Assim como Sebastián, protagonista de Procura do romance, o escritor paulistano Julián Fuks vive às voltas com um excesso de consciência narrativa. Assim como seu personagem, Fuks é jovem, brasileiro, filho de argentinos exilados no Brasil e, enquanto tenta escrever um romance — buscando, quem sabe, um pouco de inovação —, revisita a mesma Buenos Aires de sua infância.

 

Não se trata de tarefa simples, claro, pois não existe mais isso de contar uma história e ponto final. Hoje é preciso ir além. Ou não? Entre erros e acertos, após toda experimentação e renovação estéticas do século 20, alguma novidade ainda seria possível, ou mesmo necessária? E as tramas, tornaram-se inviáveis? O que dizer de realmente relevante num livro de ficção? E como dizê-lo? É para responder a essas questões que o novo livro de Fuks se atira num poço aparentemente sem fundo, apresenta-se como obra em construção que, desde a origem, já se confessa em crise.

 

E são esses assuntos que o escritor — também autor de Histórias de literatura e cegueira e Fragmentos de Alberto, Carolina, Ulisses e eu — revisita na entrevista abaixo. O grande vazio em que pode cair (ou já caiu?) a literatura atual. O vínculo entre memória e imaginação. A falsa relação que se cria entre obra de arte e mentira. O longo processo de escrita de Procura do romance. Temas que assombram tanto Julián quanto Sebastián.

 

Numa entrevista recente (para a Unesp), você disse que no Brasil, apesar de não haver um aprofundamento real do debate literário, alguns autores ainda seriam capazes de perceber o grande “vazio” em que caímos. Que vazio é esse a que você se refere — e que tanto assombra o protagonista de Procura do romance, Sebastián?
O vazio que me assombra e que emprestei ao meu protagonista é a impossibilidade de renovação estética a que está submetido qualquer escritor contemporâneo, como qualquer artista. O século 20 foi um século de muita experimentação e muita vertigem, e dele herdamos, além de belíssimas obras, uma derradeira agonia: depois de tanta inovação, a ambição do novo parece inatingível. O escritor que, hoje, pretenda inserir sua obra em algum contexto de desenvolvimento histórico ou artístico, vê-se de imediato sem saída, ou indeciso entre duas opções insatisfatórias. Pode desvencilhar-se da obrigação do novo e simplesmente contar histórias, ou vasculhar com obstinação as novidades do passado para ver se alguma delas foi negligenciada ou esquecida. Digo assim, mas poderia dizer de outro jeito: essa é apenas uma entre tantas formulações possíveis para esta onipresente sensação de crise.

 

Aliás, há muitas crises em Procura do romance: a crise argentina, a crise familiar e pessoal de Sebastián — como indivíduo e aspirante a escritor — e a crise da ficção literária em geral. Logo no início do livro, o narrador fala da “ninharia de ocorrências” que distinguem seu personagem, e sobre a “ausência de aventura que marca sua existência”. De forma geral, o escritor de hoje não tem mais nada a contar? O enredo se tornou inviável?
No que diz respeito à crise do romance, penso que não se trata tanto da falta de algo para contar, e sim de uma incapacidade de encontrar para esse algo a forma mais pertinente, mais adequada, a forma que não se mostre repetitiva ou arcaica. Mas de fato há outras crises entremeadas a essa, e creio que a inviabilidade de enredo que você menciona tem relação com uma questão mais abrangente, uma questão política. Muito se falou em fim da história, em fim das utopias, em uma concepção de que o capitalismo que vivemos seria o único modelo possível, e é evidente que em grande medida essa concepção falaciosa atingiu uma geração inteira. A ausência de aventura que nos marca é também uma desistência, um conformismo generalizado, a ausência de militância em um mundo que esconde a todo custo suas alternativas.

 

Na escola, Sebastián se orgulha do elogio de uma professora a uma de suas redações: para ela, seu aluno possuía uma “imaginação de escrevedor de livros”. No entanto, o orgulho do menino dura pouco: ele logo percebe a “fragilidade” daquele elogio. A imaginação não é (ou deixou de ser) um atributo essencial aos escritores?
É frágil o elogio porque é falso: aquilo que a professora compreendera como fruto da imaginação do menino era uma narrativa calcada em ocorrências de sua vida. Mas talvez haja nessa incompreensão entre os dois uma confusão bastante comum e significativa: a ideia de que a imaginação possa estar desvinculada da memória, que surja do nada sem qualquer origem, que seja uma construção sem base, sem alicerce, pairando sobre o vácuo como uma fantasmagoria. Se há algo que nosso tempo explicita com grande eloquência é a relação tão íntima entre imaginação e memória. Nessa imensa quantidade de personagens semelhantes aos seus autores que hoje vemos, no romance que tantas vezes mostra sua face de autobiografia fictícia, revela-se com clareza que esses dois atributos são indistinguíveis.

