Mario Miranda Filho/Divulgação

O homem das narrativas curtas, breves, escritas para serem lidas em voz alta, gritadas, como se o leitor estivesse participando de um recital, está passando por um período de mudanças: o pernambucano Marcelino Freire vive o processo de escrever seu primeiro romance, após uma década de alguns dos livros de contos mais impactantes da literatura brasileira recente, como Angu de sanguee Contos negreiros(vencedor do Prêmio Jabuti). “Mas talvez eu não mostre a ninguém (o romance). É uma experiência”, nos contou o homem que sempre parecia se orgulhar do seu (afiado) fôlego curto.

 

Mas o que estaria acontecendo no mundo de Marcelino Freire, para que ele tenha decidido deixar de lado, ainda que temporariamente, o gênero que tanto o celebrou?

Talvez uma das pistas esteja na morte da sua mãe, em 2010, personagem central no documentárioSP — Solo Pernambucano, que faz um balanço da sua carreira e está em processo de pós-produção. “A minha mãe era o barulho da minha literatura; o meu pai, o silêncio”, revelou o escritor num encontro que tivemos em novembro, durante sua participação num evento literário promovido pelo Sesc de Garanhuns. A ideia de fazer essa entrevista com Marcelino surgiu justamente durante a mediação que fiz com ele para esse evento. Poucas vezes vi o autor se abrir de forma tão direta sobre o estofo que forra sua literatura. A impressão é que ele chegou à compreensão total da obra que realiza.

 

“A fala de meus personagens é munida dessa força — a mesma que me leva a escrever. Não está sendo diferente com o romance. Leio-o diversas vezes, ‘rezo’ cada palavra que escrevo, é preciso que o texto tenha ritmo, pulsação, verdade. Não escrevo um parágrafo sem parar para ouvir o que estou fazendo. Meu corpo tem de aprovar essa minha ‘música’ narrativa”, comentou o autor nessa entrevista na qual ele revela ainda o quanto sua obra antecipou algumas das discussões sociais em pauta e comenta qual é o seu grande “vexame”.

 

Uma das particularidades do seu trabalho sempre foram os textos curtos, a prosa rápida, os contos que dependem da imagem, do jogo de palavras. Uma particularidade curiosa num contexto literário em que o gênero romance parece ter o mais alto grau na escala de valor. Mas agora você está testando escrever o seu primeiro romance. Por que essa mudança? As narrativas curtas não estão mais dando conta para o que você quer falar?

Nesse tempo todo, abandonei três projetos de romance. Tenho três arquivos até hoje, jogados lá no buraco negro de meu computador. Toda hora eles ficam me lembrando da minha incompetência, dificuldade, falta de fôlego... Agora sinto que está diferente. Acho que amadureci para enfrentar a batalha. O romance, na verdade, já está escrito. Agora, em férias (isolado em Buenos Aires durante um mês), vou reler, reescrever, testar os parágrafos. É um romance curto, de frases curtas, tem lá o meu estilo. Foquei meus recursos em um único personagem, um poeta velho (tem muito velho no livro) que vive às voltas com travestis, ácidos e garotos de programa. E tem algo de história policial, creia. Acontece uma morte misteriosa logo nos primeiros parágrafos... Aguarde.

 

Um dos clichês críticos sobre sua literatura é que ela é um texto para ser lido em voz alta, o que funciona bastante nos contos, que são mais rápidos e mais imediatos. Como você está levando isso para o romance?

Meus textos são mesmo para serem lidos em voz alta. Assim eu escrevo: para reverberar, comunicar. O que mais ouço é de gente que diz que vive espalhando meus contos por aí, lendo em saraus, em teatros, em ensaios. Os atores, por exemplo, adoram interpretar meus personagens. A fala de meus personagens é munida dessa força — a mesma que me leva a escrever. Não está sendo diferente com o romance. Leio-o diversas vezes, “rezo” cada palavra que escrevo, é preciso que o texto tenha ritmo, pulsação, verdade. Não escrevo um parágrafo sem parar para ouvir o que estou fazendo. Meu corpo tem de aprovar essa minha “música” narrativa. Ela me ajuda, inclusive, a resolver alguns impasses da história. Vou seguindo os ruídos...

 

Na última década, você se envolveu em inúmeras polêmicas. Uma delas, famosa, foi a da paródia com o Prêmio Jabuti, o Prêmio Jaburu, que lhe fez ser alvo de uma série de críticas negativas. Mas, nos últimos anos, você parece estar mais calmo, o que mudou?

Nossa! Inúmeras polêmicas??!! Estou me sentindo a Vera Fischer (risos). Na verdade, quem primeiro chamou o Jabuti de Jaburu foi o escritor e amigo Ronaldo Bressane. Eu só fiz pedir a reinstituição do Prêmio Jaburu. E aí virou o maior rebuliço. É porque, não sei, eu falo uma coisinha aqui e a coisinha vira um coisão. A exemplo de quando eu disse que não iria à FLIP (Festa Literária Internacional de Parati) porque a Festa havia “tucanado”, isto no ano em que o FHC foi convidado para abrir o evento. Enfim... Agora, olhe só: eu falo as coisas que meu coração pede. E as coisas que meu coração pede, digamos, acabam virando polêmica em um meio muito careta e cheio de dedos como é o da literatura. Mas veja, mesmo falando isto e aquilo, eu não sinto, como você disse, que eu tenha me envolvido em “inúmeras polêmicas”. Sempre fui calminho. Aproveitando o gancho, posso dizer algo polêmico? Esse meu romance é quase autobiográfico (risos).

