Lançado em julho de 2022, Motivos para cavar a terra é o terceiro livro da paulistana Lilian Sais e obra vencedora na categoria poesia da 6ª edição do Prêmio Cepe Nacional de Literatura. Nesse trabalho, a autora de Acúmulo (Patuá, 2018) e Uma baleia nunca dorme profundamente (Urutau, 2021) se posiciona de forma crítica e sagaz em forte diálogo com o contexto histórico de nossos tempos, construindo e eventualmente desconstruindo os simbolismos associados ao gesto de cavar o solo. Em seu percurso ao longo do livro, acompanhamos Sais por seus múltiplos tratamentos metafóricos dados à temática da terra, tanto em sua faceta mais suave de pulsão de vida quanto em sua versão mais sombria de pulsão de morte. Em Motivos…, a terra se apresenta tanto como metáfora e literalidade, como gênese ou fim – e trabalho sem fim. A memória, o tempo e o ofício se costuram, constituindo um fio trágico invisível que, ao mesmo tempo, une e nos desestabiliza diante do horror e da tentativa de dar sentido ao indizível.
Seu livro traz à tona uma discussão atemporal – particularmente infeccionada nos últimos tempos – sobre a banalização da morte e seus ritos, sobretudo a partir da vivência traumática da pandemia. Vimos a morte escalonando em níveis massivos e a falta de infraestrutura tornando tudo ainda mais catastrófico. Como você enxerga a relação entre os ritos de final de vida e os temas abordados no seu livro?
Cavar a terra para enterrar os nossos mortos é um gesto que fazemos há muito tempo como humanidade. Posso estar enganada, mas acredito que entre os estudiosos esse ato deve ser um marco importante. Houve um momento na evolução humana em que não pareceu mais razoável deixar um corpo insepulto para trás. Foi necessário fazer alguma coisa com esses corpos e uma dessas coisas é cavar a terra, enterrar os mortos. Esse gesto, via de regra, em diferentes civilizações, vem acompanhado de ritos propriamente ditos. É muito curioso pensar que em cada época e lugar há uma posição certa para o corpo estar na hora de ser enterrado, os objetos que são enterrados junto a quem se foi, toda uma prática específica de despedida que vai muito além do que seria uma preocupação prática de se livrar, por exemplo, da visão e do cheiro da putrefação. Escrevendo o livro, eu pensava muito sobre no que consiste o humano diante da morte, porque os rituais fúnebres em si me parecem ser uma característica importante do humano. Então sem dúvida esse é um tema presente e um dos aspectos importantes do livro.
Ler o seu livro em 2022 tem o poder de nos transportar a várias camadas espaçotemporais ‒ inclusive nos remonta diretamente a abril de 2020, quando, ao ser questionado por um jornalista sobre o número de mortos vítimas da covid-19, o atual presidente da República respondeu: “não sou coveiro, tá?”. Nesse sentido, você poderia falar um pouco sobre a “eu lírica” dos poemas – essa mulher coveira que abre os primeiros versos?
Antígona é a “coveira” mais antiga que conheço. Pensei então em abrir o livro com a imagem de uma Antígona contemporânea, uma coveira na beira de uma estrada escura, onde pouco se enxerga – no lugar de uma descida aos infernos, o inferno na superfície. Ao mesmo tempo, após esse poema inicial, a coveira se confunde com a imagem de uma poeta, que procura no som da pá cavando a terra um metro ancestral para produzir versos. É uma forma de perguntar: se é esse o tema, qual linguagem é capaz de dar conta dele? Que linguagem pode abarcar esse material que foi apresentado no poema de abertura? Como levar isso para a questão formal? Na poesia, o ritmo só existe porque existe a pausa, a cesura, o silêncio. E é preciso silêncio para honrar os mortos também. Um silêncio ao qual não nos permitimos durante a pandemia, não paramos para velar os mortos e precisaremos fazer isso em algum momento. Mas, em relação à poesia, me interessa muito também a ligação dela com a morte, porque existe a hipótese de que os lamentos fúnebres foram a primeira forma de poesia. Então, seja através do ato de cavar a terra ou de cantar esse ato em poesia, dá na mesma, essa busca é uma investigação sobre o que nos faz humanos. O livro tem esse movimento duplo, de, diante do horror, investigar o que constitui mais essencialmente a humanidade e, ao mesmo tempo, buscar uma linguagem que dê conta de narrar o nosso tempo, uma arte poética.
