ClaireDavison Divulgação

Katherine Mansfield morreu precocemente em 1923, com apenas 34 anos. Vítima de uma tuberculose que a levou a um isolamento longo e silencioso, sua produção epistolar se tornou uma atividade diária – as cartas eram a voz daquilo que não se podia falar, um diálogo de ausentes.

Conversei com Claire Davison, professora da Universidade Sorbonne-Nouvelle (França) que recentemente trabalhou com a edição dessas cartas – já foram lançados dois dos quatro volumes previstos, todos pela Edinburgh University Press. Estamos trabalhando juntas na seleção e tradução dessas cartas para uma edição brasileira. Discutimos nesta conversa a literatura, as cartas e aspectos da vida de KM nessa entrevista que homenageia a modernista outsider de língua inglesa.

Claire, muito obrigada por participar dessa conversa sobre Mansfield. Eu gostaria de começar com perguntas sobre ela – Katherine Mansfield: quem foi ela e por que você considera que ela tenha sido uma figura importante para a literatura de língua inglesa?

São perguntas ótimas para começar! Bom, ela é provavelmente a autora mais conhecida e mais amada da Nova Zelândia, mas ela também é uma figura marcante para o princípio do movimento Modernista – não seria um exagero dizer que ela transformou a arte do conto, fazendo com que fosse possível dar um grande salto entre as narrativas rigidamente fechadas da era vitoriana, com suas histórias sobre fantasmas e detetives, para o rico equilíbrio impressionista do moment of being [“momento de ser”],[nota1] para usar um termo woolfiano. Seu uso da voz e ponto de vista, por exemplo, assim como cor, paisagem sonora, e apreensão sensorial, foram muitas vezes realmente pioneiros.

Ela também é muito importante como uma notável escritora, num contexto em que a herança social, política e cultural das mulheres estava sendo renegociada. E não dá para esquecer que ela também foi muito representativa como uma figura bastante moderna do outsider, os excluídos e deslocados – sua experiência em Londres foi, muitas vezes, aquela da little colonial [“colonazinha”, em tradução livre], como ela mesma diz. Depois, ela passa a maior parte de sua vida adulta fora de seu país, em trânsito, no exterior, registrada como um alien na França durante a Primeira Guerra Mundial, e depois confinada numa cama quase como uma inválida, à mercê dos médicos, em um momento em que se sabia muito pouco sobre o tratamento de tuberculose. Ela não dá voz aos sofrimentos do outsider de maneira direta e explícita, mas a sua poética narrativa está mergulhada nessa experiência.

Você não trabalha apenas com a obra literária de Mansfield, mas também – ou principalmente! – com suas cartas. Isso é particularmente interessante porque, eu imagino, essa leitura deve te dar uma boa noção, para além do trabalho de Mansfield, das questões e dos problemas relacionados à escrita de autoria feminina do início do século XX.

Sim, estou mais envolvida com as cartas agora que estou coeditando uma nova edição crítica da correspondência completa. E, claro, o estilo itinerante da Mansfield fez com que ela escrevesse centenas de cartas – na verdade mais de mil! Sinto que essas cartas são essenciais para o entendimento sobre Mansfield e Modernismo, dado que essa era a idade de ouro dos correios. E muitos modernistas viveram e escreveram “em trânsito”. As cartas de Mansfield são, antes de tudo, testemunhos biográficos muito comoventes – não tanto pelo conteúdo das cartas, mas pelo papel que ela usava, a tinta, o lugar de onde ela escrevia, a qualidade da caligrafia (realmente dá para ver quando ela está fraca – sua escrita vira um tipo de rabisco frouxo a lápis, porque o lápis funciona melhor quando você é obrigado a ficar deitado). As cartas são fascinantes também porque, diferente da literatura, elas não sofrem nenhum tipo de censura, então ela não precisava se preocupar com as intervenções de editores ou das editoras. Mas acima de tudo elas revelam uma certa atuação, como quando ela conta as mesmas histórias, mas com uma inclinação um pouco diferente que varia se a carta é escrita a um grande amigo, um conhecido com quem ela brigou, a amantes ou ao marido.

Por fim, as cartas nos mostram a grandeza e a riqueza de suas conexões com as mulheres, e a maneira como as mulheres artistas – não apenas colegas escritoras, mas editoras, artistas, anfitriãs dos salons, jardineiras e musicistas – estavam interconectadas por tantas vias diversas.

Você a considera uma autora feminista? Por quê?

Olha, essa é realmente uma pergunta complexa. Se olharmos para os escritos da Mansfield em busca de afirmações explicitamente feministas, é bem possível nos decepcionarmos – no máximo, encontraremos uma Mansfield um pouco impaciente com as campanhas pelos direitos das mulheres, e ela pode virar a cara ao feminismo nos termos bem clichês. Agora, se deixarmos de buscar o que ela disse sobre feminismo (o que é muito pouco na verdade) e olharmos para o que ela escreveu sobre atitudes patriarcais, sobre o machismo presente no cotidiano, sobre direitos das mulheres (ou a falta deles) em cenários domésticos, veremos então uma Mansfield objetivamente bastante feminista. Da mesma forma, se olharmos para as suas histórias, e para atenção que ela tem com as mulheres de todos as classes sociais, de diversos países, e como ela retrata a vulnerabilidade feminina, e também a falta de acesso à educação, e a terrível tensão em torno do corpo feminino em uma época sem controle de natalidade, e abortos imprevistos e ilegais, e uma sociedade marcada por costumes predatórios de uma masculinidade privilegiada...! Então, não teremos dúvida alguma sobre sua posição política em relação a sexo e gênero. Ela é imensamente sensível à experiência de viver neste mundo sendo uma mulher, desde o início da infância até o fim da vida – e poucos autores naquela época exploraram os percalços e as belezas tda feminilidade que se construía naquele momento.

