Entrevista LetíciaCesarino Divulgação jan.23

 

Em um mundo em que a internet se tornou a principal arena de comunicação política, a antropóloga Letícia Cesarino apresenta um paradigma inovador para analisar alguns dos processos sociais mais relevantes nos últimos anos. O mundo do avesso: Verdade e política na era digital (Ubu) nos ajuda a compreender fenômenos como a emergência de populismos, negacionismos, pós-verdade e conspiracionismos em sua dimensão técnica, como um sistema que funciona por dinâmicas de estabilização, crises, inversões, polarizações e novas reorganizações, demonstrando assim a complexidade por trás da recente digitalização da política.

A pesquisa apresentada no livro começou a ser elaborada em 2018, impulsionada pela curiosidade da autora sobre as aparentes novidades no comportamento político-eleitoral durante as eleições presidenciais brasileiras. A campanha em questão contou com uma enorme quantidade de argumentos e conteúdos recebidos prontos e repassados em ritmo acelerado, dispensando a opinião da imprensa tradicional e dos especialistas, que passaram a ser vistos como fonte de manipulação e hipocrisia, padrão que guardava semelhanças notáveis com a onda global de ascensão de movimentos de extrema direita.

Ao propor uma nova leitura da cibernética de Gregory Bateson (1904-1980), O mundo do avesso nos convida a pensar o contexto contemporâneo por meio da recuperação e atualização de uma visão transdisciplinar e integrativa, suspendendo os pressupostos lineares mais convencionais nas ciências sociais, em particular, e nas humanidades, em geral, para vermos as relações no mundo em termos de causalidades circulares ou coemergentes, mais próximas dos fenômenos analisados.

 

Você começa o livro apontando que a “ideologia cientificista da objetividade” está em crise. No lugar desta, você defende o emprego das novas ciências da complexidade. Em linhas gerais, o que são essas ciências?

Não se trata exatamente de ciências separadas, mas de linhas dentro dos vários campos científicos — humanidades, biologia, física, matemática, química — que buscam compreender a dinâmica de sistemas complexos, cujo comportamento (por exemplo, relações de causa e efeito) não pode ser previsto de forma linear como no paradigma newtoniano. Exemplos são a psicanálise, a teoria do caos, a termodinâmica de Ilya Prigogine (1917-2003), a geometria fractal e, nas humanidades, os estruturalismos e o materialismo histórico-dialético. A ecologia da mente de Bateson, que ancora as análises do livro, já trabalha dentro desse paradigma que prescinde dos divisores entre ciências humanas e naturais/exatas, e portanto é útil para pensar o comportamento que coemerge entre humanos e máquinas a partir das infraestruturas cibernéticas que temos hoje nas novas mídias.

 

Sua análise está baseada em vinte anos de trabalho no campo dos estudos sociais da tecnociência. Como o livro se insere nessa área de pesquisa?

Os estudos sociais da tecnociência são um campo transdisciplinar que sempre observou a produção de fatos científicos e artefatos técnicos, reconhecendo a centralidade da agência não humana para a conformação dos fenômenos sociais, ou, melhor dizendo, sociotécnicos. Esses estudos buscam, por exemplo, entender como agentes não humanos (objetos técnicos ou outros organismos vivos) participam de processos que a visão convencional separa em domínios distintos, como a política e a tecnologia. A isso se soma o reconhecimento que a etnografia antropológica sempre deu à agência não humana, pois é comum que animais, artefatos técnicos e elementos da paisagem sejam reconhecidos enquanto agentes sociais em muitas sociedades não modernas. Nesse sentido, o livro propõe uma explicação propriamente tecnopolítica para o fenômeno do bolsonarismo e das ciências alternativas, considerando que ambos se ancoram em públicos não exatamente espontâneos, uma vez que estes são altamente mediados por vieses técnicos presentes nas arquiteturas algorítmicas das novas mídias.

 

Você argumenta que, em última instância, seria possível dizer que o seu livro “não é, fundamentalmente, sobre os fenômenos que ele pretende analisar, mas sobre como buscar uma perspectiva mais adequada para melhor entendê-los”. Para tanto, você faz uso de ideias e autores de diversas áreas, em especial a ecologia da mente de Bateson. De que maneira a cibernética, entendida em seus primórdios como o estudo científico do controle e comunicação no animal e na máquina, e a intuição integrativa de Bateson (e de outros antropólogos) nos ajudam a pensar o mundo contemporâneo?

O paradigma sistêmico é útil para pensar, sobretudo, fenômenos altamente mediados pelas tecnologias cibernéticas contemporâneas, como o populismo digital, as teorias da conspiração e outros públicos que emergiram e vicejam na e pela internet. Isso ocorre pois a atual indústria tech, e o tipo de expertise a ela associada, desenvolveu-se dentro do paradigma inaugurado nos anos 1940 pelo matemático estadunidense Norbert Wiener (1894-1964) [conhecido como o fundador da cibernética], por Gregory Bateson e outros cientistas de diversas áreas. Isso significa que as teorias de sistemas têm, por assim dizer, a “mesma” natureza cibernética que as tecnologias produzidas pela indústria tech, sendo por isso mais aptas a identificar efeitos sistêmicos que as abordagens lineares mais convencionais nas ciências humanas, que não conseguem ver tão claramente tais efeitos ou veem-nos como paradoxos. Outro conjunto de atores bastante centrais nos fenômenos analisados no livro, e que também têm uma “consciência cibernética” superior a outros grupos sociais, são os militares, que hoje operam, assim como os algoritmos, por meio da “abordagem indireta” típica dos fenômenos não lineares.

