O tema do luto atravessa constantemente a obra de Judith Butler. Em A reivindicação de Antígona: O parentesco entre a vida e a morte, a filósofa norte-americana retoma a questão a partir da conhecida tragédia de Sófocles. Ele apresenta Antígona, uma das filhas de Édipo, que desobedece a proibição de seu tio e rei ao realizar um funeral para o irmão. A personagem desafia as leis do Estado e da família e reivindica publicamente o direito ao luto. Pela insubordinação, é condenada à morte. A obra de Butler, publicada no ano 2000, retoma a peça Antígona, em diálogo com as interpretações de Hegel e Lacan, para pensar questões como gênero, parentesco e política.
O livro de Butler conta com uma nova tradução, feita por Jamille Pinheiro Dias (Civilização Brasileira, 2022). A edição faz coro à tradução anterior do livro, intitulada O clamor de Antígona (feita por André Cechinel e lançado pela Editora UFSC em 2014). A opção pelo termo reivindicação se deve ao sentido de luta e insubordinação que a palavra carrega, e condiz com o gesto político de Antígona, conforme indicado pela tradutora.
Conversamos com Butler sobre a atualidade das discussões do livro e a importância do luto para as reivindicações políticas contemporâneas. A entrevista foi concedida no dia 7 de setembro de 2022.
Sua obra deixa evidente que o direito ao luto público está distribuído de forma desigual entre os sujeitos. Diante disso, Antígona se apresenta como uma poderosa imagem de insubordinação e de reivindicação das perdas. Como a universalização do direito ao luto contribui para as formas globais de democracia?
É verdade que todos devemos ter o direito de lamentar as perdas e que, às vezes, aqueles que perdemos não são considerados dignos de luto. Quando sofremos, afirmamos o valor de uma vida, e isso se torna especialmente importante se aqueles que perdemos nunca foram devidamente valorizados nesta vida.
Mas se chamarmos isso de direito, podemos produzir alguma confusão. A questão não é que cada indivíduo tenha um direito, mas que o direito é aquilo que compartilhamos em comum. Estou relutante em chamar isso de um direito coletivo, mas talvez eu possa ser persuadida a fazê-lo.
Certos grupos, como os indígenas, reivindicam e devem reivindicar um direito público de lamentar a perda de vidas, a destruição de um modo de vida, a destruição da terra e do meio ambiente. Mas talvez possamos dizer que esse problema de vidas não marcadas e sem luto, esse problema de vidas consideradas indignas de vida e indignas de luto, é tanto um problema de desigualdade quanto um problema de violência lenta e rápida.
Se um grupo de pessoas não conta nesta vida, se suas vidas são rebaixadas ou desvalorizadas, então elas não são consideradas valiosas. Quando dizemos que uma vida tem valor, ou que vidas têm o mesmo valor, também estamos falando de “lutabilidade” [“grievability”]. E por “lutabilidade” não me refiro apenas às pessoas sobre as quais choramos. Não. Existem formas de marcar e homenagear vidas que nunca conhecemos, que nunca nos foi dada a oportunidade de conhecer. As pessoas barradas nas fronteiras e privadas de cuidados de saúde, ou os refugiados cujos nomes nunca foram conhecidos por nós, por exemplo. Nesses casos, o luto faz parte de nossa própria ideia de justiça. É injusto que alguns sejam considerados mais passíveis de luto do que outros. É injusto que a desigualdade seja tão frequentemente tida como certa.
A reivindicação de Antígona foi publicado no ano 2000, no contexto das discussões sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O livro mantém um diálogo aberto com a luta atual pelo reconhecimento e pelos direitos das minorias políticas. Hoje, mais de duas décadas após a publicação do livro, onde você vê os principais pontos de mudança e esperança?
Na época, eu estava preocupada que os direitos ao casamento de gays e lésbicas fossem um movimento muito convencional, ligado a direitos de propriedade e políticas de respeitabilidade. Agora, dadas as formas neofascistas que o movimento ideológico antigênero assumiu, os direitos ao casamento gay e lésbico são tão importantes quanto os direitos trans, o direito ao aborto e as formas de educação sexual baseadas em princípios de uma educação reflexiva. A luta contra a exploração e a despossessão é central para todos esses movimentos, por isso precisamos aprender com aqueles que sabem como construir coalizões e redes fortes e vibrantes. Antígona trabalhava sozinha. Ela não aceitou a solidariedade de sua irmã. Quando o texto [de Sófocles] é ensinado na escola, aprendemos que o destino de Antígona é trágico (caso as mulheres possam ter um destino “trágico”), porque ela enfrentou seu tio e ele era um monstro autoritário. Mas ela estava certa em desafiá-lo, apenas errada em pensar que poderia assumir um poder por conta própria. Não precisamos de um feminismo heroico, mas de movimentos amplos, intensos, que tragam milhões para a rua. É difícil imaginar Antígona entre eles, mas podemos imaginar seu futuro de forma diferente de como fez Sófocles.
Antígona encena uma realidade que põe em crise os limites da representação e abre um precedente para outras formas de imaginar as relações sociais. Como você vê a importância da imaginação como ferramenta política para pensar outras configurações de vida e outros modos de humanidade?
