Clóvis Ferreira/Divulgação

A poesia de MarianaIanelli se faz do fogo da vida. Dessa busca, que ultrapassa a técnica e a palavra para adentrar a realidade que nos cerca e nossos mundos interiores, resultaram os poemas de O amor e depois(Iluminuras) e uma nova etapa para sua poesia, marcada pelo respeito ao enigma do texto.

 

Nascida na cidade de São Paulo, em 1979, Mariana é mestre em Literatura e Crítica Literária. Aos 20 anos, publicou seu primeiro livro, Trajetória de antes, seguido por Duas passagens, Fazer silêncio e Treva alvorada, entre outros. Agora lançando seu sétimo livro, mais do que inovar, interessa à autora manter-se fiel a si mesma e trabalhar, com paciência, as exigências que vêm da própria escrita: “[O trabalho do poeta] não está pura e simplesmente na dimensão do texto. Envolve também os trabalhos da alma”. Assim é que paisagens de desertos e ruínas se convertem, em O amor e depois, em poemas carregados de esperança e delicadeza.

 

Na entrevista abaixo, concedida via e-mail, Mariana Ianelli fala sobre o atual momento de sua produção, a entrega que o poema exige tanto de seu autor quanto de seu leitor, a relação entre poesia e vida e a crítica literária atual.

 

O amor e depois é um tema que marca o poema “Herculano”, por exemplo, de Treva alvorada, seu livro anterior. Como ele passou de sentimento de um poema a tema do novo livro?

Falam do amor como tema do livro, mas o que vejo, no fundo, é algo mais próximo de um sentido de esperança. Muitas coisas me moveram, coisas que estão relacionadas umas às outras, como episódios bíblicos, os diários de Etty Hillesum, além do fato de ter visto de perto o fim de uma geração da minha família. Por isso, o amor tem aí um sentido amplo, é o que vem depois da ruína, depois da relutância em aceitar que a morte não está separada da vida, é um pacto de confiança, uma aliança — o que implica em aceitar que não só nós somos muito pequenos diante desse amor, como também já não é o nosso desejo que nos move no fim de tudo. É aceitar que somos movidos.

 

Nos versos do livro, o amor está sempre ligado à decepção, às ruínas, ao “depois”, como se fossem elementos complementares. Existe defesa possível frente ao “depois”? E depois do poema, o que há?

Acho que o poeta Contador Borges, no posfácio do livro, falou lindamente sobre esse “depois”, que é a própria poesia diante da morte, resgatando sua relação com a vida, “violentando com lirismo todas as coisas, todos os seres de linguagem”, como ele mesmo diz. A única defesa num sentido positivo é contra o niilismo. A ironia, hoje considerada uma das grandes virtudes literárias, embora funcione como uma defesa, só vai até certo ponto. Como diz Coetzee citando Zbigniew Herbert, “a ironia é simplesmente como o sal: você tritura entre os dentes e goza um sabor momentâneo; quando o sabor se vai, os fatos brutos ainda estão ali”. Levar a violência e a fragmentação do mundo para dentro da literatura não requer maior esforço contra o que já não esteja dado. Apostar na beleza, na sutileza, na esperança, ao contrário, requer uma transfiguração, uma leitura da realidade em vários planos. Depois do poema, o que há, mais uma vez, é o caos, onde recomeça o desafio da escrita.

 

Passado o momento de publicação de O amor e depois, no final de 2012, você realizou algum tipo de redescoberta do livro enquanto leitora?

Vejo que existe muito mais sendo dito nas entrelinhas. A perspectiva mudou, é a perspectiva de um consentimento, que significa para mim mais do que um assunto ou um tema. É uma nova maneira de ver, e o que sinto, com esta nova visão, é que existe agora maior concisão nos poemas. Associo isso também a uma mudança na maneira de escrever, porque hoje só busco o papel quando o poema já foi mentalmente escrito e reescrito.

 

Frente à perda e a um “combate imenso”, o amor necessita de entrega: “Numa cama de escombros/ Nosso abraço inevitável,/ Nossa nudez sem vexame/ No ermo das coisas desfeitas”. Qual a entrega que a poesia exige de seu autor e de seu leitor?

Poesia exige atenção e uma leitura interessada. Não é possível ler distraidamente um poema ou ler apenas o que está dito. Para o poeta, também, a leitura da realidade precisa ser em vários níveis. “Uma flor entre as páginas”, para dar um exemplo do livro, é um poema bastante curto, bastante simples à primeira vista, mas tudo o que é silêncio ali foi inspirado nos diários de Etty Hillesum. O jasmim de Etty, que ela viu nascer nos fundos da sua casa em Amsterdã, entre o muro e o telhado, e que depois foi soterrado pela lama das chuvas, é a flor dos campos do III Reich, um jasmim que está ao lado dos lírios, dos cravos e dos crisântemos do “Campo de Cassianas”, que é outro poema do livro. Os indícios estão todos lá, mas são bastante sutis, dependem de uma leitura interessada.

 

Fala-se sempre do trabalho que o poeta realiza com a linguagem. De que forma a poesia contribui para a linguagem?

