ElideRugai WEB

 

André Botelho (UFRJ)

O Nordeste é uma das matrizes do Brasil. Também no pensamento social brasileiro. Há nele um repertório rico, diversificado e potente de interpretações, históricas e contemporâneas, que se debruçaram sobre a formação social da região, discutindo seu papel e suas relações com a formação da sociedade brasileira como um todo. Há ainda uma notável riqueza de linguagens e dispositivos em que essas interpretações se realizaram e se realizam no quadro nacional: romances, poesia, ensaios, artes plásticas, cinema, ciências sociais etc. 

Neste semestre, estamos realizando um experimento que une a disciplina Sociologia Política do Nordeste (na graduação em Ciências Sociais no IFCS/UFRJ) e o Blog da BVPS com postagens semanais das aulas e vários conteúdos extras. Um work in progress e também um making of da criação intelectual que pretende constituir uma nova frente de discussão sobre (1) o Nordeste e (2) o aprendizado social da democracia. Propomos, então, compor um repertório básico em termos de sociologia política que ajude a compreender o aprendizado social e os processos reflexivos por meio dos quais a ação ganha significado no curso das interações. O processo de significação das ações coletivas envolve sempre um fundamento narrativo da ordem social, que é, hoje, uma das questões de ponta na área do pensamento e das teorias sociais. É preciso investigar como as ações sociais são afetadas pelo constante reexame a que estão submetidas a partir das informações produzidas sobre elas. Estamos interessados em discutir a dimensão semântica do fazer-se da sociedade. Então, que aprendizado social da cidadania e da democracia estariam codificados nos “textos” sobre a região? Por exemplo, de Os sertões (1902) a Vidas secas (1938), passando por Gilberto Freyre e Josué de Castro ou Celso Furtado? 

Queremos entender se e como, na longa duração e visto em termos macrossociológicos, se forjou um processo social de aprendizado social da democracia que envolveu três momentos decisivos: no primeiro, opera-se a construção social de inteligibilidade da “injustiça” diante de situações como a seca, a fome, as migrações e a violência, que receberão progressivamente novas interpretações; num segundo momento, como faces da questão social, passando a ser objeto de conflitos entre diferentes setores da sociedade e do Estado. E é com base, em grande medida, nessa experiência – que também pode ser caracterizada como um aprendizado social do conflito pela terra –, que, num terceiro momento, no presente, a participação social não apenas se adensa, mas ganha condições tangíveis de alterar o cotidiano da política no Nordeste. 

Desde as Ligas Camponesas, passando por outras formas de luta pela terra no Nordeste, até as inovações institucionais e políticas públicas, que vão ganhar corpo com governos de centro-esquerda (especialmente as experiências de orçamento participativo), vai se formando um aprendizado social da cidadania e da democracia que, a nosso ver, se coloca na base das relações políticas contemporâneas. Nesse processo, em meio às contendas dos atores e grupos sociais, formas de ação, mas também de narrativas, perdem e ganham eficácia, assim como se alteram os modos de sensibilização e reconhecimento diante dos problemas sociais. E, apesar do aprendizado social envolvido, nem sempre resultam em mudanças na sociedade, pois dependem sempre de portadores sociais e das relações estabelecidas entre eles para se efetivarem ou não como forças sociais reflexivas.

Assim, trazemos aos leitores do Pernambuco, em primeira mão, entrevista inédita com uma das maiores especialistas nos temas do experimento, a professora titular de Pensamento Social da Unicamp Elide Rugai Bastos. A entrevista conduzida por Rennan Pimentel (PPGSA/UFRJ), Karim Helayel (PPGSA/UFRJ) e por mim percorre a riquíssima trajetória de pesquisa de Bastos, discutindo temas como região e nação, interpretações do Nordeste, Gilberto Freyre, Ligas Camponesas e reforma agrária, por ela estudados em trabalhos seminais.

 

Você tem uma importante trajetória de pesquisas sobre o Nordeste, na qual sobressaem trabalhos sobre as Ligas Camponesas, Gilberto Freyre e Antonio Pedro Figueiredo. Para iniciarmos a conversa, conte-nos um pouco dessa trajetória de pesquisa. 

