Ilya Kaminsky reside num espaço interessante. Nasceu onde hoje é a Ucrânia, na cidade de Odessa. Viveu no país natal até os 16 anos, sem boa parte da audição e sem nenhum aparelho auditivo que lhe auxiliasse. Aprendeu, ele diz, a ver os sons em lugar de ouvi-los. Nessa idade partiu para os EUA, sem saber nada do inglês. Mesmo assim resolveu escrever seu primeiro livro, Dancing in Odessa, de 2004 (ainda sem tradução para o português), na nova língua. Os poemas que elaborava eram como professores do idioma.
Quinze anos depois, em 2019, lançou outro livro de poemas, República surda, também em inglês, que saiu no Brasil neste ano pela Companhia das Letras, em edição bilíngue e com tradução de Maria Cecilia Brandi. O livro se dispõe inicialmente como uma peça de teatro: é dividido em dois atos e conta com um dramatis personae para introduzir suas personagens. Segue, porém, em forma de vários poemas, quase sessenta ao todo, que contam a história de Alfonso Barabinski e Sonya Barabinski, no primeiro ato, e “Mamãe galya armolinskaya”, no segundo ato. Os três vivem na cida- de fictícia de Vasenka, que é controlada por soldados autoritários. Nela, um garoto surdo é assassinado pelos militares e isso dispara uma guerra em que o silêncio leva a outras formas de comunicação.
Escrito ao longo de quinze anos, República surda é um livro que nos permite pensar em alguns temas e contrastes: as limitações da língua, o autoritarismo e imperialismo, a importância dos sistemas sensoriais no idioma, as possibilidades únicas de absorver e examinar o mundo a partir da ausência de alguns desses sentidos (no caso, o da audição), o lugar dos momentos fraternos mesmo em meio à barbárie ou à crise, o não lugar do próprio Kaminsky, entre Oriente e Ocidente. São todos assuntos perpassam a entrevista que tive com o escritor, que você lê abaixo.
***
A surdez tende a ser tratada pelas pessoas como uma característica sempre negativa. Você diz que, pelo contrário, a surdez ocasionalmente suscita a manifestação de novas perspectivas de mundo e também novas linguagens que podem escapar àqueles que conseguem ouvir. Que tipos de linguagens entram no seu República surda?
No fim de República surda tem um verso que diz “Os surdos não acreditam no silêncio. O silêncio é invenção dos ouvintes”. O que isso significa: Primeiro, se você olha para boa parte da teologia e filosofia do Ocidente, ela flerta bastante com a ideia do silêncio. O silêncio é quase um fetiche. O silêncio e Deus, silêncio e moralidade, silêncio e vida pública, e assim por diante. Há livros, estantes inteiras escritas sobre o assunto. E se você exclui o silêncio — se você o chama de uma invenção, como a maioria das pessoas surdas te diria — o que resta? Se sobra apenas aquele flerte, isto nos diz algo sobre nossa cultura e suas limitações, não? O que é o silêncio se você questiona qualquer pessoa surda e ela lhe diz que ele não existe? Não existe para 10% da população do planeta. Então o que o silêncio faz na nossa teologia, na nossa filosofia?
Depois, há uma questão mais urgente e imediata, da perspectiva dos estudos das deficiências. Como alguém com problemas de escuta [hard of hearing], eu tenho interesse em Rosemarie Garland-Thomson, por exemplo, uma intelectual conhecida no campo de estudos das deficiências. Seu livro, Extraordinary bodies (1997), diz algo bem relevante para a América [os Estados Unidos] de hoje, para a pandemia da covid: “o corpo deficiente deveria sair do campo do hospital para o campo das minorias políticas”.
Nos EUA de hoje, mesmo o presidente democrata [Joe Biden] propõe projetos que nos deixam com 10 milhões de pessoas sem seguro de saúde. Do lado dos [políticos] republicanos é ainda pior. Essa é a relevância, entende? Dez milhões de pessoas deixam de ser “deficientes” e passam a agentes políticos, porque o país as fez assim.
Claro, o poeta não é apenas um animal político. O poeta é uma criatura de sentidos. Então, se um poeta te fala sobre paisagem sonora, um poeta surdo pode falar ao mundo que ouve sobre as limitações da paisagem sonora. Não existe apenas uma forma de ouvir — todo mundo concordaria. Mas o que isto significa? Existe a linguagem corporal, a possibilidade de ler os lábios. E há limitações para ambas também. Mas há uma grande vantagem: o quanto da nossa comunicação é em inglês e o quanto é linguagem corporal? Não tenho dados para o inglês, mas em russo é quase 30% linguagem corporal. É bastante.
