Oscar Pilagallo credito Pablo Saborido 1

A data de hoje, 31 de março, pode ser pensada tanto como marco do início da Ditadura Militar no Brasil, com a deposição de João Goulart (1919-1976) em 1964, quanto do início do fim da Ditadura, com a pequena manifestação que ocorreu em Abreu e Lima (PE), em 1983. Foi quando ocorreu o primeiro comício — para umas 100 pessoas — em favor das eleições diretas para presidente, ao mesmo tempo em que tropas desfilavam em comemoração ao Golpe. Este grito franzino abriu a afluência de protestos do que mais tarde se tornaria o movimento Diretas Já.

“Um drama que terminou em tragédia” é a forma como o jornalista Oscar Pilagallo imagina a história das Diretas Já. E é assim que a narra em seu O Girassol que nos tinge (Fósforo Editora), livrando seus leitores de um pouco da secura que às vezes circunda a história (com H), para dar um tom quase de crônica aos agentes e ao conturbado clima político do Brasil de 1982 até 1985. 

Apesar do fim do autoritarismo, até agora o drama segue, e na nossa entrevista Pilagallo fala das Diretas Já e sobre a juventude da nossa democracia que continua a permitir o paternalismo das Forças Armadas; e também reflete o atual momento nacional de contínua divisão e incerteza em relação ao futuro.

 

É muito comum que se reivindique a voz do povo e o poder das ruas de maneira genérica, como forma de argumentar a favor de qualquer pauta quente do momento. Há um entendimento, porém, que há manifestações e manifestações, a exemplo das Diretas Já, elaboradas no seu livro, e do 8 de Janeiro, que foi contra o resultado democrático das urnas e terminou na invasão das sedes dos Três Poderes. O que fundamentalmente distingue uma forma de manifestação da outra, e a partir de que momento devemos passar a julgar a “voz do povo” antidemocrática?

As Diretas Já e o 8 de Janeiro não guardam parentesco, a não ser pelo fato de que, nos dois casos, as pessoas saíram às ruas para se manifestar. Uma diferença fundamental é que a campanha de quase quarenta anos atrás foi praticamente consensual, enquanto a mais recente refletiu a perspectiva de uma minoria. Digo “praticamente consensual” porque havia pequenos segmentos da sociedade contrários às eleições diretas. Essa parcela da sociedade girava em torno da órbita do partido governista, dos militares e até dos órgãos de repressão, que tinham um projeto de manter a ditadura. O 8 de Janeiro foi, de certa maneira, as Diretas Já com sinal trocado. Neste início de ano, o que se defendia era o golpe contra um regime democrático; em 1984, defendia-se a democracia contra uma ditadura originada num golpe. Como o número de pessoas em Brasília foi relativamente pequeno – poucos milhares, em contraste com os milhões das Diretas – não se pode falar em “voz do povo”. É a voz de um punhado de pessoas que não aceitam as regras da democracia. Outra diferença fundamental é que nas Diretas articularam-se representantes da sociedade civil, enquanto em 2023 os participantes não representavam ninguém mais, além dos vândalos financiados por forças reacionárias que acamparam em frente a quartéis. Encher uma praça, portanto, não é garantia de reivindicação democrática. É preciso mais do que gente reunida em logradouros para se fazer uma manifestação democrática – é preciso respeito à essência da democracia. 

 

Seu intuito central em O Girassol que nos tinge parece ser sublinhar o caráter popular das Diretas Já, mesmo que a eleição direta para Presidente, principal reivindicação do movimento, não tenha ocorrido e mesmo que o processo de reabertura fosse inevitável — já que desde o governo (Ernesto) Geisel (1907-1996) havia um horizonte que projetava a volta dos militares aos quartéis. Se é assim, por que as Diretas Já foram tão importantes, em termos históricos, e continuam relevantes?

As Diretas Já foram derrotadas no Congresso, mas essa é apenas parte da história. Foi a população nas ruas que deu lastro ao processo político posterior que culminou com a eleição, ainda que indireta, de um civil de oposição, Tancredo Neves (1910-1985). (A morte de Tancredo antes da posse não pertence ao terreno da política; foi uma intervenção do destino) É difícil saber o que teria acontecido se a campanha não tivesse sido o que foi, mobilizando toda a sociedade. Pode ser que, de qualquer maneira, a ditadura acabasse na mesma época. Afinal, o ciclo iniciado em 1964 se esgotava, e a ditadura se encontrava em seus estertores, tendo que enfrentar uma profunda crise econômica, com inflação e recessão. Mas o fim da ditadura não era algo líquido e certo. O processo de abertura, que vinha de meados dos anos 1970, sofria revezes frequentes, com retrocessos provocados pela atuação da linha dura do regime. Assim, nada garante que em 1984 não pudesse ocorrer mais um refluxo, até porque uma ala dos militares não queria abrir mão do poder. Em história, é desaconselhável o uso do condicional, mas, feita a ressalva, com o povo em massa nas ruas, talvez tenha ficado mais difícil estender a ditadura. Hoje, se a campanha das Diretas continua relevante, é por ter tido papel central na fase embrionária da nossa redemocratização.

