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“Quando a gente pensa a pauta como ferramenta de transformação e ação, a gente pensa o jornalismo como forma de mudar o mundo, abrir mão definitivamente de uma perspectiva racializada, generificada, ‘outrofóbica’”, aponta a jornalista e pesquisadora Fabiana Moraes. Esse é o tema central do seu novo livro A pauta é uma arma de combate (Arquipélago Editorial).

Moraes, também professora do Núcleo de Design e Comunicação da UFPE e colunista do Intercept, autografa seu novo livro hoje (11/10), no Recife, às 18h30, no Centro Cultural Cais do Sertão, e debate com Laurindo Ferreira (Jornal do Commercio) e Eduarda Nunes (Agência Retruco). A mediação é de Beto Azoubel, da Secretaria de Cultura de Pernambuco. 

Conversamos com a pesquisadora sobre os problemas da “outrização” do jornalismo, sobre a fragilidade da nossa democracia e os desafios da imprensa sob o signo do bolsonarismo.

No seu livro você escreve sobre a "outrização" que há no jornalismo e que — como a sociedade brasileira em geral — veio de um processo de colonização que obviamente envolve preconceitos e princípios excludentes. Isso teria derrocado nos estereótipos do jornalismo que estariam promovendo o poder vigente. Quais seriam, na prática, esses estereótipos e como combatê-los ao montar uma pauta?

O processo de “outrização”, de transformar o outro em diferente e de transformar a diferença em desigualdade, é bastante comum no jornalismo seguindo o princípio que também faz parte da própria sociedade. A gente tem uma ideia de que existe um normal e de que tudo aquilo que está fora daquilo entendido como normal é o outro. Com o tempo descobri que no jornalismo esse outro eram, por exemplo, os indígenas, as pessoas negras, as mulheres, as travestis, as pessoas trans... Esse processo de “outrização” foi retomado agora quando a gente vê manchetes em veículos como CNN, Exame, Uol, informando que Lula ganhou em 9 dos 10 estados com maior índice de analfabetismo. Isso sugere uma correlação entre a falta de letramento e o voto no candidato do PT; e reforça um estigma especialmente em relação ao Nordeste. Esse é o exemplo mais fresco que posso te dar em relação a esse processo de “outrização”, desse diferente e, logo, desigual.

Uma maneira simples do jornalismo combater isso é, primeiramente, não fazer correlações que não são necessariamente verdadeiras. Muita gente que não tem letramento formal votou em Bolsonaro. O fato de você não ter letramento não significa que você vai votar em Lula. É justamente isso que a manchete sugere. E a gente viu o show de xenofobia que acontece em relação ao Nordeste desde o final da apuração no domingo, com o fim do primeiro turno das eleições. E é interessante observar nesse sentido como o Nordeste é o diferente especialmente adotado pela imprensa brasileira para esse lugar do outro e do incivilizado. Isso só é possível porque você tem em quem emite esse tipo de estereótipo justamente aquele que quer se manter num lugar hierarquicamente privilegiado. Ele precisa do estereótipo para reforçar uma suposta superioridade.

 

Como pensar na ideia de pauta como arma de combate, como você aponta, numa engrenagem que parece confundir (deliberadamente) o tempo inteiro jornalista e criador de conteúdo, notícia e impulso de consumo (a questão, por exemplo, das métricas de clickbait nas redações)?

Eu acho que, primeiro, a gente não pode confundir o que é da ordem do jornalismo com a criação de conteúdo, aquilo que é informativo mas não tem necessariamente a ver com o jornalismo, visto que não se utiliza das ferramentas e técnicas do campo. Mas entendo que veículos, por exemplo, como Intercept, JC, Pernambuco, O Povo têm geralmente uma persona digital nas redes. Muitas vezes esses veículos, principalmente em plataformas como Instagram, tentam se aproximar daquilo que é próprio dos criadores de conteúdo. É bom pensar que o jornalismo vem também fagocitando — o que não é necessariamente ruim — outros modelos de informação que não são próprios do jornalismo, e isso é um sinal dos tempos, são tentativas de se aproximar de outros públicos, de um público que vai consumir o jornalismo a partir de outras maneiras e lugares que o jornalismo também precisa estar.

