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Repostamos esta entrevista, de abril de 2013, por ocasião dos 28 anos de morte de Paulo Leminski (1944-1989). Ela lança luzes sobre questões ainda atuais a respeito da obra do poeta: sua relação com a geração mimeógrafo e com as vanguardas, as críticas feitas à produção, além de aspectos a serem estudados de seus livros. 

 

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O lançamento recente de Toda poesia (Companhia das Letras), reunião da produção poética de Paulo Leminski (1944-1989), vem acompanhado — como parece ter sido sempre o caso ao se tratar da obra do curitibano — de comentários enaltecedores em oposição a críticas quanto a uma superficialidade em seus poemas. Entre um e outro, predomina a “difícil classificação” da produção de Leminski, que além de autor de prosa, poesia e canções populares, foi professor, ensaísta e tradutor. Nesta nova edição, que leva ao público títulos como Distraídos venceremos, La vie en close e Quarenta clics em Curitiba — esta sem as fotografias de Jack Pires que acompanham a publicação original, de 1976 —, pode-se entrever todas essas facetas de Leminski incorporadas à sua poesia.

As características da obra de Paulo Leminski — entre a experimentação e o estudo da tradição literária —, situadas em relação a seu tempo, à produção contemporânea e ao mito em torno de sua figura são discutidas nesta entrevista pelo crítico João Cezar de Castro Rocha, autor de Crítica literária: em busca do tempo perdido? (Argos) e Exercícios críticos — Leituras do contemporâneo (Argos), entre outros. E Catatau, trabalho em prosa e aquele que foi o primeiro livro do “samurai malandro”, tendo sido publicado em 1975, também entra na análise do professor de literatura comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro: “É interessante como até nesse detalhe a produção de Leminski é perturbadora, pois geralmente é o contrário: a prosa é, por definição, mais prosaica do que a poesia, e por isso mesmo mais comunicável”.

 

“‘Incompreensível para as massas’ é toda literatura que se faz hoje, no Brasil. Massa analfabeta, massa ouvinte, massa telespectadora”, disse Leminski. De que forma o autor trouxe essa problemática a sua literatura? Isso implicou em “facilitar” e “adaptar” sua poesia?

Digamos que essa constatação implicou a valorização do potencial comunicativo de certas formas poéticas breves. Além disso, o recurso constante ao humor foi decisivo nesse projeto. Isso para não mencionar o caráter multifacetado da produção de Leminski: uma parte nada desprezível de sua obra é composta de canções, algumas compostas com parceiros como Caetano Veloso e Itamar Assunção. Por exemplo, os versos de Dor elegante, parceria com Itamar Assunção, são característicos de Leminski: “Ópios, edens, analgésicos/ Não me toquem nessa dor/ Ela é tudo o que me sobra/ Sofrer vai ser a minha última obra”. Encontra-se, aqui, a mesma dicção de seus poemas mais celebrados.

 

Várias influências podem ser identificadas na obra de Leminski — da contracultura ao erudito, do haicai ao concretismo. De que forma elas interagem entre si?

Essa questão complementa a anterior: Leminski talvez pertença à primeira geração de criadores brasileiros pós-tropicalistas — e o dado cronológico, aqui, importa. Explico-me: o tropicalismo problematizou a dicotomia entre “indústria cultural” e “cultura de massas”. Não se tratava mais de estigmatizar a cultura urbana de massas como necessariamente alienada e alienante, mas de transformá-la através de uma apropriação geralmente paródica. Desse modo, o princípio da comunicação se enriquece pelo olhar crítico. A possibilidade de mesclar fontes heteróclitas, aproximando extremos, talvez seja a contribuição mais significativa do movimento tropicalista. Paulo Leminski, nesse sentido, é o seu herdeiro mais destacado. Essa perspectiva ilumina versos como: “vão é tudo/ que não for prazer/ repartido prazer/ entre parceiros”.

 

Em Ensaios e anseios crípticos (Unicamp), Leminski afirma ser perseguido por duas obsessões: “a fixação doentia na ideia de inovação e a (não menos doentia) angústia quanto à comunicação, como se percebe logo, duas tendências irreconciliáveis”. O autor foi bem-sucedido na empreitada de se comunicar com as pessoas em geral através da poesia? Falta esse movimento à produção atual?

Essa questão leva longe. O escritor Flávio Carneiro propôs distinguir “transgressão ruidosa” de “transgressão silenciosa”. A diferença decisiva reside no trato com a tradição: enquanto aquela pretende descartá-la, esta a incorpora inventivamente. Assim, o gesto transgressor mais fecundo implica a apropriação do alheio na invenção do próprio. Ora, Leminski parece mover-se segundo uma prática artística anterior ao romantismo: o par imitatio/aemulatio. Nesse horizonte, somente se pode inventar a partir da tradição — daí, a “imitação” necessária de modelos prévios, logo, comunicáveis porque parte do repertório disponível. Porém, para inventar é preciso contribuir com um dado propriamente individual — daí, a “emulação”, isto é, o aparecimento de um elemento que ainda não se encontrava disponível. Leminski parece caminhar entre os dois polos e um bom exemplo disso são as suas traduções, que sempre se pautam pelo binômio reverência/transformação. Veja-se, por exemplo, esse extraordinário achado: “moinho de versos/ movido a vento/ em noites de boemia// vai vir o dia/ quando tudo que eu diga/ seja poesia”.

