“É tudo construção. E nessa construção entra sempre a imaginação. É através da imaginação, fantasia, que entra a ficção. Os fatos são construções.”, me diz o escritor José Castello. Colunista do Pernambuco e vencedor do Prêmio Jabuti, ele fala, nesta entrevista concedida via Zoom, sobre a reedição do seu Inventário das sombras (Editora Record). Acabamos conversando, também, sobre devaneios que confundem o real e a ficção, sobre seu jeito de pensar a literatura e sua relação com Vinicius de Moraes (1913-1980).
Originalmente lançado em 1999, Inventário das sombras foi recentemente reeditado com três novos textos. O livro reúne perfis (que são, grosso modo, retratos escritos) feitos a partir de duas décadas de entrevistas com poetas e escritores como Nelson Rodrigues, José Saramago, Caio Fernando Abreu ou Ana Cristina Cesar. Os novos textos se debruçam sobre Raimundo Carrero, João Gilberto Noll (1946-2017) e, em um trabalho de autorretrato, sobre o próprio José Castello.
Os perfis reunidos em Inventário das sombras são fotografias borradas em frente a uma paisagem desfigurada, que tentam extrair algo da singularidade de quem está na mira do autor. Castello insiste em dizer que tudo ali é fruto da memória, que é traiçoeira; demanda certo cuidado. Os retratos passam, então, a ser quase ficção, autoficção, com um pouco de crítica literária, marcados pela atenção especial voltada às “decepções” dos escritores, à “região de espíritos atormentados”, à “zona de penumbra, enfim, que move o fazer literário”.
Castello aborda, aqui, formas de construir (com palavras) singularidades situadas de maneira complexa entre realidade e ficção. A amálgama do factual com o quimérico é a marca do seu livro e, creio, também da conversa que tivemos, que você lê abaixo.
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O que é a literatura pra você? Já li em algum lugar você dizendo que o escritor precisa sempre reinventar a literatura de alguma forma. Como vê essa reinvenção na sua escrita?
Olha, parece meio pomposo falar isso de reinventar, parece meio pedante, né?, você tem que ser um gênio pra reinventar a literatura. Mas não é nesse sentido; é no sentido de que, para mim, a literatura está e sempre esteve intimamente ligada à minha vida. Então, tudo o que eu fiz na literatura, o que eu faço ainda hoje, de alguma forma está ligado à minha experiência pessoal. Na literatura, existe uma conexão vital entre o leitor e o escritor, que vai além dos protocolos, além das poses sociais, da hipocrisia social, do pomposo. Vai além de tudo isso. Porque tudo isso é uma bobagem, eu acho.
Todo escritor é um pouco obsessivo, eu sou muito. Você fica substituindo a palavra 30 vezes, mas não tanto por um preciosismo da linguagem, ou por um desejo de refinamento, ou de correção, ou de ser original, ou dizer de uma forma que ninguém disse. Tem escritor que tá nessas paradas até hoje, eu acho uma coisa super… doentia, eu não tô nessa. Não interessa se aquilo já foi dito daquela maneira ou não. Interessa o que aquilo significa para você quando você diz aquilo daquele jeito; que caminho você está tomando quando faz determinadas escolhas. E essas escolhas são sempre pessoais. É isso que eu procuro, nas oficinas, trabalhar com os participantes.
Não é questão de acertar. Não é nem questão de escrever bem – essa história também de escrever bem é muito relativa –, é questão de você encontrar uma voz que é sua. Ou seja, tentar chegar àquilo que você tem pra dizer. E o que é que você tem pra dizer? Que coisas você tem pra dizer? O principal é escrever.
Você sente que já digeriu Vinicius de Moraes? Sinto que nas suas crônicas, e mesmo no Inventário das sombras, há algo do jeito de Vinicius, das crônicas dele.
Você acha, é? [risos] Que horror. [risos] O Vinicius virou um problema na minha vida. Um problema, mesmo. Eu passei 4 anos e meio, quase 5, pesquisando e escrevendo a biografia dele [Vinicius de Moraes: O poeta da paixão, lançada em 1994]. Mas isso foi nos anos 1990. E depois isso não parou mais. Não é que meu livro seja uma maravilha ou extraordinário. Não é isso. Meu livro é bom, é ruim, cada um fala uma coisa. Me refiro a outra questão: ficar tanto tempo metido na vida de uma outra pessoa, como eu tentei ficar – pensava no Vinicius 24 horas por dia –, é uma coisa que fica pro resto da vida. É uma experiência muito funda. Além disso, socialmente, você passa a ser visto como um especialista de Vinicius.