Livros de autores denominados regionalistas, tais como Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, lidos durante os cursos fundamental e médio, chamaram minha atenção para a situação da população pobre do Nordeste. As secas sucessivas dos anos 1950, noticiadas pelos jornais, reforçaram a visão sobre o problema. No entanto, foram as situações e debates sobre a seca de 1958 que representaram um alerta sobre a importância do problema e a responsabilidade nacional sobre a questão. Eu frequentava o curso de filosofia, mas, nesse momento, percebi a importância das discussões da sociologia para a dimensão ampla do problema.

Muitos dos retirantes expulsos pela seca vieram para São Paulo depois de longa viagem na carroceria de caminhões chamados “pau de arara”, denominação que depois se estendeu, com sentido pejorativo, aos retirantes. Logo à chegada foram “despejados” nas estações de trem, em especial na da linha Sorocabana. A clara intenção da prefeitura era despachá-los para as cidades do interior do estado, que, em geral, aos poucos os mandavam de volta à capital. Disso resultou que se instalassem em favelas na periferia, que foram vistas como um grande entrave à qualidade de vida da cidade, resultando que houvesse forte preconceito da população em relação aos grupos que chamavam pejorativamente de “nordestinos”.

Assim, de um lado, o tema “qualidade urbana” começou a ser discutido. De outro, a situação dos trabalhadores rurais, principalmente acionada pelos movimentos sociais, que levantavam o problema do sindicalismo rural, legislação trabalhista no campo e reforma agrária, que explicavam a migração Nordeste/Sudeste, ganhou amplo debate. Face a isso, o tema das mobilizações dos trabalhadores rurais levou-me ao projeto que fundamentou minha dissertação de mestrado: as Ligas Camponesas. 

Pesquisar sobre o tema, buscando documentos e tentando fazer entrevistas no período da ditadura de 1964-1985 foi bem limitante. No entanto, permitiu que eu percebesse as diferentes representações sobre o Nordeste que atravessavam não só a bibliografia, como marcavam opiniões, atitudes e encaminhamentos político-sociais. A emergência de posições desfavoráveis em relação ao surgimento de novos atores políticos e novas lideranças que colocavam em questão a concentração da propriedade da terra pareceu-me de importância fundamental para a guinada antidemocrática de 1964.

Ao me dar conta da relação que se estabelecia entre comportamentos e interpretações sobre o país, percebi como, embora geralmente estudado independentemente de seus efeitos políticos, os textos do pensamento social voltados às visões sobre a sociedade brasileira operavam como forças sociais. Imediatamente, relacionei esse ponto de vista com as representações sobre o Nordeste com as quais entrei em contato na pesquisa sobre as Ligas Camponesas e o sindicalismo rural. Com a ajuda de Octavio Ianni, meu orientador, e Florestan Fernandes, professor do curso de doutorado que frequentei na PUC-SP, pude eleger Gilberto Freyre como tema central dessa reflexão. O conjunto de sua obra, que se estendia desde os anos 1920 e início de 1980, constituiu-se na base de uma visão de mundo, extensiva à maioria da população do país, que apoiava a crença de ser a sociedade brasileira uma democracia social, embora conhecesse períodos de ditadura: refiro-me a de 1930-1945 e a de 1964-1985.

A pesquisa sobre Antonio Pedro de Figueiredo, compreendendo o estudo do periódico O progresso (1846-1848), tem a ver com a crítica que faço à interpretação de Gilberto Freyre sobre os movimentos sociais pernambucanos do século XIX, liderados por grupos que o autor identificava na terminologia da época por “mulatos”, formulada no livro Nordeste (1937). Freyre se refere a eles como revoltas de caráter psicossocial geradas pelo inconformismo dos pardos que se revoltavam por não terem um lugar claramente definido na sociedade brasileira, marcada pela polarização negros e brancos. Considera, nesse texto, Antonio Pedro Figueiredo como exceção, um estudioso, tradutor de obras francesas, professor, sem considerar o papel de suas ideias como base para a Revolução Praieira. Não leva em conta o papel político daqueles escritos, nos quais a questão da desigualdade e os privilégios resultantes do latifúndio geram propostas de medidas e taxas que fundariam a redistribuição da propriedade. Sabemos que, infelizmente, foi uma aspiração reformista frustrada e que resultou em desdobramentos que vemos até o momento contemporâneo.

 

Poderia nos falar mais sobre o seu trabalho sobre as Ligas Camponesas?