Um poeta duvida da fala porque estamos cientes das limitações da linguagem falada. Eis o quanto perdemos dentro da nossa paisagem sonora. É curioso: o poeta está sempre inteiramente ciente do grande dom que é a fala, todo mundo é apaixonado pela fala, a música da linguagem. Mas um poeta também duvida da fala, porque também estamos cientes dos seus limites.
Sua língua nativa é o russo, mas você escolheu o inglês como ferramenta de escrita. Você já falou antes sobre como jovens poetas deveriam almejar aprender algo sobre si por meio da linguagem, enquanto amadurecem e se tornam escritores de verdade. O que você aprendeu nos 15 anos em que escreveu República surda e como o inglês moldou esse aprendizado — se é que moldou?
Eu nasci em uma família falante do iídiche, em Odessa, na Ucrânia. Iídiche era a língua que minha avó e minha mãe usavam para conversar entre si. Mas no tempo que nasci, já não era assim. Um parente nosso foi espancado por antissemitas em Uman, Ucrânia, por falar iídiche em público, no meio da rua. Então minha mãe, quando eu nasci, se recusou a me ensinar a língua. Olhando para trás, entendo que essa foi a forma dela de me proteger.
Todas as línguas que aprendi enquanto crescia, o russo, ucraniano, inglês — todas giram em torno desse vazio central: a ausência do iídiche que minha avó e mãe usavam entre si, que eu não entendia. Outra ausência: não tive aparelhos auditivos até completar 16 anos. Como uma criança surda, vivi meu país como uma nação sem som. Eu ouvi a União Soviética colapsar com meus olhos.
Andando pela cidade, assisti as pessoas, seus ouvidos estavam abertos o tempo todo, não tinham pálpebras. Eu era interessado em como os sons podiam ser. O sibilar. O assoviar. O som de chaves virando na fechadura, ou água se movendo pelos canos dois andares acima de nós. Podia facilmente perceber como pessoas à minha volta se comunicavam com os olhos sem perceberem. Mas e se todo o país fosse surdo como eu? E, sempre que um policial comandasse algo, ninguém pudesse ouvir? Gostava de imaginar isso. Silêncio, a última vizinhança intocada pela sabedoria do governo.
Mas, sim, escrevi meus versos em russo por um bom tempo antes de vir para os EUA. Quando chegamos no país, eu tinha 16 anos. Ficamos em Rochester, Nova York. A questão de como o inglês é minha língua preferida para a literatura teria sido bem irônica lá atrás, já que nenhum de nós falava inglês — eu mesmo mal sabia o alfabeto. Parar em Rochester foi muita sorte, o lugar foi um presente mágico, [foi] como parar em um tipo de colônia da escrita. Não havia nada para fazer além de escrever poesia!
Por que inglês, então, e não russo? Meu pai morreu em 1994, um ano depois da nossa chegada nos EUA. Eu entendi imediatamente que seria impossível para mim escrever sobre sua morte em russo — como diz certo autor em algum lugar, sobre a morte do seu pai, “ah, não vire meras lindas linhas de poesia!”. Escolhi o inglês porque nenhum dos meus amigos ou família sabia falar, ninguém com quem eu falava conseguia ler o que eu escrevia. Eu mesmo não conhecia a língua. Era uma realidade paralela, uma liberdade insanamente bela. Ainda é.
Outra pergunta que pode surgir enquanto alguém lê sua obra é o quanto realmente pode ser dito à distância, do conforto da própria cama, sobre a guerra. E também o quanto se pode sustentar a própria quietude e não fazer nada frente a uma guerra − ou, como indaga um dos seus versos, como é possível vivermos felizes durante a guerra? Imagino que, tendo nascido na Ucrânia, este seja um dilema ainda mais complicado. Como você lida com essas questões, enquanto escritor?
Lido com essas questões escrevendo poemas. O que você pergunta tem a ver com o poema que você citou, Vivemos felizes durante a guerra [publicado em República surda]. Aqui está:
E quando bombardearam as casas dos outros, nós
protestamos
mas não o bastante, nos opusemos mas não
o bastante. Eu estava
em minha cama, ao redor dela os Estados Unidos
desabavam: casa invisível após casa invisível após casa invisível —
Levei uma cadeira para fora e olhei o sol.