Não escrevi mais sobre ele, praticamente. Escrevi agora nesse capítulo novo no Inventário das sombras, tentando rememorar o que foi complicado pra mim nesses anos de relação passional direta com o Vinicius. Não pensava em mais nada, o mundo não existia, existia o Vinicius, era uma coisa meio louca. Mas as pessoas passam a te ligar ao Vinicius, o tempo todo. Até hoje, sou chamado pra falar, pra participar de mesas sobre o Vinicius. E as pessoas se encontram comigo na rua e falam do livro, “daquela parte tal”. E eu nem lembro mais, foi há 30 anos. Já esqueci, escrevi muita coisa depois disso.
Pensando nessa relação com as pessoas biografadas, há influência de João Cabral em você? Foi algo similar ao que houve com Vinicius?
O João Cabral era uma pessoa completamente diferente. Era um cara solene, reservado, fechado, rabugento. Bom, com o Vinicius, comecei a fazer a biografia quando ele já tinha morrido. Só tive um encontro com ele, de meia hora: horrível, ele tava com a maior má vontade. O João Cabral, não. Ele tava muito solitário, tava muito velho, ficando cego, com problemas de locomoção porque tomava remédios psiquiátricos e misturava com álcool, tomava errado as doses. Tava cheio de problema, ficava muito em casa. Tive 20 e tantos encontros com ele pra conversar para o livro [João Cabral de Melo Neto: O homem sem alma, biografia lançada em 1996].
Então, na relação com João Cabral, o que aprendi com ele, ou com a poesia dele? Sempre uso o seu trabalho como exemplo, mesmo de prosa. Aprendi essa questão de você nunca estar satisfeito com o que está fazendo. Sempre querer mais. Sempre cortar, reescrever, mudar, tentar outros caminhos, isso ele tinha muito forte. Ao contrário do Vinícius, que era muito derramado.
Falando agora do Inventário das sombras em si: como foi voltar a compor o livro depois de tantos anos, sendo outra pessoa?
O que eu fiz a mais foram os três últimos capítulos, não mudei praticamente nada do que já tava ali. Fiz entrevistas com muitos escritores, que escolhi não incluir no Inventário das sombras, para a Folha de S.Paulo. Pensei em incluir [no livro] a Lygia Fagundes Telles, mas acho que ela ainda não tinha morrido. E eu sabia que ela estava muito doente e muito reservada. Me deu um pouco de temor, não queria machucar a Lygia.
E esses três capítulos novos, os que tratam do João Gilberto Noll e do Raimundo Carrero – o Noll foi um grande amigo e o Carrero é um grande amigo meu. E o terceiro é essa tentativa maluca, essa egotrip vergonhosa de fazer um autorretrato. Também estou falando de mim, tive muita dúvida se ia parecer uma coisa meio exibicionista – foi uma egotrip.
E por que nesse capítulo autobiográfico você falou do José Castello dos anos 1990, em lugar do Castello de hoje?
Falar de hoje é sempre mais complicado. É que naquele momento [anos 1990], pra fazer aquela biografia do Vinícius, houve uma ruptura muito grande na minha vida. Abri mão de coisas, precisei de certa forma enlouquecer para fazer a biografia do Vinícius. As melhores coisas que a gente faz na vida têm uma certa dose de loucura; se não têm, não vai sair bom, em todos os departamentos. Agora, no texto que está no Inventário das sombras eu conto mais dos meus dilemas de me ver como biógrafo. Porque quando você se declara biógrafo de alguém, de certa forma você toma posse daquela pessoa. Ainda mais porque não havia nenhuma biografia do Vinicius. Eu não tinha referência. Então, o que eu escrevesse seria a verdade – quando eu sei que não é a verdade, é uma parte muito pequena da verdade.
Eu fiquei num estado de muita angústia por tomar posse da vida de alguém, no caso, do Vinícius. E de uma forma radical, porque, por exemplo, quando escrevo um retrato, como no Inventário das sombras, não tenho a pretensão de contar a vida inteira do Saramago, da Hilda, da Clarice – é um flash, como um retrato, mesmo. Escolho te fotografar de frente, sentado, com o fundo branco. Escolho e pronto. Agora, a biografia clássica tem a pretensão louca de contar tudo. E isso é que é muito aflitivo. Além de eu achar que é uma coisa maníaca, impossível, fadada ao fracasso.
Esses flashes têm uma atmosfera muito específica. Em especial, o de Ana Cristina Cesar, no Inventário das sombras. Nele, você tenta se explicar demais, como fosse alguém rememorando uma paixão antiga, meio secreta até hoje, talvez. O quanto dessa atmosfera que você cria nos seus capítulos é pensada? E o quanto é só derramada?
