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Ensaísta e crítico literário, Rodrigo Gurgel chamou a atenção do mercado editorial na última edição do prêmio Jabuti. O “jurado C”, cuja atribuição de notas entre 0 e 1,5 a autores tidos como favoritos em oposição à sequência de notas 10 conferidas ao estreante Oscar Nakasato garantiu o prêmio de melhor romance ao até então pouco conhecido Nihonjin.

 

Passado o primeiro momento em que a atenção se voltou aos problemas na configuração dos prêmios e à identidade e intenções do “jurado C”, suas escolhas levam a refletir sobre os mecanismos do sistema literário e o papel dos prêmios, bem como o da própria crítica e o do escritor. Autor do recém-lançado Muita retórica, pouca literatura (Vide Editorial), reunião de ensaios em que analisa prosadores brasileiros do século 19, Rodrigo Gurgel trata, nesta entrevista, concedida por e-mail, da relação entre nossa tradição e a produção contemporânea, revê a importância dos prêmios literários a partir das especificidades culturais do Brasil e analisa a relevância da crítica a partir da necessidade dos leitores, abordando com equilíbrio e rigor sua própria atividade e propondo a liberdade como lugar da produção crítica e artística.

 

Quais as circunstâncias que o levaram a realizar não apenas um estudo, mas uma releitura de clássicos da literatura brasileira? De que modo isto se relaciona e contribui para a análise da produção contemporânea?

Há dois motivos básicos. O primeiro, de ordem filosófica, é uma tentativa de responder, na prática, à ideia de Ortega y Gasset: “Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo”. Enquanto crítico literário, se não estabeleço um diálogo com minha própria circunstância, com minha própria realidade, é como se carregasse uma fratura, como se houvesse um rompimento intelectual e existencial. O segundo é uma constatação simples: ninguém tem sua significação completa sozinho. É uma ideia cara a T. S. Eliot, para quem escrevemos não apenas com nossa própria geração, mas com todos os que nos antecederam. Eliot estava certo quando disse que os escritores têm uma existência simultânea, constituem uma ordem simultânea. Querendo ou não, os escritores mortos escrevem conosco. E ainda que muitos desejem extirpar isso de si próprios, nunca o conseguem completamente. De Homero a Guimarães Rosa, eles estão de alguma forma presentes, influenciando a todos nós. Então, por que não conhecê-los e descobrir, neles, muito do que fazemos hoje? Erros ou acertos do passado se repetem; erros se transformam em acertos — e estes podem se tornar equívocos. Assim, dialogar com nossa tradição nos ajuda a entender as inúmeras faces da literatura atual.

 

Partindo da ideia de T. S. Eliot, acredita que ainda seja possível inovar na literatura?

Mas o que é inovar? É preciso cuidado com esse verbo, pois, para muitos, ele significa apenas fazer malabarismos linguísticos, camuflar narradores, abusar da metalinguagem, criar neologismos, repetir, com uma nova camadinha de verniz, o que Cortázar fez em O jogo da amarelinha e outros procedimentos que parecem Literatura mas, copiados e repetidos, não passam de artificialidade. Se um escritor, antes de começar a escrever, pensa primeiro em como poderá inovar, bem, sinto muito, mas começou mal. Por que não se preocupar, antes de tudo, em ser sincero consigo mesmo? Quando, depois de muito trabalho, de muito esforço, ele encontrar sua própria voz, então já estará inovando.

 

No prefácio a Muita retórica, pouca literatura, José Carlos Zamboni o descreve como um crítico que “não salva nem condena em bloco, preferindo exercitar a difícil arte de fazer justiça”. Qual a justiça que você busca?

Busco a justiça que está inscrita na própria obra literária. Minha predisposição, sempre, é deixar que a obra fale. Como em qualquer diálogo, é preciso ser paciente, ouvir o interlocutor, deixar a conversa fluir sem a prévia preocupação de provar este ou aquele ponto de vista. Às vezes, contudo, o discurso do outro é titubeante, ele gagueja de forma incontrolável, seus raciocínios são repletos de lacunas, acredita estar dizendo algo novo, mas, na verdade, apenas repete o que muitos já disseram. Então, eu escuto até o fim seus argumentos, mas apenas por polidez. E ele, ainda que tenha a melhor avaliação a respeito de suas ideias e da forma como as expôs, já julgou a si próprio.

 

Você aponta a grandiloquência, a retórica e o sentimentalismo como males da Literatura brasileira do século 19. Passando à prosa contemporânea, quais os “pecados” que destacaria?

Salvo exceções, destaco a sintaxe lacônica, às vezes obscura; a insistência na linguagem obscena; o descaso e a insegurança em relação à gramática (muitos escritores, inclusive, justificam seu desconhecimento e sua negligência em relação à língua citando ambíguas opções estéticas); o narcisismo, que produz tediosas narrativas em primeira pessoa; e o niilismo, com sua inevitável visão facciosa da realidade. Algumas dessas características ajudam a criar uma patologia comum nos dias atuais, à qual dei o nome de narratofobia.

 

Levando em consideração que não é de hoje que a crítica literária sofre com a falta de espaço na imprensa e com certo isolamento no âmbito acadêmico, quais são seus desafios atuais?