Já indiquei anteriormente como o debate sobre a questão agrária me orientou na direção do estudo dos movimentos sociais rurais. Assim, no mestrado, que realizei no Departamento de Ciência Política da FFLCH/USP, voltei a pensar nas mobilizações sobre a situação dos trabalhadores agrícolas no Nordeste, que propuseram as ações mais representativas sobre a legislação do trabalho rural, a sindicalização e a reforma agrária. Fiz um trabalho mais bibliográfico e documental contando com poucas entrevistas porque, em meados dos anos de 1970, os atores dessas mobilizações eram prisioneiros políticos, estavam refugiados ou, ainda, foram assassinados. Consultei cartas, boletins das Ligas, declarações da ULTAB (União dos Lavradores e Trabalhadores Rurais do Brasil), artigos de jornais, relatos esparsos, inquéritos policiais-militares. Conversei com Francisco Julião, importante liderança das ligas, que não permitiu que eu gravasse a entrevista, mas forneceu informações preciosas. 

Diante do material restrito, a dissertação é bem mais descritiva do que poderia ser. No entanto, procurei mostrar como as forças político-sociais reagiram diferentemente diante da reivindicação pela legislação do trabalho e aquela que punha em questão a concentração de terra. Tentarei resumir o argumento. O fato de grande parte do Nordeste agrícola ocupado pela monocultura canavieira empregar moradores, posseiros e meeiros, trabalhadores que não recebiam salário monetário mensal, passou a ser visto como um entrave à expansão econômica, um obstáculo à modernização. Ora, a partir de 1956, a proposta de desenvolvimento era prioritariamente industrialista, por isso interessava a mudança da lei de trabalho que permitiria a criação de um mercado consumidor com novas características. Assim, embora recusada pelos proprietários da terra com perfil tradicional, grande parte do setor tinha interesses mais amplos e compreendia as vantagens da medida. Mais ainda, a partir de 1959, Cuba havia sido retirada do mercado internacional controlado e as cotas de exportação da cana-de-açúcar foram redistribuídas, aumentando as possibilidades de produção do Brasil nessa área. Empresários e políticos de São Paulo, estado também produtor de açúcar, viram possibilidades de vantagens de várias ordens nesse quadro. Nessa direção há forte apoio dos jornais para a legislação de trabalho estendida aos trabalhadores rurais.

No entanto, há uma evidente recusa de grande parte da população em relação à reforma agrária. Mesmo a simples desapropriação do engenho da Galileia (NE: engenho de fogo morto localizado em Vitória de Santo Antão/PE) foi mal recebida, alguns jornais afirmando que se tratava de um primeiro passo para “a ocupação de nossos quintais”.

O duplo objetivo colocado pelos movimentos sociais encontrou opositores divididos. O apoio das forças políticas externas à mobilização foi controverso e levou a tensão ao próprio seio dos movimentos sociais. O desentendimento em relação às estratégias para alcançar a reforma agrária provocou debate e posterior divisão entre as Ligas Camponesas e a ULTAB (fundada e dirigida pelo Partido Comunista) no Congresso dos Lavradores e Trabalhadores Rurais, ocorrido em Belo Horizonte em 1961. Essa desunião pode ser vista como um dos elementos importantes, ao lado de outros, para o de enfraquecimento da unidade dos setores reformistas diante das artimanhas que embasaram o golpe de 1964, que reprimiu fortemente todos os movimentos sociais, embora agisse na direção da aplicação da legislação do trabalho rural aprovada em 1963. Reconheço que o quadro é muito mais amplo e me limitei a visualizar apenas parte do processo, estudando prioritariamente o desenvolvimento do movimento da Ligas Camponesas em Pernambuco com poucas incursões nas outras regiões.

 

Você é uma das mais reconhecidas especialistas no pensamento de Gilberto Freyre. Poderia falar um pouco sobre a relação Brasil/Nordeste na interpretação dele?

