre os corpos. Os textos respondem a diversas filiações poéticas: uma frase manuscrita na borda de uma folha por Antonin Artaud (“Nunca real sempre verdadeiro”), as prerrogativas de James Joyce para o artista “adolescente” (“Silêncio, exílio, astúcia”) ou a palavra mal-escrita com a qual Alfred Jarry revolucionou o teatro do século XX (Merdre!). Os cartazes criam uma espécie de guia para o projeto editorial, são os pôsteres da sala da Libros Drama. Na minha vida como artista, convivo com os materiais com os quais trabalho nos meus processos de criação ou com os poetas que idolatro, vivo com palavras e retratos, imaginei que outrxs pudessem querer vivenciar essa cena. Por último, também se tratou de levar o teatro à escala da frase e literalizar sua encenação no espaço. Talvez os cartazes sejam fantoches que cada um possa manipular e dar voz.
Você se entende como um artista que busca a marginalidade, correto? Em determinado momento você associou os livros convencionais de teatro a túmulos (seja por publicar muita gente morta ou mesmo por ser uma espécie de sarcófago que acumula as “joias” e diferentes arquivos que adornam uma carreira). Em contraponto a isso, a despeito de sua pouca idade, você tem um reconhecimento (inclusive internacional) que poucos artistas possuem no teatro latino-americano. Você tem receio de se ver dentro de algum desses túmulos ainda estando vivo?
A margem é um espaço de fronteira. Uma fronteira permite reconhecer uma distância e habilitar o cruzamento de um limite, alguma transformação. A transformação poderia ser minha tarefa como artista. Eu me pergunto. Enquanto isso, poderia dizer que sou alguém que observa o tráfego incessante de atos que acontecem ao seu redor e os canta desde uma borda. Essa borda é minha solidão, não é algo que busco, mas uma condição, talvez uma necessidade. Medos tenho e muitos, mas não há nada a fazer, mais cedo ou mais tarde alguma tumba sem joias chegará.
Há semelhanças entre seu trabalho como editor de livros e diretor de peças de teatro e performances?
A edição é, para mim, um projeto artístico, uma oportunidade de agitar a cena cultural da cidade em que vivo. O meu trabalho se confunde em diversas profissões e é este devir que lhe dá entidade. Há semelhanças e especificidades em cada tarefa que empreendo. Talvez o que prevaleça nessas mudanças laborais seja uma certa visão de mundo, alguma obsessão, um leitmotiv, o refrão de uma longa canção que reaparece de vez em quando. Fomentar a amabilidade, atuar de acordo com o que penso e sinto, praticar o gozo, crer na poesia: é aí que está o meu drama; aspiro a me refletir nesse espelho.
Por fim, quais editoras de teatro têm lhe interessado e por quê?
Creio que a Drama faz parte de um movimento que indaga como dinamizar a relação entre livro e cena. Uma espécie de teatro editorial onde distintos projetos propõem formas para essa relação. Na região, alguns desses projetos são irmãos ou parentes de Drama e não é por acaso que são precisamente artistas que os estejam mobilizando. Do Brasil, gosto muito da Javali, acho que sua impressão visual é sedutora e seu catálogo sempre me surpreende. No Uruguai, é interessante o trabalho desenvolvido pela Salvadora Editora. Na Argentina, existem muitos projetos que nos encantam: Ediciones Documenta Escénicas, cujos livros são processos que resultam em uma materialidade primorosa; Editorial Libretto, com a qual costumamos ir juntas a feiras; a coleção Gallinero, da Rara Avis Editorial, que enfoca poéticas bem singulares; Policarpo Q. também está forjando um catálogo bem pessoal. E há mais. Afortunadamente, a lista não para de crescer e celebramos: a mais vozes, mais drama.