Divulgação

“Era assim, a vida. O infinito, ao ser tocado, não passava de uma poça de água suja.” Esta é uma amostra da filosofia deJoão, o Vermelho, ou Yannick Nasyniack, protagonista do novo romance de Marcelo Backes. Da trajetória deste filho de russo e alemã, que se inicia no interior do Rio Grande do Sul para culminar no crime — revelado apenas nas últimas páginas do livro — que o leva à prisão, ficamos sabendo indiretamente através de um seminarista, narrador de O último minuto (Companhia das Letras). A ele, Yannick revela o choque entre seus valores e as transformações aceleradas do país, sua descrença na humanidade, sua carreira como técnico de futebol — sua tragédia. Mais do que uma confissão, é a tentativa de compreender como chegou à encruzilhada entre barbárie e civilização. O interessante — e talvez perturbador — é que os contornos de um e outro vão se dissolvendo, e não resolvendo, à medida que a narrativa avança.

 

Nascido em Campina das Missões (RS), em 1973, mas atualmente morando no Rio de Janeiro, Marcelo Backes escolhe o futebol como metáfora para compreender o Brasil e constrói uma trama instigante, repleta de frases inteligentes e provocativas. Autor, entre outros, dos romances maisquememória (2007) e Três traidores e uns outros (2010), doutor em germanística e romanística pela Universidade de Friburgo e tradutor de autores como Franz Kafka, Hermann Broch e Arthur Schnitzler, Backes fala nesta entrevista sobre fracasso, nosso lado sombrio, a escrita do romance e seu objetivo: “Quero entender o processo pelo qual passa o mundo em que vivo, em sentido amplo e em sentido estrito”.

 

O livro é narrado indiretamente pelo seminarista a quem João, o Vermelho, ou Yannick Nasyniack, conta sua história. Eles têm personalidades e são de universos muito distintos. Tal estranhamento, muito forte no início, vai se amenizando a ponto de o narrador incorporar a fala e as ideias de Yannick. A construção dessa voz foi seu maior desafio? Por que não o próprio Yannick narrar o romance?

A questão do narrador é sempre um dos maiores desafios e um dos pontos centrais da discussão artística contemporânea e da participação da literatura no contexto da arte. Em todos os meus livros sempre busquei um deslocamento narrativo, uma voz peculiar, muitas vezes bipartida, que contasse as coisas de um ponto de vista ou extremamente próximo ou então muito distante do narrado. Em O último minuto eu precisava de um narrador como meu seminarista carioca, até por uma questão de autenticidade. Quem conhece o mundo dos vestiários de perto a ponto de se atrever a contar sobre ele em primeira pessoa? Um narrador às voltas com um assunto que ele não entende e até com uma linguagem que mal compreende me pareceu ideal e bem interessante para identificar metaforicamente um dos maiores problemas da literatura e da arte, que é, sempre, construir o mundo de novo a partir de um ponto de vista relativamente precário.

 

A trajetória do personagem — infância no interior do Rio Grande do Sul, o primeiro contato com a capital gaúcha na juventude, a vida no exterior e o fixar as raízes no Rio de Janeiro — possui muitas semelhanças com o seu próprio percurso, algo que também ocorre em Três traidores e uns outros. A criação de Yannick partiu de recordar o passado, transformar suas lembranças em ficção?

Yannick tem 55 anos, se formou em Educação Física e depois limpou estábulos na Suíça. Eu ainda não tenho 40, estudei literatura e fiz doutorado na Alemanha. Mas um escritor obviamente precisa conhecer o mundo sobre o qual escreve, precisa sobretudo senti-lo doer fundo dentro de si, e é só por isso que, em alguns momentos, a trajetória de Yannick, esse russo que nem sequer é Ivan, esse russo que vira João, lembra a minha. Sempre se recorda o passado, se volta para aquilo que se viveu e não se compreendeu, tentando dar à vida um sentido que ela não teve enquanto foi vivida. O time do seminário São José de Cerro Largo, nos confins do Rio Grande do Sul, era bom, mas não porque eu era o treinador, e Yannick é um treinador de futebol, mas não porque eu fui treinador. Ele também não conversa com um seminarista porque eu fui seminarista, muito menos porque fui treinador, embora minha cidade natal seja colonizada por russos. Bentinho, o Bento Santiago, também estudou no Seminário São José, mas não porque queria ser padre. Eu também não queria ser padre, nem treinador, e Yannick, que é treinador, só conversa com um seminarista carioca porque eu nunca quis ser padre e sempre fui um tanto casmurro, além de conviver com os russos. Enfim, de onde nasce a literatura? É difícil dizer, mas é certo, pelo menos quando se pretende autêntica, que ela nasce de uma necessidade, de uma falta, de uma dor. Também acho que meu Yannick é diferente dos meus outros protagonistas, ele tem coragem para a faca e para a corda, até porque não pode deixar de agir diferente.