Comecei minha pesquisa sobre Gilberto Freyre em 1981, quando o autor ainda estava atuando tanto na área cultural – escrevendo livros, artigos em jornais, dando entrevistas – como na política, pois apoiava abertamente medidas da ditadura. Eu lera em anos anteriores seus livros já clássicos, mas apenas como leitora interessada e não como pesquisadora. O primeiro passo a dar na direção da elaboração da tese de doutorado foi a releitura de sua obra e um balanço da bibliografia sobre o autor. Nesse processo percebi que muitos elementos sobre sua vida, seu itinerário intelectual e/ou dados de sua obra entravam em contradição. Por exemplo, no prefácio da primeira edição de Casa-grande & Senzala consta sua afirmação da influência direta de Franz Boas como seu orientador, quando no seu histórico escolar em Columbia não aparece frequência ao curso daquele professor. Nessa obra fica bem claro o desenvolvimento de ideias presentes em alguns escritos de seu amigo Ruediger Bilden, este, sim, orientando daquele antropólogo. Mais tarde tive a satisfação de ver essa influência comprovada no valioso livro de Maria Lúcia Palhares Burke, O triunfo do fracasso: Rüediger Bilden, o amigo esquecido de Gilberto Freyre, publicado em 2012. Pareceu-me patente a existência de uma imagem oficial de Gilberto Freyre administrada por ele, uma mitologia construída também por seus intérpretes. Julguei ser esse um caminho difícil de trilhar. Respeitando o mito, optei pela reconstrução de sua biografia a partir de suas próprias palavras, pois considero que a visão que o autor tem de si e de sua carreira é componente fundamental de sua visão de mundo, e esta, substrato básico de sua interpretação da sociedade. Assim, abri mão de apresentar sua biografia e de reconstruir seu itinerário intelectual, centrando o estudo nos artigos e livros produzidos nos anos 1920 e 1930, articulando as teses apresentadas aos efeitos político-sociais decorrentes delas. 

Partindo do princípio de que a produção cultural expressa uma representação sobre a sociedade e seus dilemas, podemos entender por que o Nordeste foi referência importante no debate dos anos finais da Primeira República e nos primeiros anos da Segunda. Nos anos 1920 a crise do pacto oligárquico e, nos anos 1930, a centralização político-administrativa operada nas diversas fases do governo Getúlio Vargas alteraram a correlação de forças entre os diversos estados do país e o governo central. Em meados dos anos 1920, nosso autor assumiu o cargo de chefe de gabinete do governador Estácio Coimbra, o qual acompanhou no exílio político diante da revolução de 30, permanecendo em Portugal. Percebe-se que, nessa transição, temas que não estavam presentes em seus escritos e na sua dissertação de mestrado, escrita na Universidade de Columbia, ganham nova dimensão. Assim, tanto em Lisboa como em seu retorno aos Estados Unidos (em 1931 esteve algum tempo como professor visitante em Stanford) pôde recolher material documental e bibliográfico que serviu de base para a escritura de Casa-grande & Senzala. Ao perceber essa mudança temática pude trabalhar a diferença dos efeitos políticos dos escritos de Gilberto nos dois contextos históricos e o sentido que o regionalismo assumiu em cada decênio (1920 e 1930). Analisando os artigos de Gilberto no Diário de Pernambuco e sua dissertação (publicada com alterações muitos anos depois), foi fácil perceber que suas posições nesse primeiro período ainda estão impregnadas pelo eugenismo. É exatamente a negação daquelas posições que regem livros do decênio posterior: Casa-grande & Senzala (1933), Sobrados e mucambos (1936), Nordeste (1937). Assim, levantei algumas hipóteses para orientar a pesquisa. 

Primeiramente, aponto que Gilberto Freyre representa ruptura com autores anteriores, pois consolida a sistematização da sociologia brasileira, questionando a natureza das propostas sobre determinismo geográfico e aquelas sobre a sociobiologia, que tinham seu fundamento na aceitação da tese da inferioridade das raças não brancas. Isso tem a ver com sua preocupação de discussão sobre o Nordeste. Depois, mostro o efeito político de sua interpretação em relação ao papel das medidas tomadas por Vargas que visavam demonstrar a unidade e a identidade nacionais. Para fundar a primeira hipótese explorei os três eixos explicativos da formação da sociedade brasileira expostos naqueles livros: o patriarcalismo, a articulação etnias/culturas e o trópico. Considero que o autor confere papel central ao patriarcalismo, mostrando que o patriarca é controlador da ordem social, o principal responsável pelos “antagonismos em equilíbrio” que impedem uma ruptura que poderia ocorrer provocada pela oposição senhores e escravos. Mais, isso permite que afirme a importância da autogestão da sociedade, prescindindo de controle centralizador tanto representado pelo Estado como pela Igreja. A continuidade da autogestão da sociedade iniciada no período colonial, que tem seu desdobramento em parte do período imperial, mostra a importância da dependência político administrativa regional, que ele mostrará mais tarde, em Ordem e Progresso (1957), com o rompimento de D. Pedro II com o patriarcado. Aqui, novamente, o lugar do Nordeste no âmbito nacional torna-se questão de grande importância. 