Acho que a imaginação é crucial porque, como Karl Marx deixou claro, o capitalismo visa matar os sentidos. Mas a imaginação não é apenas uma capacidade individual. É algo que passa entre nós, que emerge de nossos relacionamentos juntos. O que podemos imaginar juntos é uma pergunta poderosa — ela imagina o que a imaginação pode fazer. Uma coisa que a imaginação pode fazer é construir um “nós” que imagina juntos onde não havia um antes.
Em junho deste ano, a Suprema Corte dos Estados Unidos revogou a decisão Roe vs Wade, que garantia o direito constitucional ao aborto no país. Isso demonstra que as conquistas institucionais das minorias não estão totalmente asseguradas. Em sua opinião, como essa decisão impacta a forma como as mulheres e as pessoas com útero são reconhecidas como sujeitos sociais? E que mecanismos estão disponíveis para resistir a tais decisões?
Já existe uma rede impressionante de provedores e defensores do aborto, garantindo que todas as pessoas que precisam de aborto em estados onde é ilegal tenham transporte seguro para as clínicas e recebam bons cuidados de saúde. Talvez todos nós devamos tomar as ruas — essa é uma forma de mostrar o poder político popular. Mas em situações como esta, o poder pertence às redes subversivas que encontram seu caminho ao redor da lei, que seguem outras regras, outros ideais de justiça e igualdade. Os direitos institucionais das minorias nunca estarão totalmente garantidos, mas devemos lutar continuamente para assegurá-los.
A retórica da extrema direita evoca continuamente a ficção da “ideologia de gênero” e reproduz um discurso sobre a necessidade de proteção da família heteronormativa, em oposição às formas de sociabilidade LGBTQIA+. Como esse discurso afeta a violência institucional nas configurações de vida que estão fora das normas heterossexuais de parentesco?
Esta é uma grande questão, e é o foco de um manuscrito recentemente concluído chamado Quem tem medo do gênero? Acho que vimos concretamente as formas como professores e pessoas trans, travestis, pessoas de gênero não conformista e mulheres foram agredidas e atacadas nos últimos anos, perdendo empregos, às vezes perdendo suas vidas. Eu me preocupo mais com crianças trans e queer que estão sendo privadas de acesso a materiais culturais que as ajudam a saber que não estão sozinhas, que uma boa vida está esperando por elas e que a luta continua. O poder do Estado assegura direitos básicos, mas também tem o poder de suspender esses direitos. É por isso que devemos ter constituições seguras, mas mesmo elas podem falhar. Estou, por exemplo, muito triste que a constituição chilena não tenha sido aprovada e espero que haja uma maneira de combater a distorção da mídia sobre o tema.
Em A reivindicação de Antígona você desenvolve um conceito de parentesco que designa um conjunto de arranjos que gerenciam a reprodução da vida dos sujeitos. Este modelo pode ser estendido a um grande número de agrupamentos sociais que não possuem estatuto jurídico. Qual é o poder desses arranjos em termos de gestão da vulnerabilidade dos sujeitos, principalmente daqueles que não contam como vidas de fato para o Estado?
Não se trata de imaginar novas formas de parentesco, mas de reconhecer as formas de parentesco que já existem. Uma criança pode ter mais de uma mãe como resultado de casamento e recasamento, mães lésbicas ou sistemas de parentesco que permitem que o campo materno seja distribuído entre várias pessoas, inclusive homens. A questão do parentesco é a questão de quem está lá para você em questões de vida e morte. Nós já respondemos a essa pergunta quando apontamos para as pessoas que estão ao nosso lado, nos ajudando em momentos de necessidade, antecipando nossa morte conosco. Chamamos isso de comunidade ou parentesco? Para mim, pouco importa, desde que entendamos que a família heteronormativa, que tem todo o direito de existir, não é a única forma de parentesco que existe. Isso não é novidade, mas muitas pessoas têm dificuldade em afirmar essa realidade social. Não existe uma “família natural” — as famílias são sempre “desnaturais”, mesmo as heteronormativas.
Gostaria de fazer uma conexão entre A reivindicação de Antígona e seu último livro, A força da não violência (publicado no Brasil em 2021 pela Boitempo), em que os conceitos de luto e de interdependência entre sujeitos são mobilizados para pensar o individualismo neoliberal. Como pensar em formas globais radicais de igualdade, em um momento em que proliferam discursos políticos sobre liberdade e proteção individual, como no debate sobre posse de armas nos Estados Unidos e no Brasil?
Talvez possamos perguntar se Antígona era um indivíduo, se seu erro foi agir sozinha, e reconsiderar que Antígona significa qualquer número de pessoas, privadas de poder, que enfrentam autoritários, que encontram seu poder tomando de empréstimo uma linguagem e encontrando sua própria voz dentro de um legado de linguagem política. Agora é mais fácil conseguir uma arma nos Estados Unidos do que fazer um aborto, e, ainda assim, um é considerado uma questão de liberdade, e o outro é considerado uma matança. No entanto, todas as matanças estão acontecendo porque as armas são muito fáceis de comprar e usar. Nos Estados Unidos, pelo menos, vivemos em uma cultura assassina que se autodenomina “livre” — é preciso se perguntar como a pulsão de morte veio a animar as ideias contemporâneas de liberdade individual e identidade nacional. Enquanto escrevo isso, Bolsonaro está desfilando seus militares pelas ruas, excitando paixões fascistas. Precisamos de muitas Antígonas para resistir e imaginar um futuro não violento de igualdade radical e liberdade coletiva.