 

Se, no período de Bolsonaro, o 31 de março foi comemorado pelas Forças Armadas — não com aval, mas com ordens do Presidente —, este ano o Exército decidiu não celebrar a data. Também há conversas sobre mudanças no Artigo 142 da Constituição, que hoje cede margem para uma interpretação errônea das Forças Armadas como "poder moderador" da República. Que perspectivas você enxerga para a conclusão da tensão histórica que há entre Forças Armadas e governo civil? 

Essa questão está longe de ter sido pacificada. A questão militar existe desde os tempos da Guerra do Paraguai, na segunda metade do século XIX. Com a vitória do Brasil, os responsáveis pelas batalhas passaram a reivindicar mais espaço de poder. Seria uma maneira de compatibilizar a contribuição dada, inclusive com vidas de soldados, a uma recompensa em termos de maior importância da instituição na vida política do país. Desde então, os militares se fizeram presentes em grandes guinadas da história do Brasil. Estavam lá no golpe que foi a Proclamação da República. E, no início do século passado, agitaram a cena com a revolta tenentista dos anos 20. O movimento foi um dos fatores do fim da Primeira República, com a Revolução de 30. Alguns daqueles militares de baixa patente galgaram postos e, mais tarde, influenciaram iniciativas autoritárias, inclusive o golpe de 64. Depois da ditadura, eles continuaram influentes no governo de transição de José Sarney. Ao contrário do que ocorreu na Argentina, onde generais foram para a prisão. os militares brasileiros envolvidos em crimes durante a ditadura não foram punidos. Tudo isso é ainda muito recente para tratarmos a questão militar como algo que tenha ficado para trás com a derrota de Bolsonaro nas urnas.

 

Ainda nesse assunto: não foi há muito tempo que o General das Forças Armadas dos EUA se desculpou publicamente por meramente aparecer em uma foto com Donald Trump, porque para ele seria fundamental que a instituição fosse completamente apolítica. Parece haver em democracias liberais mais consolidadas uma fronteira muito clara entre Estado e governo da vez, em contraste com o Brasil, e talvez América Latina em geral. Como você entende a viscosidade das FAs no Brasil, a insistência em brigar pelo poder?

Acredito que a importância das Forças Armadas no Brasil seja proporcional à relativa fragilidade da nossa democracia, ainda muito jovem. Sem instituições fortes, cria-se um vácuo de poder que é ocupado pelos militares. Nos Estados Unidos, e em outras democracias liberais consolidadas, o poder militar se submete integralmente ao poder civil, pois é este – e não aquele – que reflete a vontade popular, expressa nas urnas. Daí que a fronteira entre os dois poderes seja mais nítida e menos porosa lá do que aqui. O exemplo citado do militar americano que se desculpou por aparecer com Trump numa foto é reflexo dessa realidade. O Brasil ainda tem um bom caminho a percorrer antes de atingir esse grau de independência. Mas é preciso dizer que os esforços do governo federal são nesse sentido.

 

No seu livro você conta como, por pragmatismo, acabou havendo uma grande união nacional em torno das Diretas Já. Há pouco também houve um movimento parecido em torno do nome de Lula, pelo voto útil — dessa vez, um movimento mais contra do que propriamente a favor de algo —, o que leva a crer que o apreço pelos resultados ainda norteia a ação política por aqui. Se por um lado isso é positivo, por outro, alguns podem dizer que há pragmatismo demais no Brasil, que teria levado por exemplo à anistia aos militares depois da Ditadura. Como você entende essa questão?

Sim, são dois lados da mesma moeda. Mas o pragmatismo, no mais das vezes, tende a ser positivo. Trabalha-se com o horizonte do que é possível ser feito em determinado momento. Quanto à comparação entre a união nacional em 1984 e 2022, deve ser relativizada, no meu entendimento. Há quarenta anos, o consenso foi facilitado pela ausência de um nome. Não se ia aos comícios para apoiar este ou aquele político, mas em defesa de uma ideia suprapartidária: a eleição direta para presidente da República. No ano passado, a frente ampla se formou a partir de um nome, Lula, que conseguiu aglutinar setores de esquerda, centro e até de direita. Mas não houve o mesmo consenso das Diretas, tanto que a vitória de Lula foi bastante apertada. Isso não significa, necessariamente, que metade dos eleitores seja bolsonarista ou tenha tendência autoritária. Mais provável é que boa parcela deles também tenha votado não a favor de Bolsonaro, mas contra Lula e o petismo. Ou seja, a sociedade continua dividida, polarizada, o que joga uma névoa de incerteza sobre o futuro próximo. Quanto ao pragmatismo – que ajuda a conter ímpetos radicais –, acredito que faça mais parte da solução do que do problema. 

SFbBox by casino froutakia