Decorrente da pesquisa para a tese de doutorado, publicada com o título As criaturas de Prometeu, explorei a vertente de proximidade de Gilberto Freyre com os autores espanhóis, cuja leitura é citada por ele. Sobre questão do regionalismo e tradicionalismo, presentes tanto nos escritos da década de 1920 como nos livros posteriores de nosso autor, a leitura da obra de Ángel Ganivet é central. A intra-história, proposta de Unamuno, que mostra na Espanha a presença das tradições culturais dos povos do norte da África presentes no cotidiano da população, torna-se central na análise freyriana da contribuição dos escravos brasileiros à cultura brasileira. Esses estudos foram a base de minha tese de livre docência, e publicados no livro Gilberto Freyre e o pensamento hispânico.

 

Como você analisa o caso emblemático da criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene)?

Trata-se realmente de um caso emblemático e seria impossível analisá-lo nas poucas linhas desta entrevista. A Sudene foi, sem dúvida, um grande projeto econômico-social conhecido internacionalmente porque articulado ao projeto desenvolvimentista que tem em Celso Furtado um dos seus líderes. Estudos sobre a Sudene em excelentes textos que mostram sua história, sua atuação, o lugar que ocupou em diferentes momentos políticos foram feitos por autores de várias áreas do conhecimento como economia, ciência política, história, sociologia e grande parte deles se encontra no acervo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. O que conheço sobre essa questão tem a ver principalmente com o período de sua fundação por ter sido no mesmo cenário do surgimento das Ligas Camponesas, o que é muito pouco. 

Aproximei-me dos estudos sobre essa questão ao refletir sobre a crise regional e as várias abordagens sobre o problema, entre os quais se destaca a indagação sobre como integrar a região ao projeto de desenvolvimento nacional. Coordenado por Celso Furtado, o GTDN – Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste – criado em 1958 elabora um estudo sobre a região que serve de base para a formação do Codeno (Conselho de Desenvolvimento do Nordeste), que se tornou, no ano seguinte, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), no quadro do programa de metas do governo Juscelino Kubitschek. Mas, desde anos anteriores, as discussões sobre a situação da região já abordavam os resultados extremamente restritos das medidas governamentais voltadas apenas à construção de açudes e utilização em tempo parcial da mão da população expulsa pela seca em projetos improvisados. É exatamente a superação desses limites de políticas socioeconômicas elaboradas nos governos anteriores que a Sudene se propõe. Além disso, instituições, grupos políticos sociais, intelectuais e artistas, como citei anteriormente, mobilizavam-se para discussão sobre a fome, o desamparo governamental em relação à educação (em especial a superação do analfabetismo), a concentração de terras, a legislação do trabalho rural, o desemprego, entre outros problemas. Lembro, além das organizações já citadas em comentário anterior, o empenho dos bispos da região, membros da CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil), criada em 1952, que atuavam na fundação de sindicatos rurais, em programas de alfabetização e formação de lideranças locais e que organizaram, em 1956, o Congresso de Salvação do Nordeste, no qual foram levantadas questões centrais em relação à questão agrária. 

A Sudene nesses anos iniciais, sob a superintendência de Celso Furtado, desenvolve um diálogo produtivo com esses grupos e dirige sua atenção para os problemas agrários. O livro A operação Nordeste, desse economista que coordenou a Sudene até 1964, quando foi cassado pelo governo militar, foi importante para que eu pudesse desenhar o quadro da crise e das estratégias para resolvê-la. Entre estas, o combate à “indústria da seca” através do desmonte de certas injunções políticas que a possibilitavam. Por essas razões, foi o quadro político desencadeado pela Sudene, um dos efeitos da operação econômico-social, que centralizou minha pesquisa.

 

O problema da estrutura fundiária no Brasil, calcada no latifúndio e na monocultura, foi tratado em diversas interpretações do Brasil, nem todas, porém, tematizaram a questão da reforma agrária. E entre as que tematizaram, podemos observar visões muito plurais. Como você vê essa questão no pensamento social?

A concentração de terras no Brasil, desde sempre – na Colônia, no Império, na República – é um fato que não pode ser negado por nenhum autor. A colonização centrada na atribuição de sesmarias partia desse princípio. Mesmo depois de 1922, com o Estado Nacional, passaram-se 28 anos sem uma legislação sobre as terras. Somente em 1843 iniciaram-se as discussões parlamentares sobre a questão, com prevalência das posições que apoiavam a grande propriedade e desaprovavam o que chamavam “fragmentação das terras”. A Lei de Terras aprovada em 1850 foi determinante para a concentração fundiária, pois dificultava, a partir de taxas e regras sobre a posse, o acesso de escravos alforriados e imigrantes à propriedade agrícola. 