 

Seu livro aponta que o atual ambiente de mídia está eivado de paradoxos, uma vez que ele desestabiliza os níveis lógicos que organizavam a experiência no mundo pré-digital. Uma das consequências trabalhadas por você é o “colapso de contextos” entre fato e ficção. De que forma a lógica das plataformas digitais contribui para desestruturar (e reorganizar) categorias fundamentais da vida social, fazendo emergir fenômenos como teorias da conspiração, polarizações e negacionismos? Afinal, o principal argumento do livro é o de que a atual infraestrutura das novas mídias possui um viés político “favorável à direita iliberal, aos conspiracionismos e às demais forças antiestruturais que ressoam em seu entorno”.

A literatura sobre novas mídias tem apontado que duas das principais dicotomias organizadoras dos sistemas pré-digitais são especialmente abaladas pela desorganização causada por essas novas infraestruturas: público e privado, fato e ficção. Ambas são organizadores basais da democracia representativa, que se fundamenta no tipo de objetividade produzida pelos “sistemas de peritos” pré-digitais: acadêmicos, jornalistas profissionais etc. Enquanto a esfera pública pré-digital se fundamenta na produção de fatos públicos ‒ fatos científicos, jornalísticos, jurídicos, políticas públicas ‒, a economia da atenção das plataformas se baseia na proliferação de ficções privadas ‒ indústria do entretenimento, cultura de celebridades, performances de experiências cotidianas em redes sociais, marketing personalizado, fofocas e rumores, assim como suas formas extremas, as teorias da conspiração. Essa inversão está preconizada na arquitetura algorítmica das plataformas, moldada num modelo de economia da atenção baseado na produção em série de sujeitos influenciáveis, cujo tempo de tela e dados de comportamento são vendidos aos reais clientes das plataformas.

 

Você defende que é preciso resgatar a antropologia e a teoria da evolução das visões reducionistas sobre o que é natural ou espontâneo no fenômeno humano. Como o estudo das novas mídias pode contribuir para essa reaproximação das humanidades com a linguagem da ciência? É possível dizer que a antropologia está em posição privilegiada para construir uma nova perspectiva integrativa, retomando sua vocação original?

Na minha visão, a antropologia é a ciência social melhor posicionada para experimentar com paradigmas analíticos transdisciplinares, mais adaptados aos fenômenos produzidos pela mediação cibernética das novas mídias. Ela nasceu mais de um século atrás como uma disciplina integrativa, que deveria levar em conta qualquer dimensão analítica relevante para a compreensão do fenômeno humano, inclusive a técnica e a biologia. Então, temos todo um repertório de teorias antropológicas que nos ajudam a entender “pontos cegos” das ciências sociais convencionais, como a agência não humana, já mencionada, e processos transversais aos “grandes divisores” que organizam a ideologia moderna, como indivíduo/coletivo, natureza/cultura, materialidade/simbólico, liberdade/controle e muitos — na realidade, todos — os demais. Isso ajuda, por exemplo, a entender a hibridização de fenômenos que se encontravam melhor separados no mundo pré-digital, como no recente “colapso de contextos” entre a política e outras esferas sociais, especialmente aquelas baseadas no domínio privado, como religião, entretenimento, moralidades cotidianas etc. Finalmente, o repertório acumulado de décadas de etnografias de povos não ocidentais nos permite discernir o que é particular do que é geral no fenômeno humano. E hoje já está bem claro que não existem universais humanos (biologia) fora da diferença cultural (história), a não ser no plano da operação sistêmica, que é “vazio” de conteúdo. São totalmente falsos e ilusórios, por exemplo, pressupostos do senso comum que vemos hoje predominando nos ecossistemas de direita, como o caráter dado e espontâneo do livre mercado, da vontade popular ou da agência de indivíduos (e famílias). Tudo isso, como qualquer outro processo humano, é culturalmente específico, e, portanto, sujeito a toda a complexidade das contradições dialéticas que movem a história humana e também a natural.
    

Em diálogo com a obra de Mark Fisher (1968-2017), você entende que o “realismo capitalista” está interditando a imaginação coletiva de operar uma reestruturação capaz de impedir o colapso em curso. Por outro lado, você se demonstra cética com relação à capacidade de indivíduos se contraporem a essas tendências sistêmicas. Como fazer política e ciência na era digital?

A ecologia da mente mostra que materialidade e imaginação sempre andam juntas, pois ambas envolvem processo de comunicação, no sentido cibernético. Contudo, considero correta a intuição do materialismo histórico-dialético de que a materialidade da técnica e das relações capital-trabalho tendem a caminhar mais rápido no sistema capitalista que os demais processos sociais (ideologias, arcabouços legais etc.), pois elas são o centro deste sistema; o que não é o caso de outras sociedades, como argumentou Lévi-Strauss (1908-2009) em Raça e história. Portanto, a agência individual e coletiva, que depende do tipo de visão de futuro que, hoje, está parcialmente interditada pelo realismo capitalista, acaba tendo um certo deficit com relação às mudanças que ocorrem no plano da infraestrutura material. Vemos isso claramente com a aceleração sem precedentes dos processos sociais, propiciada pela digitalização crescente. Isso, como eu argumento no livro, aumenta a “viscosidade” do sistema sociotécnico, dificultando a agência política organizada de interferir no movimento estrutural mais amplo. Porém, entender essas limitações não significa imobilidade. Quando Marx (1818-1883) disse que fazemos história, mas não nas condições que nós próprios escolhemos, ele também está dizendo que nós fazemos história. De fato, não podemos controlar os efeitos das nossas ações agregadas num plano sistêmico, mas podemos agir dentro dos nossos limites estruturais, e confiar que a reacomodação das contradições no plano emergente da reorganização global — o que Lévi-Strauss chamou da busca dos sistemas sociotécnicos por um “optimum de diversidade” — evitará o pior.

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