 

Enquanto Catatau é tido como inapreensível para o grande público, sua produção poética parece ter maior repercussão. Como localizar sua grande obra em prosa no todo de sua produção?

É interessante como até nesse detalhe a produção de Leminski é perturbadora, pois geralmente é o contrário: a prosa é, por definição, mais prosaica do que a poesia, e por isso mesmo mais comunicável. A densidade e concentração do poema tende a se diluir no texto em prosa. Ora, Leminski parece se divertir subvertendo essa lógica! Recorde-se, por exemplo, o romance Agora é que são elas. Nessa lúcida experiência lúdica, ele imaginou uma estrutura textual que desorienta as famosas teses de Vladimir Propp acerca dos contos populares. O pesquisador russo analisou mais de 400 narrativas, identificando 31 funções recorrentes. O romance de Leminski tem 31 capítulos, mas eles desordenam as conclusões do estudioso. Leia-se o trecho no qual se destaca o psicanalista homônimo: “Quando acordei, meu primeiro pensamento foi para o velho Propp, que eu tinha deixado dormindo no sofá do consultório, a noite anterior. Telefonei direto, 223-7866, uma, duas, três, trinta e uma vezes, e nada”. Já Catatau é um dos pontos poéticos sobranceiros de sua obra; prosa experimental em diálogo com James Joyce e Haroldo de Campos, entre muitos outros. Discurso do método de ponta-cabeça, Renatus Cartesius, vale dizer, René Descartes, é trazido para o Nordeste brasileiro pelo conde Mauricio de Nassau. Num solilóquio em que palavra puxa palavra, a alta voltagem da prosa poética expõe o curto-circuito das coordenadas cartesianas nos trópicos: “se fosse uma cobra já tinha te amordaçado! Vê se não era. Antes não eram. Vê se não erra. Agora é que são elas. Vê, senão erra!”.

 

Arte sobre foto de divulgaçãoO crítico João Cezar de Castro Rocha (arte sobre foto de divulgação)

 

Desde o início de sua produção até hoje, Leminski criou afetos e desafetos. Ainda hoje há quem classifique Leminski como “poeta-piada”, de “dicção rala e ideias curtas”, um “mero frasista polêmico”. Sua personalidade forte (ligada à figura de poeta maldito, às vanguardas literárias e à contracultura) se interpõe entre a obra e sua recepção? Por que, aparentemente, é impossível ficar indiferente a sua obra?

Em tese, não se fica indiferente à obra de criador algum! Mas no caso do Leminski, esse dado se agravou por um momento especial da cultura brasileira, marcada pelos primórdios do sistema de pós-graduação, o que produziu uma disputa aberta pela conquista de poder hermenêutico e de posições institucionais. Nesse ambiente, diferenças estéticas galvanizaram posições teóricas, cavando trincheiras que ainda hoje se mantêm vigentes — por pura inércia, ressalve-se. Sem dúvida, o mito em torno de Leminski se sobrepôs à leitura efetiva de sua obra. A esperança é que a publicação de Toda poesia e a republicação de sua prosa estimulem outro movimento, que parta da discussão da obra.

 

No âmbito da poesia marginal — ou alternativa ou da geração do mimeógrafo —, onde Leminski se localiza em relação a nomes como Chacal, Cacaso e Francisco Alvim? Eles também foram criticados pelo poema-piada, pela espontaneidade e pelo prosaico?

A obra de Leminski se destaca pelo compromisso com a experimentação e, ao mesmo tempo, com o estudo de diversas tradições literárias. De fato, Leminski buscou apropriar-se da tradição literária como um todo; Oriente e Ocidente, como Octavio Paz também o fez. Num comentário da tradução de Satyricon, o poeta parece ter esboçado seu epitáfio: “Entre trair Petrônio e trair os vivos, escolhi trair os dois, único modo de não trair ninguém”. Penso no surpreendente haicai “Mallarmé Bashô”, no qual o humor desponta como sinal de inteligência: “um salto de sapo/ jamais abolirá/ o velho poço”.

 

Entre suas várias facetas, Leminski foi associado às vanguardas poéticas. É possível falar em vanguarda hoje?

As vanguardas se definiram através da transgressão, expressa em incontáveis manifestos, o gênero literário típico dos modernistas. Porém, mais do que um conceito, a transgressão é uma prática estética, cujo eixo supõe o desejo de afirmar o próprio em detrimento da tradição. Nenhum homem é uma ilha, mas, para os transgressores de plantão, a história da arte seria um arquipélago com comunicação no mínimo precária. Hoje tal prática revela-se incomodamente anacrônica. Contudo, o impulso subjacente à transgressão — a descoberta da própria voz — constitui aspiração tão legítima quanto necessária. Isto é, se a vanguarda, como valor em si mesmo, se encontra esgotada, a busca da singularidade permanece atual.

 

Quais aspectos da obra de Leminski merecem ser estudados mais a fundo?

A obra em si mesma, com destaque para a capacidade de invenção a partir do prosaico e cotidiano. Em sentido mais amplo, como hoje em dia há uma preocupação, tola, em separar invenção e entretenimento, linguagem e público, o modelo Leminski é alentador e mostra como toda visão dicotômica é sempre empobrecedora.

 

 

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