No sexto mês
de um reinado desastroso na casa do dinheiro
na rua do dinheiro na cidade do dinheiro no país do dinheiro,
nosso incrível país do dinheiro, nós (perdoem-nos)
vivemos felizes durante a guerra.
Como pode ver, o poema está usando a felicidade do mundo com uma ironia acre. O leitor é ele mesmo levado a dizer, para si: “No sexto mês/ de um reinado desastroso na casa do dinheiro/ na rua do dinheiro na cidade do dinheiro no país do dinheiro” — a esta altura, a repetição de “dinheiro” não é de forma nenhuma uma coisa feliz. Depois o leitor tem que dizer mais uma vez “nosso incrível país do dinheiro”, e esse “incrível” certamente não é positivo. O império torna vazios tanto aquela felicidade quanto aquele pedido por perdão. O poema pede para o leitor refletir sobre quem ele é e sobre o que é sua felicidade. Uma grande interrogação.
Veja esta mesmíssima pergunta que você me fez sobre a guerra na Ucrânia. Não é a primeira invasão perpetrada pela Federação Russa. Até antes de Putin — depois da queda da União Soviética [em 1991] — a Federação Russa bombardeou a Moldova [em 1992]. A agora região de Peridniestriana [conhecida como Transnístria[nota1], território entre a Moldova e a Ucrânia] era um lugar onde escolas e hospitais eram bombardeados por aeronaves russas. Moldova está a apenas algumas horas de Odessa. Refugiados vinham aos montes ao nosso apartamento em Odessa. As pessoas vinham de pijamas, sem mais nada, pedindo por ajuda. O que o Ocidente fez? Nada. Então Putin bombardeou a Chechênia [em 1999]. O que o Ocidente fez? Nada. As empresas ocidentais faziam dinheiro com petróleo que era mais barato por causa da guerra. Putin invadiu a Geórgia [em 2008], pegou uma parte dela para si, a Abecásia. A Rússia bombardeou a Síria [em 2015, em apoio ao ditador Bashar al-Assad]. O que o Ocidente fez? Continuou vivendo feliz durante estas guerras, fazendo dinheiro com o petróleo barato da Rússia.
Essa é minha resposta à sua pergunta.
Um pedaço significativo do seu República surda é sobre olhar para a guerra não apenas como destruição, pois pode haver sinais de esperança, luta, amor até. Esta é uma resposta para uma das suas obsessões — “que tipo de língua pode ser encontrada num tempo de crise”? Ela é encontrada nessa percepção lírica do belo e do horror, no meio do conflito?
No Ocidente, temos o termo “poesia política”. O que americanos [dos EUA] querem dizer, quando falam que algo é “político”, é que discordam daquilo.
Nos Estados Unidos, quando as pessoas falam sobre a guerra, falam da mesma maneira que os deuses gregos falavam sobre o mundo abaixo do Monte Parnaso [o Olimpo era a morada dos deuses e o Parnaso era a das musas]. A guerra era um problema que acontecia noutro lugar, com outras pessoas. Era ruína, ruína, ruína. Quando americanos escrevem poemas sobre guerra é tudo ruína, ruína, ruína.
Mas todo mundo que já viveu em lugares em crise sabe que ainda assim as pessoas têm filhos, ainda se casam, se apaixonam e, quando seus amados morrem, cavam buracos na terra, lavam seus corpos, colocam-nos nestes buracos e cantam canções. Não neguemos esta humanidade aos sobreviventes. Esta humanidade é o porquê de terem sobrevivido. Porque minha avó, que foi mandada pelo governo de Stálin para uma prisão na Sibéria e depois retornou, lembrava que os prisioneiros faziam pequenos fantoches com pão e pedaços de cobertor; e à noite eles tinham apresentações de fantoches no meio daquele espaço, no meio da prisão, no meio da Sibéria.
Há língua − talvez seja o próprio coração da língua − que continua a existir apesar de toda a ruína. E nos dá esperança, nos faz humanos. Não neguemos isto.
[nota1] A Transnístria reivindicou independência da Moldova com apoio russo. Entretanto, sua autonomia é reconhecida por poucas nações.