Gustavo Caboco DeniseAndrade Divulgação

Gustavo Caboco é um artista visual do povo Wapichana. Nascido em 1989, em Curitiba, o artista aprendeu sobre suas origens indígenas por meio das palavras e gestos de sua mãe, Lucilene, sequestrada de seu território aos dez anos de idade. Em 2001, Gustavo acompanhou a mãe em seu primeiro retorno à terra natal.

Em conjunto com a Picada livros, Caboco está lançando duas publicações. Baaraz Ka’Aupan, “campo em chamas” em língua wapichana, pergunta-se sobre os campos que seguem em chamas (contribuindo para o apagamento do pensamento indígena), em oposição às chamas que nos convidam a pensar além da ideia de “tradição-museu”. O segundo livro, Recado do Bendegó: Conversas com a pedra, é um registro ilustrado de conversas com o meteorito Bendegó, presente no acervo do Museu Nacional do Rio de Janeiro.

Assim como nos dois livros, sua produção com desenhos, pinturas, textos, bordados, animações e performances propõe maneiras de refletir sobre os deslocamentos dos corpos indígenas e sobre a produção e as retomadas da memória, costurando o pessoal ao político e o cultivo da memória e da ancestralidade às possibilidades de futuro.

 

Você costuma se apresentar dizendo que nasceu em “Curitiba, Roraima”. Poderia contar um pouco da sua trajetória e dos seus caminhos de retorno à terra?

Sim, eu me apresento a partir desse lugar de nascimento, trabalho, existência e território: Curitiba, Roraima. Isso para pensar a extensão wapichana, que é o que eu venho propagando. E também como uma forma de pensar os deslocamentos históricos das populações indígenas. Os deslocamentos forçados, que ocorrem ainda hoje, e os deslocamentos por outras circunstâncias, como no caso dos estudos universitários. Eu trago a extensão wapichana porque eu quero pensar esse trânsito. Eu nasci em Curitiba, mas meu território é em Roraima. De lá vem a minha família, é lá onde está a nossa comunidade, onde está a nossa história. E tem a ver também com a política de memorar a demarcação das terras indígenas. Se essa luta não tivesse existido — essa que é uma luta constante — não teríamos para onde retornar. Esse é o “retorno à terra” presente no meu trabalho. Dentro do quadro dos deslocamentos forçados, é possível identificar muitos elementos que se repetem, como nas histórias de crianças indígenas retiradas dos seus territórios originários. Minha mãe foi levada aos 10 anos de idade para trabalhar na cidade de Boa Vista, na casa de pessoas brancas. Depois ela foi para Manaus, até ser trazida para Curitiba. Na história da minha mãe, o que a manteve conectada com as origens, e com o próprio território wapichana, foi o ofício da costura. Hoje a gente usa essa ideia do fio e da extensão para pensar a nossa memória wapichana. Os ateliês de costura da minha mãe foram ferramentas de resistência.

Você acabou de publicar Recado do Bendegó: Conversas com a pedra e Baaraz Ka’Aupan. De que forma esses dois livros nos convocam a ir além da ideia de “tradição-museu” questionada por você?

Nós estamos em um tempo de proliferação de contranarrativas. A presença e o protagonismo indígenas, com suas vozes, leituras e literaturas, convocam para outros modos de compreender o que são as instituições museológicas e o que elas documentaram, sobretudo no caso dos museus de história natural e dos museus etnográficos. O que está presente no acervo desses museus? Quando a gente faz um recorte histórico, não há como não perceber que estamos lidando com evidências coloniais. Pensar a noção de tradição-museu é nada mais nada menos do que enfrentar todas essas contradições. Se os museus, os livros didáticos e os livros de história da arte propagam uma mesma perspectiva, aquilo que a Chimamanda Ngozi Adichie apontou em O perigo de uma história única, nós estamos convidando as pessoas a pensarem além desta tradição do fazer-museu.

Recado do Bendegó é um registro ilustrado de conversas com o meteorito que foi encontrado em 1784 no Sertão da Bahia e transportado em 1888 para a cidade do Rio de Janeiro, passando a integrar o acervo do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista. Em 2018, o meteorito — ou, como você escreve, a “pedra de trovão” — resistiu ao incêndio que destruiu o Museu Nacional, e, junto com ele, 33 objetos wapichanas. Você defende que é importante ouvir a pedra do Bendegó porque ela é testemunha da história colonial brasileira. Você acredita que o crescimento da presença indígena nos espaços de representação coletiva, como os museus e as universidades, tem ajudado os não indígenas a serem menos alienígenas ao mundo?

Para responder a sua questão, talvez a gente pudesse perguntar para a pedra e escutar o que ela tem a dizer. Além de ser uma testemunha colonial, Bendegó passou por todos os processos que as populações indígenas enfrentaram. Por meio de medições do seu corpo, de cortes e até do fogo tentaram entender o que seria possível extrair da pedra e da região de sua queda, já que estavam em busca de prata e ouro. Essa objetificação que entende os seres como inanimados também foi direcionada aos povos indígenas. Eu acredito que essa forma de pensar ainda se mantém nos dias de hoje. Por isso é tão importante se colocar num lugar de escuta de uma pedra, de um morro ou de uma serra, buscando compreender que a vida vai além da ideia de Humano.

Os dois livros foram criados durante um processo de ateliê e fizeram parte da instalação apresentada por você e sua família na 34a Bienal de São Paulo, em 2021. Como foi a participação de vocês na mostra?