Como foi a experiência de escrever seu livro durante a pandemia? Motivos para cavar a terra se apresenta como uma obra que dialoga de frente com os eventos e desastres de seu tempo. Quais as suas principais preocupações durante o processo de escrita?
Sabe, por incrível que pareça, uma preocupação era de que não fosse um livro sobre a pandemia. Ainda hoje, tenho certeza de que eu não saberia escrever um livro exatamente sobre a pandemia. Acho que um momento histórico como esse me exige um tempo de elaboração mais longo. Claro que a covid-19 foi muito escrita em tempo real, o que talvez seja meio inédito. Muitos discursos sobre a pandemia foram produzidos enquanto ela acontecia. Mas eu, de fato, não consigo narrar nada em tempo real. Preciso de um distanciamento maior. Por outro lado, não tinha a intenção de escapar ao nosso tempo, pelo contrário: o artista que me interessa é aquele que busca abarcar o seu tempo. Acho que minha preocupação, no fim das contas, era entender como lidar com essa falsa contradição. Primeiro entender o que era o contemporâneo a mim, depois buscar o que havia de universal nesse contemporâneo e o que havia desse contemporâneo no universal, em especial em algumas tragédias gregas. Daí escolhi essa imagem: o gesto ancestral de cavar a terra como algo que une a todos os seres humanos e a que poderíamos chamar, em certo sentido, de realidade.
Mas eu também tinha preocupações mais táteis que essas. Por exemplo, eu comecei a escrever o livro um dia depois de ser demitida, então uma das minhas maiores preocupações era como eu ia pagar as minhas contas. Por isso inscrevi o livro no prêmio, inclusive. Eu pensava em como eu poderia viabilizar a minha existência como escritora, como poeta, que é o que eu realmente sou. E acho que a gente ainda fala disso, da arte como ofício, bem menos do que devia.
Ao longo da leitura, a impressão que fica é de que morte e vida se entrelaçam bastante na imagem que dá título à obra. Para você, como se dá a aproximação entre o ato de cavar a terra nos dois principais ofícios aludidos em seu livro: o do coveiro e do agricultor, com seu gesto de arar o solo para prepará-lo para o plantio/cultivo/colheita?
Cresci numa casa que tinha um quintal cheio de árvores, tinha até uma roseira. O cheiro da terra me conduz a esse lugar de afeto, a lembranças que guardo com muito cuidado, à ideia de início de vida. Ao mesmo tempo, a morte se apresentou para mim muito cedo, e com ela esse imaginário da terra como a cova, o lugar em que a vida termina. Soma-se a isso o fato de que cresci vendo, na cidade em que eu morava e na televisão, a cada temporada de chuva, os deslizamentos de terra, pessoas perdendo suas casas, pessoas soterradas. E teve [os desastres ambientais de] Mariana, Brumadinho e tudo aquilo que não é terra, mas também é terra. A terra sempre se apresentou para mim em uma ambivalência. Um amigo me chamou a atenção para o fato de que, desde a epígrafe, o livro traz essas duas pulsões: a pulsão de vida e a pulsão de morte, que nem sempre estão separadas, muitas vezes se misturam.
Além disso, é importante destacar que coveira e agricultora são justamente isso que você disse: duas trabalhadoras representam dois ofícios. Eu estava pensando muito sobre questões relacionadas ao trabalho, não à toa uma das partes do livro se chama “uma mulher e o seu pão”. O trabalho, o capitalismo, a exploração da mão de obra, todos esses são temas importantes para o livro.
Quais autores e autoras te servem de mobilização, gatilho e/ou influência para escrever? Você se sente dialogando diretamente com algum(a)(s) autor(a)(s) em particular em Motivos para cavar a terra?
Desde criança eu nunca conheci nada mais fascinante do que a linguagem. Aprendi a ler com a minha irmã, antes de entrar na escola, num dia em que bati com a cabeça na quina de uma pilastra e um galo tremendo nasceu na minha testa. Eu chorava muito, acho que mais pelo susto do que pela dor. Então a minha irmã ficou do meu lado com um livro e começou a ler ele para mim. Ia lendo e me apontando palavras, me ensinando a ler. A literatura se apresentou na minha vida como isto: o susto depois do susto. A partir daí, lendo e desenhando as letras ainda com dificuldade, eu presenteava as pessoas de quem eu gostava com trechos de livros e de letras de música que eu copiava em folhas de caderno. Para mim não tinha nada mais bonito para se dar a alguém do que palavras. Poderia parecer bastante óbvio que eu me tornaria poeta, mas não foi bem assim. Eu não sei explicar por que, mas apesar de escrever desde sempre, eu nunca imaginei que eu poderia ser, de fato, escritora. Cursei Letras e conhecia basicamente os clássicos e o cânone, e, obviamente, não havia realmente espaço para uma mulher ali. Eu escrevia para mim, era o que eu dizia. Foi há alguns anos que um amigo me presenteou com Um útero é do tamanho de um punho, da Angélica Freitas, e depois de ler o livro passei a entender que eu também poderia ser escritora, ocupar um espaço que, na minha cabeça, antes, só poderia ser ocupado por homens e, na sua maioria, brancos. Lembro também que o primeiro livro de poesia da Cepe que eu li foi o seu Mulher sob a influência de um algoritmo, Rita [o livro venceu o 3º Prêmio Cepe Nacional de Literatura na categoria poesia].