Nesse caso, se a pauta é tratada com a seriedade com a qual deve ser tratada, não importa se está em um veículo tradicional ou nas redes A tecnologia em si, a forma em si, não vai ser responsável por mudar a pauta, melhorar a pauta. Quando a gente pensa a pauta como ferramenta de transformação e ação, a gente pensa o jornalismo como forma de mudar o mundo, abrir mão definitivamente de uma perspectiva racializada, generificada, “outrofóbica”

 

“Escolhemos objetivamente quem pode morrer”. A frase é sua, sobre o valor-notícia nos meios de comunicação. Essa questão é exemplificada no livro com o vazio da cobertura do genocidio em Ruanda, em 1994. Em contraste, uma morte nos EUA pode sobressaltar o mundo inteiro, gerando comoção em redes sociais e ondas de protestos mundo afora, por exemplo. Além da questão econômica, que separa esses dois exemplos, você aponta para a presença do racismo nessa discrepância. Poderia falar um pouco sobre isso?

A questão do valor-notícia tem me mobilizado bastante, porque nos cursos a gente assimila os valores-notícia de maneira quase dogmática. E é claro que os valores-notícia têm um grau excludente altíssimo. E esses valores-notícia também têm uma base epistemologicamente racializada, uma vez que o que é adotado, principalmente a partir da questão de pessoas e lugares com proeminência, é a questão do poder econômico. Como nesse exemplo que você citou, há sempre a mobilização social quando temos eventos trágicos em países de maior poder econômico e também habitados, ou comandados por pessoas brancas; o mesmo não ocorre em relação a países do Continente Africano. Essa é uma questão muito evidente e que sempre foi balizada pela ideia de objetividade que vai se basear também no valor-notícia, está imbricada no valor-notícia.

 

No seu estudo, você nota que Bolsonaro em parte foi criado por programas como CQC e Superpop, que lhe deram espaço para berrar absurdos sob um manto burlesco de “polêmico” ou “autêntico”, e também cita veículos de imprensa hegemônicos, como a Folha de S.Paulo, que depois teriam sido pouco assertivos contra Bolsonaro, em nome de um “equilíbrio” e “imparcialidade”. Bom, depois dos últimos 4 anos a grande mídia nacional aprendeu algo com a experiência bolsonarista?

Pegando exemplos como a correlação direta feita pela imprensa entre analfabetismo e Lula, com isso só se coloca mais gasolina no jet sky presidencial. A imprensa aprendeu pouco, apesar da boa cobertura em relação à Covid. Essa imprensa dita de referência, a imprensa empresarial, ela tem feito críticas a Bolsonaro. Mas os casos de corrupção envolvendo a família e o próprio Bolsonaro, como os casos do Mec, da Covaxin e do cartão corporativo não são tratados em bloco como “corrupção”.

Essa palavra é importante para a gente pensar como cada candidato foi formatado historicamente pela imprensa brasileira. Sabemos muito bem que existe um eleitorado que se move muito por questões morais, então essa ideia do “corrupto vs o não corrupto”, "ladrão vs mocinho” são fortíssimas no imaginário popular brasileiro, e ganham corpo na imprensa nacional. Pelo jeito ela (a imprensa) resolveu de certa maneira fragmentar as questões a respeito de Bolsonaro.

O orçamento secreto, por exemplo, é um caso de corrupção dos maiores e que vem sendo tratado bastante pela imprensa; mas não é traduzida no seu tamanho, no nível de corrupção que significa. Quando penso nisso, nessa questão dessas manchetes xenófobas, classistas, na própria questão da forma como os debates foram conduzidos, fico bem impressionada em pensar que 4 anos de achaques por parte do bolsonarismo não fizeram com que essa imprensa avançasse um passo à frente em relação ao que significa uma discussão sobre democracia. A democracia dessa imprensa continua sendo a democracia da performance, do lobista, uma ideia de representativa muito superficial e ingênua.

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