Juliana dal piva Mauro Figa 2

 

Às vésperas das eleições, a Justiça censurou duas reportagens do Portal UOL que revelavam transações imobiliárias feitas pela família do presidente Jair Bolsonaro (PL): pelo menos 51 dos 107 imóveis negociados pelo clã teriam sido pagos, total ou parcialmente, com dinheiro vivo (somando R$ 25,6 milhões em valores atualizados). As matérias, escritas pelos repórteres Juliana Dal Piva e Thiago Herdy, já estão novamente disponíveis (aqui e aqui), depois que o STF derrubou a decisão judicial anterior. Uma decisão que reacendeu o debate sobre a liberdade e a segurança da imprensa brasileira.

Há mais de três anos investigando o patrimônio da família Bolsonaro, Dal Piva acaba de lançar O negócio do Jair (Companhia das Letras/Zahar), que chega na esteira de uma produção editorial investigativa sobre o histórico do clã presidencial. Fazem parte do filão títulos como O ovo da serpente, de Consuelo Dieguez, O cadete e o capitão, de Luiz Maklouf Carvalho, e Sem máscara, de Guilherme Amado.

Em conversa com o Pernambuco por e-mail, Dal Piva comenta o que ainda poderá ser desvelado caso Bolsonaro perca o mandato presidencial já no próximo domingo —  o que fará com que perca, também, a blindagem do cargo — e fala sobre a sensação de insegurança de se fazer jornalismo no atual cenário brasileiro.

 

O esquema de repasse e lavagem de dinheiro, chamado de “negócio do Jair”, é relativamente simples, caseiro, desde a própria expressão. Alguém é contratado, não precisa ir trabalhar, ganha salário e repassa a maior parte ao chefe do esquema. O “negócio do Jair” estaria ocorrendo pelo menos desde o segundo mandato do atual presidente. Por que demorou tanto para termos acesso a essa história?

Um dos aspectos que deixaram essa história escondida foi a falta de transparência. As leis que permitiram a publicação de dados de assessores na internet começaram a ser implementadas a partir de 2009. Mesmo assim, até hoje é difícil ter acesso a esses dados nas Casas Legislativas. Tive que pressionar muito para que pedidos de acesso à informação fossem atendidos para saber listas de funcionários, salários, crachás etc.

Outro ponto que escondeu tudo isso no caso do presidente em si é que antes ele era um deputado tido como "baixo clero", e era menos investigado pela imprensa porque não tinha poder, de fato, não influenciava.

Isso muda quando ele vira presidente. Então as histórias dele começam a ser investigadas a partir da eclosão do caso Queiroz.


O próprio presidente já falou de rachadinhas com a maior naturalidade, dizendo que a coisa é “bem comum”. Também na população parece haver algum tipo de dormência em relação a esses tipos de crimes (crimes que recebem o diminutivo de “inhos”, quase como se não se qualificassem como corrupção de verdade). O que você pensa da reação pública ao esquema de rachadinha narrado no seu livro? Num mundo ideal, essa história não deveria derrubar presidentes?

Acho que muitos aspectos são bastante graves e, sim, em outra situação, outros tempos, teriam levado um presidente a sofrer consequências mais sérias. Toda vez que o caso do senador Flávio [Bolsonaro] avançava, mais coisas [relativas ao] envolvimento do presidente apareciam. O presidente se reuniu no Palácio do Planalto pra discutir estratégias do caso do filho com agentes do governo, interferiu na PF, no Ministério da Justiça, no Coaf e em vários órgãos, em decorrência do medo que tem dos avanços dessas investigações. Ao mesmo tempo, porém, para se manter no cargo ele criou uma forte aliança com o PP e PL, o centrão, para impedir que processos de impeachment avançassem - e também manteve um escolhido seu na PGR (Procuradoria-Geral da República).  