Mas conto tudo isso para dizer que sim, é nessa zona fronteiriça entre o eu e o outro que nasce a minha literatura. No Motivos para cavar a terra tem dois poemas em homenagem a essa minha descoberta da literatura contemporânea brasileira escrita por mulheres, brincando com o Google de formas diferentes, lembrando Angélica Freitas. Eu dialogo mais diretamente, também, com Manuel Bandeira, Marília Garcia, Mar Becker e Sófocles. Mas, de modo geral, outros autores que têm me movido à escrita são Adília Lopes, Ana Martins Marques, Gonçalo M. Tavares e o meu companheiro, o Ricardo Terto.
Outros dois livros seus abordam a imagem e a temática polissêmica da baleia, tanto na poesia (Uma baleia nunca dorme profundamente) quanto na prosa (O funeral da baleia, lançado pela Patuá). Em Motivos para cavar a terra, a baleia retorna também ao texto. Gostaria de saber como você entende a intertextualidade da imagem da baleia ao longo da sua obra.
A imagem da baleia é para mim uma investigação sobre o peso, algo situado no limiar entre a vida e a morte, ou, em outros termos, entre a potência e a exaustão. Por isso, minhas baleias em geral estão sobre a terra. É só na terra que pode haver o peso em sua completude. Daí, sair do contexto imagético das baleias e ir, nesse livro, mais para o campo da terra me parece um movimento natural. Claro que, no que diz respeito às baleias, há outras simbologias envolvidas, que têm a ver, por exemplo, com mulher, corpo, voz, canção, poesia, vida, morte. Mas eu prefiro deixar os leitores e os críticos tirarem suas próprias conclusões a respeito disso.
“se o buraco é mais embaixo/ bem-vinda/ eu te ensino a cavar”: o leitor é, então, convidado a aprender métodos, motivos e convicções para cavar a terra, aprendemos a semear e lavrar o sangue, como num ritual, conduzidos pela voz de sua eu lírica, habilmente costurando diferentes tempos e espaços, diferentes ofícios e posições subjetivas numa jornada trágica. Para você, a escrita pode desempenhar um papel no trabalho hercúleo deste luto coletivo que estamos vivendo?
Assim, de bate-pronto, penso em três papéis principais. Vejo a escrita como uma investigação de um tema, e essa investigação nos ajuda a compreender, a elaborar, a saber que nome dar às coisas, a organizá-las, o que me parece essencial em um processo de luto. Além desse, há um segundo papel, o de registro. Registrar é o que permite que as histórias e as pessoas perdurem, cheguem às gerações futuras. Em um país onde a memória coletiva é um problema, o registro se torna especialmente relevante. O terceiro papel que me ocorre ultrapassa o registro da realidade, ou seja, é o papel de criar imaginários. Ele é o mais essencial. Só iremos superar o luto coletivo depois de construir um imaginário que contenha outros futuros possíveis, diferentes do agora.
Para a nossa sorte, sua produção dos últimos anos tem sido bastante prolífica. Há algum novo projeto em andamento? Em caso afirmativo, pode nos contar um pouco mais sobre?
De poesia, estou trabalhando principalmente num livro que tem o título provisório de Lances, manobras e partidas, mas que eu também considero chamar de O livro do figo. Ele foi recém-contemplado pelo ProAC [programa de incentivo à cultura no estado de São Paulo] e, se tudo der certo, deve sair no ano que vem. De alguma forma, é um livro sobre amor, também brincando com essas duas pulsões, a de vida e a de morte, e com o imaginário dos jogos. Além dele, estou trabalhando em um romance novo, um livro de não ficção e em outros projetos de poesia, mais lentamente. Seguimos cavando, não é?