A crítica tem, na imprensa, o espaço que merece. Se o espaço diminuiu, isso se deve não só às políticas editoriais ou a questões de ordem sociológica, mas também aos próprios críticos, pois muitos afastam os leitores ao incorporar a linguagem hermética da academia e evitar fazer julgamentos claros. Ora, o leitor dos cadernos culturais não quer receber, a cada semana, pílulas estruturalistas ou conceitos derridianos. E não quer chegar ao ponto final do texto sem saber o que, exatamente, o articulista pensa. Ele quer e precisa de uma crítica que se disponha à tarefa de intermediar o diálogo entre a obra e ele, o leitor. Se há, portanto, um desafio, é o de respeitar o leitor.

 

O que é um bom leitor? No que um bom leitor “comum” difere de um leitor profissional?

O bom leitor é o que lê com astúcia, com sagacidade. Ele sabe, no caso da ficção, que está sendo enganado, mas quer ser enganado. Exige, no entanto, ser bem enganado. O leitor profissional parte dessa astúcia, digamos, intuitiva e consegue detectar a trama e a urdidura que compõem o tecido ficcional. E tem meios para explicar por qual motivo o livro convence ou não.

 

Pensando nesses dois leitores, qual você é enquanto jurado de prêmios literários? Que critérios o guiam nesta atividade?

Sempre que faço uma leitura crítica — para ser publicada ou para orientar um escritor, uma editora, um agente —, e não só quando sou jurado de um prêmio, tenho de agir como leitor profissional. Preciso ir além do mero sentimento de prazer ou desprazer. Devo penetrar no modus faciendi do escritor, apesar dos inevitáveis limites. E devo responder a duas questões básicas: 1. Como esta obra representa o possível? 2. O resultado está à altura do que essa representação exige? Ou, dito de outro modo: a obra consegue ser uma estrutura coerente?

 

Cabe aos prêmios literários tentar “corrigir” os vícios do mercado editorial e dar espaço a autores menos conhecidos e a vozes dissonantes, ainda que isso ocorra em detrimento a outras obras de qualidade?

Jamais. O papel de um prêmio literário é, apenas, dentre as obras participantes, premiar a melhor.

 

Considerando que dificilmente há surpresas nos resultados dos prêmios, que muitos não possuem um valor de premiação relevante e que eles talvez não consigam colocar o autor vencedor em destaque ou ainda conferir-lhe tanto prestígio quanto um bom marketing de editora, os prêmios estão perdendo sua relevância? Eles contribuem de alguma forma para a criação literária ou esta não é sua função?

Há certa esquizofrenia num país que oferece importantes prêmios literários mas não tem leitores. Não sou contra os prêmios, ao contrário. Eles representam um tipo de estímulo, ainda que não essencial para a criação literária. São as cerejas no bolo do sistema literário. Mas é preciso ver com clareza os seus limites. No Brasil, alguns prêmios oferecem significativa quantia em dinheiro, mas nenhum tem o poder do Goncourt (principal prêmio literário francês), por exemplo, que eleva as vendas do ganhador, em poucas semanas, de 50 ou 90 mil exemplares para quase um milhão. Não se trata de marketing, mas de haver leitores. É preciso, portanto, perceber os limites dos prêmios numa sociedade como a nossa, que sequer é alfabetizada.

 

A própria crítica, ao se guiar por critérios estabelecidos e não ler a obra dentro daquilo a que ela se propõe não estaria dificultando a renovação e a inovação na literatura?

Tornou-se comum uma visão estereotipada da crítica, de que ela trabalha apenas segundo “critérios estabelecidos”. A expressão me parece um subterfúgio verbal, pois, na verdade, não explica nada. Poderíamos dizer que as estantes das livrarias estão repletas de prosa e poesia feitas segundo “critérios estabelecidos” — e que quando o crítico se levanta contra elas, bem, costumam acusá-lo de obedecer a “critérios estabelecidos”. A questão, na verdade, é outra. Trata-se de entender os papéis que crítico e escritor desempenham dentro do sistema literário. O papel do escritor é escrever, criar. Se ele escreve para satisfazer sua roda de amigos, seu professor de Teoria Literária, seu partido político ou determinado crítico literário, então escreve mal, muito mal. Como em todos os setores da vida, a liberdade deve ser a grande diretiva. A regra serve, feitas as necessárias mudanças, para o crítico. Ambos devem exercer suas tarefas com maturidade, evitando adulações e ideias preconcebidas. E ambos devem agir, principalmente, com independência. Penso num exemplo: Sílvio Romero desancou Machado de Assis o quanto pôde. Acertou ou errou? Não importa. Importa que ambos agiram, cada um em seu campo, de maneira independente, autêntica, certos de estarem fazendo o melhor. Até este momento, Machado parece ter vencido a batalha. Mas isso não diminui o valor da ampla obra que Romero deixou, da mesma forma que não garante que a avaliação da obra machadiana permanecerá, no futuro, imutável. A verdade é uma só: a cultura sempre sairá ganhando se críticos e escritores cumprirem suas funções.

 

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