Quando traduzo as cartas de Mansfield, é muito evidente o quanto ela tinha um gesto apurado e uma noção muito intensa sobre a técnica. O tamanho das frases, o ritmo, o tom. Ela é, como eu li uma em uma de suas cartas, “uma grande defensora da forma”. Você acredita que esse aspecto faz parte de padrão da escrita modernista da época ou considera que isso seja a escrita dela, sua particularidade como escritora?

Isso é a Mansfield, com certeza! Para Mansfield, técnica não era algo mental, artificial – era o tom, o pulso, o ritmo e o charme das frases, como elas soavam e como a cadência se movia. Não podemos nunca esquecer que Mansfield estudou música; prosa e ficção, para ela, estavam muito próximas de uma linguagem musical – tinha que tocar, ressoar e acertar acordes. Muitas vezes ela usa a música para explicar como ficção em prosa deve ser formalmente elaborada – e ela também ficava muito irritada com a falta de preocupação de outros escritores com detalhes formais fundamentais. Ela compartilha essa preocupação com muitos colegas escritores, mas eu acho que ela traz uma voz bastante “mansfieldiana” para o modernismo – e seus métodos claramente moldaram o posterior desenvolvimento da prosa modernista. Um exemplo claro disso é a inspiração que Mansfield foi para o desenvolvimento da escrita de Virginia Woolf. Os críticos costumam apresentar as duas autoras a partir de um cenário de rivalidade, mas as cartas que elas trocaram (mais uma vez as cartas!) mostram o quanto discutiram intensamente as formas literárias e a arte a que elas deveriam aspirar. Woolf, afinal, admitiu para si mesma (em seu diário) que Mansfield era a única autora que ela realmente invejava – acho que isso diz muito!

Você editou recentemente – com Gerri Kimber – uma nova coleção das cartas de Katherine Mansfield. Você publicou todas as cartas? Por que essa edição é diferente das edições de V. O’Sullivan ou John M. Murry? Pode nos contar um pouco sobre esse novo livro?

Claro. Estamos muito orgulhosas dessa edição. Ela realmente inclui todas as cartas, e buscamos muitas novas desde que as últimas edições foram publicadas. Há duas diferenças principais nessa edição – mesmo se compararmos às outras edições de cartas dos modernistas. Primeiro, em vez de trabalhar cronologicamente, decidimos organizar o volume por destinatário. A vantagem dessa escolha é um afastamento daquela abordagem intensamente biográfica: por exemplo, quando lemos cartas buscando por sinais de morte eminente, sabemos quando ela está logo ali na esquina. Mas Mansfield viveu e escreveu como se ela tivesse a vida sempre à sua frente, e escolhemos respeitar isso. Além de tudo, seu estilo e seu direcionamento mudavam muito de um destinatário para o outro, e queríamos destacar isso. Organizar essa edição por destinatários quer dizer, por exemplo, que no primeiro volume escutamos sua voz, estilo e “máscara” quando ela fala com sua prima, a escritora Elizabeth von Arnim, e depois com suas irmãs, uma por uma, depois seus pais, depois sua fiel companheira e melhor amiga Ida Baker, e por aí vai. Cada sequência é antecedida de uma introdução sobre cada destinatário, buscando detalhar o cenário daquela correspondência.

O outro fator importante é a extensa relação de notas e comentários. As outras edições acompanham as estranhas notas “úteis”, mas que são, na verdade, simplesmente detalhes biográficos. As nossas notas explicam as referências sociais, culturais, históricas e políticas, e destacam os dispositivos temáticos e formais ao longo do caminho. É realmente uma edição feita para alunos e pesquisadores dos dias de hoje que queiram descobrir a grandeza do mundo modernista e da modernidade como estava tomando forma naquele cenário. A título de curiosidade, as notas sinalizam todos os textos literários que ela comenta, e isso realmente intensifica nossa admiração pela Mansfield como uma leitora e intelectual impressionante.

Bom, eu acho que a edição da correspondência de alguém é um dos trabalhos mais delicados que existem na nossa área, na literatura. Muito obrigada, Claire. Você gostaria de dizer mais alguma coisa sobre ela, seus livros, traduções... Mansfield foi lida por duas autoras brasileiras muito importantes: Ana Cristina Cesar e Clarice Lispector, e ambas foram profundamente tocadas pelo trabalho da Mansfield. Adoro esse laço.

Isso é tão emocionante, e é um dos vários caminhos possíveis para pesquisas futuras que desejamos incentivar com a edição da Edinburgh [University
Press] dos textos de Mansfield (contos, diários, cadernos, poesia, ensaios, resenhas, traduções e as cartas). De qualquer maneira, fico muito curiosa para saber como o Brasil modernista – e autores do Brasil moderno (tanto homens quanto mulheres) recebem o trabalho dela, e talvez escutar como soa o tom da “Mansfield” na voz brasileira.

[nota1] “Momento de ser” é quando alguém está completamente consciente de sua experiência, em uma apreensão total da realidade. Ver Moments of being, reunião de ensaios autobiográficos de Virginia Woolf (1a edição de 1976).

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