Mesmo nesse período, apesar das restrições, esse debate, como indiquei anteriormente, estava presente nos escritos de Antonio Pedro Figueiredo, no jornal O Progresso (1846-48), que denunciava a desigualdade e os privilégios advindos do latifúndio e propunha a instauração de impostos crescentes em função da extensão da propriedade. 

Oliveira Vianna, em Populações Meridionais do Brasil, publicado em 1920, ao formular uma saída para a polaridade das forças sociais e políticas no país, organizadas entre clãs e plebe, aponta que essa simplificação da estrutura da sociedade se devia à inexistência de uma classe média fundada na pequena propriedade rural. Embora não propusesse um projeto de reforma agrária, faz críticas pertinentes à cultura extensiva e à grande propriedade. Gilberto Freyre, como exemplo da pergunta que me fazem, está entre os autores que, em sua obra – em especial em Casa-grande & Senzala e Nordeste –, não tematiza a reforma agrária, embora apresente algumas críticas importantes à monocultura canavieira, processo que seria a causa da subnutrição da população pobre no Nordeste. Já Nestor Duarte, em seu livro Reforma agrária, de 1953, considera fundamentais dois pontos centrais para sua realização: distribuição de terras e dedicação forte à policultura.

Vários autores que estudam a formação econômica do Brasil mostram em suas pesquisas os efeitos sociais e políticos da concentração de terras. Exemplifico com alguns deles. Caio Prado Jr., em Formação do Brasil contemporâneo (1942) e História Econômica do Brasil (1945), já apontara a importância da concentração de terras para o estabelecimento da estrutura social do país. Vários de seus artigos dos anos 1960 reportam especificamente a esse tema debatido largamente naquele momento e foram reunidos no livro Questão Agrária no Brasil (1979). Alberto Passos Guimarães em Quatro séculos de latifúndio (1963) trata dos efeitos desse processo e, nos textos originários dos debates sobre a questão, publica A crise agrária, em 1973. Ignácio Rangel, importante analista da economia brasileira, membro do ISEB, analisa a estrutura fundiária e suas consequências em A questão agrária brasileira, de 1963. 

Esses três últimos exemplos estão situados no contexto em que a questão da posse da terra e do entrave que esta representa para o desenvolvimento da América Latina ganha seu ponto mais alto no fim dos anos 1950 e início de 1960. A Organização dos Estados Americanos (OEA) publicou nesse quadro um importante estudo sobre a situação da estrutura fundiária nos países das Américas Central e do Sul, marcada pela forte concentração da terra. No Brasil, projetos referentes à reforma agrária, mais de 200, tramitavam na Câmara e no Senado até março de 1964. 

Há, ao lado de posições de autores e grupos políticos que apoiaram esse processo, aqueles que atuaram fortemente em direção contrária (e foram vencedores!). Ilustro com a publicação da TFP (Sociedade de Defesa da Tradição, Família e Propriedade), Reforma Agrária: questão de consciência, de 1960, que teve largo êxito, com várias edições em três anos, totalizando 30.000 exemplares vendidos. O autor oficial é Plínio Correia de Oliveira, responsável pela parte ideológica do livro com o apoio dos bispos D. Antonio Castro Mayer (bispo de Campos, RJ) e D. Geraldo de Proença Sigaud (bispo de Jacarezinho, PR). Esse grupo católico conservador se opôs diretamente a D. Helder Câmara, secretário-geral da CNBB, que divulgara as resoluções dos encontros dessa organização em favor da reforma agrária. Além disso, se colocaram contra o projeto modernizador Revisão Agrária apresentado à Assembleia Legislativa de São Paulo pelo governador Carvalho Pinto, cooptando deputados contra a proposta. Trata-se de ação muito importante, pois, mais tarde, em torno de suas ideias, se organiza a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, ponto forte de apoio ao golpe de 1964. Em vários artigos do jornal Catolicismo, publicado pela TFP, há a menção à sua contribuição para “a criação desse clima ideológico e psicológico que se traduziu em tais manifestações de patriótico inconformismo”. 