 

Você tem muito em comum com seu protagonista. Ambos dividem sua identidade nacional entre dois países vizinhos e, sob alguns aspectos, antagônicos. Brasileiro, filho de argentinos, criado tanto no Brasil quanto na Argentina, a qual tradição literária você mais se sente ligado ou, em outras palavras, de qual você mais gostaria de se libertar?
É uma pergunta difícil. Nasci em São Paulo, vivi a maior parte da minha vida aqui, escrevo em português; tudo isso faz de mim, sem empecilhos, um escritor brasileiro. No entanto, talvez não seja fácil detectar alguma brasilidade no que escrevo, se é que se pode dizer algo assim. Talvez a origem dúbia me distancie um pouco da tradição que aqui temos, por mais múltipla que ela seja. E é possível que minha escrita — um tanto cerebral, como alguém já disse — seja realmente de um tipo mais frequente na Argentina, cuja literatura eu acompanho com tanto interesse e tanta devoção quanto a brasileira. Acho que de nenhuma delas quero me ver livre.

 

Seu narrador deixa claro que Sebastián é branco, heterossexual, abastado, aspirante a escritor, supostamente privilegiado. O que você acha do atual debate em torno da identidade dos narradores e protagonistas brasileiros contemporâneos, na sua maioria homens, brancos, heterossexuais e de classe média? Você vê problema nessa hegemonia?
Vejo problema em que essa hegemonia se perpetue em diversos campos da cultura e da sociedade, não apenas na literatura brasileira. Vejo problema em que se considere que já atingimos alguma igualdade, seja racial ou de gênero, quando é tão evidente que um perfil específico continua sendo privilegiado, protegido, ouvido com mais atenção, sobrevalorizado. Procurei abordar a questão pela perspectiva desse homem porque era a que me resultava mais acessível. No caso do meu personagem, em se tratando de um sujeito cujo traço principal talvez seja o rigor excessivo e a autocrítica, essa percepção de privilégio não poderia deixar de constituir um de seus fantasmas, uma de suas crises.

 

Os autores que mais lhe interessam são os que equilibram ficção, ensaio e crítica literária? Entre brasileiros e estrangeiros, quem dorme na sua cabeceira?
Acho que sim, essa é uma formulação possível, mas eu diria que os autores que me interessam são os que produzem uma ficção mais analítica, uma ficção que rejeita qualquer soberania e em vez disso se disseca, se problematiza. No atual estado das coisas, penso que é aí que se verifica a postura mais crítica, a que rejeita os modelos prontos, as soluções já sabidas, tudo aquilo que o mercado tenta impor à massiva produção de livros. Vejo no argentino Juan José Saer um dos grandes expoentes dessa tentativa, mas há outros ainda vivos, como Ricardo Piglia ou a chilena Diamela Eltit. No Brasil, Nuno Ramos e Alberto Mussa fazem trabalhos interessantíssimos que se aproximam dessa linha, mas poderia citar outros autores e outras tantas virtudes cabíveis.

 

Já ouvi você dizer que, à medida que escrevia Procura do romance, ia lendo trechos do livro para um grupo de quatro amigos escritores com os quais costuma se reunir. Quem são esses eles? Você também relatou que o intercâmbio de opiniões e experiências promovido por esses encontros o fazia ponderar sobre a seguinte questão: “Para onde estou levando minha literatura?”. Você já tem uma resposta?
Demorei quatro anos para escrever o livro e nesse tempo o plantel do grupo variou um pouco, mas por ele passaram Tony Monti, Abilio Godoy, Leandro Rodrigues, Tiago Novaes Lima, todos jovens escritores paulistas. Há entre nós mais diferenças que semelhanças, não compartilhamos nenhum projeto estético específico, mas foi pela divergência que pudemos pôr à prova nossas ideias, nossas pretensões, nossas propostas narrativas. Foi importante submeter o livro, enquanto ainda o elaborava, a esse crivo impiedoso; fui ganhando mais consciência do que fazia. Sei, portanto, para onde acabei levando a minha literatura, mas tudo se turvou um pouco quando dei o romance por findo, e ainda não sei bem para onde a levarei nos livros por vir.

 

Num ótimo trecho de seu livro, uma mulher, diante do Guernica, de Picasso, tranquiliza o filho pequeno: “Es sólo arte, es de mentira”. Para você, há alguma verdade nessa afirmação?
Não, não há verdade alguma nisso, é uma mentira conveniente que o mundo insiste em alardear por aí. É nesse princípio que reside a ideia de arte como diversão, de literatura como entretenimento, concepções tão difundidas e que acabam por desconciliar o que é vida e o que é cultura. É assim que hoje se quer a literatura: um passatempo anódino que nos indigne ou nos comova por um instante ínfimo, sem que se produza uma assimilação profunda, um aguçamento crítico, para que fechemos o livro e sigamos tranquilamente com a nossa rotina. Ao escritor, creio eu, cabe fazer uso de todos os recursos de que disponha para resistir a tudo isso.

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