A poesia é a sarça ardente da linguagem. Com tudo o que isso tem de extraordinário, desconcertante, fora do óbvio. Nas mãos do poeta, a palavra deixa de ser um instrumento. Agora é o poeta o instrumento da palavra. Seu trabalho não está pura e simplesmente na dimensão do texto, quero dizer, esse trabalho verbal envolve também os trabalhos da alma. Este me parece um dos grandes poderes da poesia: dotar de fogo a linguagem.

 

Poderia comentar o fato de a crítica ter chamado atenção para o uso de palavras como “bruma” e “coração fremente” em O amor e depois, um vocabulário que fugiria do panorama da poesia atual, e mais ainda da prosa contemporânea?

Considero uma abordagem irresponsável, que não lê a poesia. Irresponsável inclusive sob o ponto de vista da crítica atual, se pensarmos o contemporâneo como a dimensão em que todos os tempos coexistem e se interpenetram. Agamben já tratou disso longamente. Penso que alguns discursos pecam por atribuir à literatura classificações que muito mais falam sobre o grau de atenção da leitura do crítico do que do livro criticado, expedientes que se servem de recortes e esquematizações para validar uma visão da qual a literatura participa apenas como coadjuvante. A poesia, na verdade, acontece em outro lugar, no lugar da atenção, do envolvimento, da participação ativa da nossa história de vida e de leitura. Além do que, a literatura está aí, sempre esteve, para revivificar a nossa língua.

 

Em 2010, em entrevista ao jornal Rascunho, você disse que “há temas que sempre ressurgem, mas a cada livro o olhar é outro, um olhar novo, nascente, porque a vida é outra”. Que olhar guiou a escrita de O amor e depois?

Mais do que protagonizar uma busca, perseguir uma ideia, um assunto, ganhamos muito quando somos nós os perseguidos. Foi esse o olhar que me guiou. Já disseram que o poeta não escreve um poema, mas é escrito por ele, o que não exime ninguém do trabalho duro, só acrescenta a esse trabalho uma dose de humildade — saber que não estamos no controle, que às vezes não há mais o que fazer senão esperar, que o poema se elabora nessa espera aparentemente descompromissada. Aí é fundamental alimentar essa coextensão entre a realidade à nossa volta e os nossos mundos interiores, porque a “respiração do ser” é também uma realidade. Essa mescla de vida e ser, esse vínculo entre perseguir e ser perseguido, entre paisagens reais e imaginárias, tudo isso me guiou.

 

Na mesma entrevista, você afirmou, sobre a poesia brasileira contemporânea: “O que às vezes parece faltar (...) é um arrebatamento que não seja somente intelectual”. Essa continua sendo sua percepção? É um policiamento que faz em relação à sua produção?

A poesia, quero dizer, isso que é fazer poesia, na minha opinião, extrapola os domínios da teoria e da crítica. Hoje vejo uma poesia excessivamente literária, mesmo no seu coloquialismo, uma poesia excessivamente consciente de seus próprios métodos. Acho que o desafio, para o poeta, continua sendo um compromisso com a vida que anima a linguagem. Não que eu me policie em relação a isso, porque a poesia para mim nunca esteve dissociada do fervor.

 

E o que espera do poema? Quando sabe que ele está pronto, “resolvido”?

Escrever é trabalho de muita paciência, um trabalho difícil porque é preciso admitir que a poesia tem seus mistérios, que não obedece a planejamentos, por mais consciencioso que possa ser todo esse processo. Um poema está pronto quando aparece como um corpo de sentido, com ritmo próprio, até com seus erros magníficos, quando o enigmático no texto não se esgota numa única leitura, e, mais do que isso, quando o poema se descola a tal ponto de seu autor que ele mesmo se surpreende de tê-lo escrito.

 

Você publicou crônicas semanais no site Vida Breve, atua como crítica literária e prepara um livro infantil de poesia. Como é sua relação com outros gêneros literários?

A crônica foi uma das experiências mais prazerosas que tive recentemente. Minha relação com o ensaio, a resenha, a crônica, o conto, é sempre uma relação de descoberta. O que me interessa é ser guiada pela intuição, pelo caminho que me aponta o próprio texto. Quando comecei, em 1999, não havia toda essa avalanche de oficinas, eventos, concursos. Foi um começo bastante solitário, e talvez isso tenha fortalecido minha visão de que errar, na dupla acepção do termo, é algo fundamental para um escritor, que é nesse espaço de silêncio, de desabrigo, de caminho lento, que um escritor vai descobrindo sua voz

 

Com sete livros publicados, renovar-se e inovar são preocupações suas? O que é crescer enquanto poeta?

Minha única preocupação é trabalhar, ir seguindo o meu caminho. As exigências me vêm da própria escrita, dos desafios que me impõe o próprio texto. Acho que o crescimento vai se dando ao longo de todo esse processo, a síntese vai aparecendo com o tempo, a depuração, a concisão, o silêncio. Se com isso existe uma renovação ou uma inovação, é consequência do trabalho, não uma premissa. O melhor juízo que um poeta pode fazer em relação ao seu trabalho é cuidar de se manter fiel a si mesmo e não se submeter a demandas externas, sejam elas as da arte do seu tempo ou da crítica.

 

 

SFbBox by casino froutakia