Esses dois livros fizeram parte da instalação Kanau’kyba, caminhos das pedras. Além disso, Recado do Bendegó tem um filme com o mesmo texto. Os livros são frutos de uma trajetória iniciada em 2019, com a nossa participação em uma publicação de ensaios da Bienal de São Paulo. Dali em diante a gente seguiu com a nossa pesquisa, através de um diálogo com as pedras. Muito do que esteve presente na instalação nasceu de um processo de caminhada familiar (liderada pela historiadora wapichana Roseane Cadete), reconhecendo a memória das pedras e das serras no nosso território. Com a pandemia, o trabalho precisou ser feito também à distância. E eu só consegui visitar a pedra do Bendegó, no Museu Nacional do Rio de Janeiro, em 2021. Foi um período muito longo até a apresentação do resultado na 34a Bienal. Eu ainda precisei de mais um ano para fazer a publicação dos dois livros. O Recado do Bendegó se manteve inalterado, mas o Baaraz Ka’Aupan foi atualizado, inclusive para funcionar como um registro do nosso ateliê. No livro, eu faço um apanhado de como foi o processo e por onde a gente passou, e trato do cruzamento de geografias e histórias para pensar o Brasil a partir de uma perspectiva indígena/wapichana.

Em 2018, você deu início ao projeto de pesquisa Não apagarão nossa memória. A frase é um recado da Borduna Wapichana que vivia/vive dentro do Museu Nacional. Foi ela, segundo você, quem mostrou a potência das chamas, “o fogo da memória que não apaga”, em oposição ao fogo criminoso da ganância, da ignorância e da monocultura. Como pensar essa contradição entre as chamas?

Em 2018, eu lancei o livro Baaraz Kawau, o campo após o fogo, pensando as chamas do Museu Nacional e esse apagamento histórico da diversidade, da pluralidade e da potencialidade que a presença indígena poderia, e ainda pode, trazer a esse espaço. Se há um fogo criminoso na floresta e no pantanal, o fogo do desmatamento, há também o fogo da fogueira, de quando nos reunimos em comunidade e podemos partilhar histórias. O nosso povo vem de uma origem em que o campo estava em chamas. Nesse lugar da escassez, houve também um lugar de criação, daquilo que chamam de cosmovisão. Esta é então a nossa chama-chamado: Não apagarão nossa memória. Isso pode ser visto como um projeto de pesquisa, e eu mesmo chamo assim, mas é antes de tudo o nosso manifesto de existência. Um manifesto pela nossa memória, pela nossa memória indígena: não apagarão as nossas línguas, não apagarão as nossas culturas, não apagarão os nossos modos de vida, não apagarão as nossas subjetividades.

Nos eventos de lançamento dos livros, você tem apresentado a fala-performance Coma colonial, uma ideia trabalhada por você em diferentes obras, aulas e exposições. De que forma o seu trabalho, em particular, e as artes indígenas, em geral, têm atuado para expurgar as feridas da violência colonial?

Eu tenho trabalhado essa ideia de Coma colonial como um modo de a gente se dar conta de que a todo momento estamos acordando de alguma percepção colonial que entra nos nossos corpos. Até bem pouco tempo nós éramos apenas inspirações. Basta você pensar no romantismo ou no modernismo, tanto na literatura quanto nas artes visuais. O que tem de diferente hoje é essa ideia do protagonismo e da diversidade de populações indígenas. Despertar do Coma colonial tem a ver com reconhecer essas histórias, essas narrativas, essas diferenças de trajetórias. Por isso eu acho importante dizer que os dois livros que estou lançando fazem parte de um esquema de autonomia e autopublicação, através de uma editora que eu tenho tentado movimentar, a Picada Livros. Picada é uma abertura de caminho. E pode ser também a picada da aranha ou da cobra: essa ideia de algo que nos envenena, mas que pode ser a nossa própria cura.

Sua produção propõe maneiras de refletir sobre os deslocamentos dos corpos indígenas e sobre a produção e retomada da memória. Junto com o artista e pesquisador Denilson Baniwa e com a equipe do Museu Paranaense (MUPA), você coordenou o projeto Retomada da imagem: Investigações indígenas no acervo fotográfico do MUPA (2021-2022), um mergulho profundo no acervo da instituição com o intuito de fomentar reflexões acerca das fotografias de povos indígenas. Além disso, você tem trabalhado bastante com a ideia de oralidade literária, argumentando que as avós são as bibliotecas das pessoas indígenas. Como você articula a relação entre a retomada dos territórios originários e a retomada da memória por meio da literatura e das artes visuais?

Eu vejo tudo como uma coisa só. Atualmente, as artes visuais e a literatura são ferramentas do movimento indígena para nós expressarmos nossas demandas, as demandas específicas de cada povo, não só por meio da denúncia e do ativismo, mas também pela demarcação de subjetividades e existências — as artes visuais, a literatura e a própria fala, que eu tenho tentado juntar na noção de oralidade-literária. Eu faço isso como uma forma de afirmar que as palavras faladas são as nossas ciências, já que os saberes indígenas acabam sendo tomados como conhecimentos inferiores, como se as palavras faladas valessem menos do que aquilo que está escrito. Quando a gente observa os movimentos indígenas se fortificando, a gente percebe que se fortifica também uma ideia de autoestima. Dessa forma, a gente acaba encontrando um espaço de voz e expressão que se manifesta no campo das artes, na contramão do apagamento. Esses vêm sendo os caminhos de retorno à terra. Por isso eu insisto em dizer: Não apagarão nossa memória.

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