Como o método de Bolsonaro lembra muito o de Trump, é comum olharmos para o que vai acontecer com o ex-presidente dos EUA para ter alguma ideia do que pode vir a acontecer com Bolsonaro. Lá fora, Trump já é investigado e a coisa não parece estar indo muito bem para o ex-presidente americano; mas parece haver um drama institucional enorme em investigar — e quem sabe condenar — um ex-presidente, afinal, eles são populares. Você julga que no Brasil existe clima político para que, depois das eleições, o “negócio do Jair” seja averiguado e punido?

Existem várias investigações que podem destravar depois das eleições. Além do caso do senador Flávio, [há os casos de] Carlos [Bolsonaro] e [Ana] Cristina [Valle], a segunda mulher do presidente, que são investigados pelo MP-RJ e estão com os sigilos bancários quebrados nesse caso. Cristina também é alvo de uma investigação da PF por usar um laranja para a compra de uma mansão em Brasília, caso revelado por nós no UOL em 2021. O próprio Bolsonaro tem procedimentos parados na PGR. Se ele perder a eleição, existe preocupação no seu círculo íntimo em relação a todos esses casos.


Jair Bolsonaro gosta de jogar com certas narrativas fantasmagóricas que ele projeta sobre a nação. Para seus fãs, ele espalha que há o comunismo e a ideologia de gênero à espreita; aos inimigos, que tenham cuidado com o derradeiro golpe e a volta da ditadura. O medo provocado é sempre real, ainda que a ameaça não o seja. Como lidar com esse comportamento do presidente, especialmente agora que se especula tanto sobre uma réplica da invasão ao Capitólio, em caso de derrota?

Jair Bolsonaro está há um ano criando uma narrativa falsa de que as urnas são problemáticas para justificar uma eventual derrota. Em caso de derrota, ele jamais vai admitir que a população brasileira não o quis mais no cargo. Bolsonaro há 30 anos ameaça a democracia brasileira em diferentes situações e discursos. A questão é o eco que isso terá em outros atores políticos e governamentais. No momento, não parece existir força real para nenhuma medida golpista, mas é necessário acompanhar. Existe muito tempo da eleição até a posse.


Você passou anos investigando quase exclusivamente o esquema de corrupção que teria Jair como “01”. Dá para dizer que vêm das rachadinhas todos os milhões de reais, em dinheiro vivo, utilizados pela família Bolsonaro para pagar contas e imóveis, ou ainda há o que ser investigado? E como o seu trabalho muda, caso Bolsonaro perca a cadeira presidencial?

O que posso afirmar com segurança é no caso do senador Flávio, até porque o MP do Rio de Janeiro o acusou de desvio de R$ 6,1 milhões e de usar dinheiro de rachadinha para comprar imóveis. No restante dos casos, há indícios parecidos em compras de Cristina, na época do casamento com Jair Bolsonaro, e de Carlos Bolsonaro. É necessário aprofundar as investigações para ter mais detalhes.

Sobre meu trabalho, pretendo me aprofundar em perfis e retomar a cobertura dos direitos das pessoas depois de longas férias. 


Quatro anos de Jair Bolsonaro implicaram em quatro anos de ataques e tentativas de desacreditar a imprensa. Você mesma já foi vítima desses ataques, múltiplas vezes. Mas neste ano, especialmente, estão saindo alguns grandes trabalhos jornalísticos (nos formatos de livros, como o seu, 
podcasts e matérias), que falam da vida que o presidente parece querer esconder. Você acha que dá para dizer que Bolsonaro falhou em minar o ímpeto jornalístico e a confiança na mídia tradicional?

Acho que é mérito dos jornalistas brasileiros não terem parado de trabalhar e trazer à tona tudo que era necessário em termos de informação pública. Em especial, as investigações jornalísticas. Mas, infelizmente, as ações do presidente deixaram consequências e muita insegurança no nosso trabalho. Eu mesma não me senti segura para acompanhar a campanha de rua por questões de segurança, e considero grave. É a primeira vez em quatro campanhas presidenciais que não pude fazer o trabalho de acompanhar os bastidores. Mesmo assim, fiz o trabalho e os demais colegas também. 

SFbBox by casino froutakia