Taí uma pergunta que eu não sei responder. Pelo seguinte: várias pessoas, quando leem esse capítulo, dizem “eu não sabia que você era apaixonado pela Ana!?”, “você namorou a Ana C.?”. Fico muito surpreso de isso aparecer para as pessoas. Porque em nenhum momento aconteceu nada parecido, embora ela fosse uma pessoa que namorasse um monte de gente. Nunca tive a preocupação de que isso poderia aparecer. Me intriga esse teu comentário, várias pessoas comentam isso. Até me perguntei, “será que eu era apaixonado por ela e não sabia?”. Pode ser, sei lá. Ela era muito bonita, sedutora, muito inteligente. Todas essas coisas que a gente já sabe. Mas cada leitor vê o que quer e você não tem o menor controle sobre isso. E nem vai ter. Não adianta se preocupar com isso.
No capítulo sobre Dalton Trevisan, você diz que ele olha para as pessoas com desprezo, indiferença, e o compara a Anton Tchekhov, que via as pessoas com compaixão. Que tipo de olhar você dirige às pessoas sobre as quais escreve?
Olha, eu acho que tem que ter um pouco de paixão. Quer dizer, na minha maneira de ver. Inclusive, você tocou no caso do Dalton – é importante, é difícil dizer isso, mas vou dizer –, eu não só nunca tive nenhum sentimento de grande afinidade com Dalton, como ele não é nem um escritor que me empolgue muito. No entanto, desde que vim a Curitiba algumas pessoas, que diziam ter uma relação com ele – não sei nem se tinham –, vinham me dizer “olha, o Dalton ta muito intrigado porque ele tem certeza que você veio para Curitiba escrever uma biografia sobre ele, está apavorado”.
Eu nunca tive intenção de escrever uma biografia do Dalton, não sou um leitor do Dalton, não sou um leitor apaixonado por Dalton. Nunca tive nenhuma relação especial com a literatura dele, embora reconheça que ele é um escritor importante. Decidi incluí-lo no Inventário das sombras justamente por isso. Ele se transformou numa figura que ficou me rondando sem que eu soubesse disso e sem que eu tivesse interesse algum em me aproximar dele como pessoa, escritor, de escrever uma biografia. Só por isso ele entrou. Os outros todos, de alguma forma, eu tive ali uma paixão com eles, sabe?
E por que a sua predileção por moldes reais? Mesmo em Ribamar, romance que você lançou em 2010, algo real é usado como base para a ficção. Ou: qual a diferença entre criar um Nelson Rodrigues e criar um personagem como o Raskolnikov de Crime e castigo?
Olha… acho que aí entra o jornalismo. Bom, de um lado – meus amigos jornalistas não gostam que eu diga isso –, acho que o jornalismo foi um grande erro na minha vida. Dos 20 aos 40 anos, fiquei dentro da redação trabalhando 24 horas por dia. O pouco que eu consegui escrever era completamente medíocre. Tanto que não guardei, jogava fora. Foi quando surgiu o convite para ser biógrafo do Vinicius de Moraes, que eu pensei “ou aceito e consigo me livrar do jornalismo, me afastar e entrar na literatura; ou vou ficar como jornalista, morrer, infartar numa redação aos 50, 60 anos, sei lá, e acabou”. Tenho a impressão, cada vez tenho mais convicção, de que foram 20 anos perdidos, jogados fora, nesse sentido da minha relação com a literatura.
Em outros sentidos, não. O jornalismo me deu três coisas. Primeiro, eu era um garoto completamente tímido, fechado, travado. No jornalismo, você é obrigado a perguntar as coisas mais escabrosas. Tive que me transformar como repórter, como pessoa. A segunda: me ensinou a escutar. E a terceira coisa é que o jornalismo me jogou em situações de vida que eu jamais teria vivido. Não tô me referindo apenas a encontros com grandes escritores geniais e não sei o que. Falo de estar numa favela, no meio do tiroteio, ter que me esconder embaixo da cama de uma mulher idosa, que nem sabia quem era, para não levar bala na cabeça. Tive que viver realidades que de outra forma não teria vivido. Acho que tudo isso me marcou muito. Me marcou muito essa ideia de que… a realidade é muito mais rica do que a gente imagina. A realidade tá muito mais infiltrada de fantasia, de ficção do que a gente considera.
Grande parte da realidade é ficção pura – já fui a um seminário de jornalistas e disse isso, quase me fuzilaram. [risos]
E, daí, como distinguir a realidade da ficção, as máscaras das pessoas?
As máscaras são reais! A ficção é real. Se eu chego aqui para entrevistar você e adoto a postura do repórter, estou vestindo uma máscara, um papel, um uniforme. Não existe a Verdade, perfeita, escondida no fundo do baú. É tudo construção. E nessa construção entra sempre a imaginação. É através da imaginação, fantasia, que entra a ficção. Os fatos são construções, a gente sabe disso, mas é uma coisa muito mais escandalosa do que a gente considera. E, portanto, essa fronteira ficção/realidade – não é que ela não exista, mas é muito tênue. Ela é toda furada, vai passando coisa de um lado para outra; a realidade não existe sem ficção e a ficção não existe sem realidade.