 

Muitas das discussões de redes sociais hoje, como a questão do lixão, de gays, das cotas raciais, do preconceito contra nordestinos, entre outras, já estavam antes na sua literatura, desde a estreia com Angu de sangue. Por que a escolha desses personagens na sua literatura?

Você sabia que a queda das Torres Gêmeas, a morte de Michael Jackson e até o Mensalão foram lá, previstos nos meus livros? Eu sou meio Mãe Celina. Creio que a gente escreve “sintonizando” alguma dor, alguma coisa que está girando por aí, o tempo todo. Já me disseram que essa ascensão da classe C também já estava no que eu escrevo. Dizem que eu sempre dei voz à classe C. Não gosto disto: desta coisa de dar voz. Quem sou eu para dar voz a ninguém? Longe disto. A classe C, D, E, Y, Z não precisa de mim. Eu não sou santo. Cara, sabe, eu escrevo porque dói — como já disse o genial Cláudio Assis (cineasta) em relação aos seus filmes. Eu não inventei dor nenhuma. As dores estão aí faz tempo. O problema é que ninguém está aí para elas, entende?

 

No documentário sobre sua vida, SP - Solo Pernambucano, você diz que sua literatura é sobre o vexame. Qual é o seu vexame hoje?

Meu primeiro romance será um vexame — espero que não seja um vexame de ruim. O livro é dedicado a um recente jovem namoradinho meu. Na verdade, escrevi essa “porra” para ele. Espero que eu conquiste outros leitores além dele. Ah! Posso fazer propaganda do documentário? O SP é lindo. Dirigido por Wilson Freire e Leandro Goddinho, é a história, menos minha, e muito mais de uma guerreira chamada Maria do Carmo Freire, a minha mãe, morta em 2010. A morte dela quase me matou, você bem sabe...

 

Sua literatura sempre foi muito peculiar, sui generis, é fácil reconhecermos sua voz narrativa. Quem seriam seus pares literários ou você se sente isolado?

Sou filho do Dalton Trevisan. Aliás, recebi um livro autografado do Dalton, com quem mantenho um certo contato. Ele escreveu lá na dedicatória que é meu “admirador e leitor fiel”. Depois dessa, posso morrer. Sou também filho de Jean Genet, de Manuel Bandeira, de Luiz Gonzaga — algo pulsa lá do Gonzagão no que eu faço. Sou coirmão do André Sant’Anna, do saudoso Wilson Bueno, adoro a soltura da poesia de Angélica Freitas... O poeta Miró me emociona. Cláudio Assis é foda, o mestre Raimundo Carrero, Xico Sá. Atualmente estou de olho no João Gomes, um moleque aí do Recife de 17 anos que já tem personalidade e putaria de sobra. Vai longe...

 

Você está escrevendo o roteiro para uma história em quadrinhos. Como é esse projeto? A impressão é que agora você quer se arriscar mais como autor, estou certo?

Eu vivo me arriscando, sempre. Não gosto de me sentir pronto. Observe o tanto que vivo aprontando: selo Edith, antologia de microcontos (em 2004), Balada Literária... Fazer um evento como a Balada há sete anos, sem um puto, é uma aventura. Ter levado ao evento Antonio Candido, Augusto de Campos, Caetano Veloso, José Luandino Vieira, Mário Bellatin, Raduan Nassar, e muitos outros heróis meus, foi um feito e tanto. Sabe o orgulho que eu mais tenho? O de não ser um escritor bundão. Definitivamente, eu não sou um escritor bundão. Sobre a HQ, ela se chama Mulungu e faz parte daquele projeto da Companhia das Letras. Ela já está com a primeira versão pronta. Quem a desenhou porretamente foi o Eloar Guazzelli. Fiquei feliz demais com a experiência. E estou escrevendo de novo para teatro, texto inédito para o Coletivo Angu de Teatro que faz 10 anos agora em 2013. Eu quero é mais, sempiternamente, me “inventurar” — essa mistura eterna de invenção e aventura, entende?

 

Você perdeu sua mãe há dois anos e essa perda teve uma força radical na sua vida pessoal. Como essa perda se reverteu em sua literatura?

Eta danado! Sempre que eu sonho com a minha mãe, ela está feliz, plena, descansada. Sua missão foi bem cumprida. Isso eu quero fazer da minha vida: essa coisa viva, bem vivida, na raça, na força, essa comunhão, sei lá. Minha mãe era essa transparência, autenticidade constante. Isso está no que eu faço, procuro reconhecer essa pegada no que eu escrevo, nos personagens que eu crio. Tudo pulsa. Nada de nhenhenhém. A literatura na lata, sem papas nem pompas na língua. Vixe! E a entrevista está terminando e eu não falei do título do meu primeiro romance... Chama-se Só o pó. Vai sair pela Editora Record. Minha mãe está lá nesse meu romance. Ressuscitada na figura de um velho travesti. É ela, eu sei, pode apostar, neste meu novo livro, a mãe de todos os travestis.

 

 

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