O texto Reforma Agrária: questão de consciência não se pronuncia diretamente contra a reforma agrária, mas não aceita o princípio igualitário sobre o direito à propriedade. Cito passagem introdutória do livro, pois vejo muita semelhança com posições políticas atuais: “se por reforma agrária se entende uma legislação que, sem exorbitar das funções do Estado e sem atacar o princípio da propriedade privada, visa a melhorar a situação do trabalhador rural e do agricultor, só aplausos lhe temos a dar. Não nos opomos senão a uma reforma agrária de sentido igualitário e socializante, que altere nossa estrutura agrária injustamente, de maneira a abalar o instituto da propriedade, no qual vemos, como já dissemos, a base e a condição de toda economia sadia”. 

Sabemos que o período seguinte, de mais de duas décadas, tanto as denominadas interpretações do Brasil como os escritos sobre a reforma agrária sofreram retrocesso, com muitos intelectuais e artistas sendo afastados de suas funções e tendo suas ideias censuradas. 

A pergunta acima lembra que as visões sobre a reforma agrária são plurais. É certo, pois traduzem a realidade da presença de forças sociais e interesses divergentes. Todo projeto de reforma de uma situação dada socialmente constitui-se em um processo de intervenção na sociedade que supõe a existência de uma correlação de forças que se opõem e que traduzem uma divisão desigual de poder na sociedade. Umas se impõem contra outras. Apesar de excelentes análises sobre como a concentração de terras se constitui em obstáculo a uma plena democracia, afeta os direitos e a igualdade de condições de competição de grande parte da população brasileira, continuamos com essa herança histórica. Dados recentes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) mostram que apenas 0,7% das propriedades têm área superior a 2 mil hectares (20 km2); somadas, ocupam quase 50% da zona rural brasileira. Por outro lado, 60% das propriedades não chegam a 25 hectares (0,25 km2) e, mesmo tão numerosas, só cobrem 5% do território rural. Assim a reforma agrária continua sendo um desafio a ser enfrentado e um tema que não pode ser esquecido pelo pensamento social.

 

E como vê a questão da reforma agrária na contemporaneidade, tendo em vista o papel renovado e ampliado assumido pelo agronegócio na economia brasileira?

Como citei acima, a via pela qual se optou na ocupação da fronteira econômica foi o de concentração da propriedade da terra, conforme os dados escancaram. A seu lado conhecemos, no país, uma forte concentração da renda, pois 1% da população no Brasil detém 49% da renda. Muito dessa riqueza fica no agronegócio, que representa 27% do nosso PIB. Esses aspectos mostram que a questão da reforma agrária ganha outro perfil, muito diferente daquele que citei para os anos 1960. 

O agronegócio, se considerarmos seu desempenho na diversificada produção agrícola, seu lugar em diferentes regiões do país e a posição política assumida pelos grupos que o compõem, não pode ser analisado como um todo. Lembro, para exemplificar, as formulações opostas assumidas pela Associação Brasileira do Agronegócio e a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária em relação ao Projeto de lei 510/2001 apresentado ao Senado em 28/04/2023, sobre a flexibilização das regras para regularizar áreas desmatadas ilegalmente. De um lado, a CNA defendia a aprovação do projeto; de outro, a ABAG – que faz parte da Coalizão Brasil, Clima, Florestas e Agricultura –, não aceitou a proposta, acusando-a de reforçar a anistia de irregularidades e sugerindo sua discussão ampla pela sociedade. O projeto, que já apresentava mais de cem emendas, teve sua discussão adiada. 

Não entro em pormenores, mas reconheço que cada grupo defende interesses próprios em defesa da propriedade da terra ou sua submissão. Porém, a partir desse exemplo recente, quero apontar que situações novas integram o debate sobre a reforma agrária. Além disso, a forma que assumem as mobilizações sociopolíticas em relação à aspiração de reforma agrária não se limita à reivindicação pela propriedade. Envolve o modo pelo qual se apoia a produção, a situação de trabalho, a questão ambiental, a aplicação do crédito agrícola, o acesso à saúde, à educação, ao mercado, o uso de defensivos, o respeito às terras indígenas, às áreas quilombolas, à participação representativa dos pequenos produtores na agenda política e muito mais, além da clareza sobre as medidas tomadas. É um desafio que temos que enfrentar se queremos construir uma sociedade democrática. Para isso, a contribuição de um pensamento social lúcido é fundamental.

SFbBox by casino froutakia