 

Os personagens de seus últimos livros parecem ter perdido a paixão pela vida, ou por si mesmos. Estão presos ao passado e às escolhas que fizeram, sem no entanto demonstrar insatisfação com seu presente ou preocupação com o futuro. Entre arrependimentos, reclusão e desistência, eles estão em busca de quê? Onde fica a encruzilhada a partir da qual não é mais possível voltar ou seguir adiante?

O passado marca, sobretudo a infância, o período de formação. Eu não acredito muito em escolhas, não acredito sobretudo na capacidade das escolhas no sentido de mudar a vida da gente. O presente é aquilo que é, um resultado de tantas variáveis que qualquer tentativa de controle me parece absurda. Conseguir vivê-lo da melhor maneira possível já é uma grande coisa e o mais alto desiderato que podemos alcançar, sobretudo se o aproveitarmos sem cogitar eternidades, o que meu João, meu Yannick aliás não consegue fazer, também por causa de seu passado e de seu vínculo estreito e duradouro demais com ele. Já o futuro, caramba, onde fica essa entidade? Se preocupar com o futuro me parece a maneira mais eficaz de torná-lo frustrado, de fracassar ainda mais pateticamente com um plano na mão. Todo o caminho é uma encruzilhada, o mundo fica na concruz dos caminhos, como diria Guimarães Rosa. Buscar com as armas da razão, da consciência e da vontade uma coisa não me parece decisivo no sentido de efetivamente alcançá-la.

 

Nesse sentido, estamos todos sujeitos a cometer um crime como o de Yannick? Parece-me, então, que a diferença entre uma pessoa que segue uma vida “correta” e o personagem, levado pelas circunstâncias a cometer um crime, é muito sutil.

Se não nascemos e aprendemos a cultivar também as armas para superar as afrontas do passado que Yannick foi obrigado a encarar, certamente sim. Acho que estamos no centro da velha e cada vez mais importante questão do livre arbítrio, que ainda esperneia tentando se manifestar, mas cujo terreno de ação lamentavelmente fica cada vez mais limitado. Tu sentes vontade de puxar o punhal, de empunhar a corda exatamente como Yannick, mas porque tens a sorte de não ser como Yannick e de ter processado as coisas de outro modo, porque nasceste diferente e tiveste por exemplo uma educação que por algum motivo foi mais eficaz, deixas a corda na carroça, o punhal na bainha, que é onde ambos, pelo menos civilizatoriamente, deveriam ficar.

 

O mundo parecia querer pílulas, de preferência virtuais, inodoras, insípidas e incolores, consolos de três linhas que não desmatavam as derradeiras florestas, justificando a falta de vontade, o hiperativismo desconcentrado e estulto, com argumentos ecológicos.” Sobre o leitor atual, concorda com a observação do narrador? A pergunta “quem há de se interessar pela minha literatura” também lhe preocupa?

Não concordo com o meu narrador na apreciação dura acerca do leitor atual, mas também não acho que o papel da literatura seja afagar, é antes provocar. Não é aquietar, e sim inquietar. Quando eu escrevo, nunca cogito um leitor do outro lado, não considero sua existência. Meu narrador o faz porque não é escritor, porque pensa em dizer alguma coisa sobre alguém a alguém com o objetivo de ser ouvido e de explicar essa coisa ao mundo. Eu estou longe disso, embora tenha consciência do anacronismo romântico que isso representa. Mas também não acho que, no âmbito de uma literatura que se preze, cogitar um leitor do outro lado contribua sequer no sentido de alcançá-lo. Eu nunca facilitei as coisas, eu escrevo aquilo que acho que preciso escrever para dizer aquilo que sinto que me é necessário dizer, e isso do melhor jeito para me entender comigo mesmo e com o mundo.

 

O futebol é descrito no livro como o “esperanto popular, a linguagem universal em que as pessoas podiam aplaudir o preço do bilhete de entrada, e ainda por cima de um concerto do qual inusitadamente compreendiam todas as notas”.Há quem diga que basta encontrar o livro certo, “escrito para você”, para gostar de literatura. Com futebol é a mesma coisa? O que lhe apaixona nele?

É também o parentesco entre a literatura e o futebol que me fez trabalhar com o tema, mas é certamente muito mais o fato de eu ter sofrido quase a vida inteira com o futebol que me fez especular nele uma metáfora para compreender o mundo lá fora e a alma aqui dentro, a vida de um modo geral e o Brasil de modo específico. O futebol me apaixona porque não o entendo, porque tenho milhares de razões objetivas pra não gostar dele e acabo sempre de novo vendo o jogo do meu time, torcendo como um doido nefelibático, um especulador místico, e no fim sempre sofrendo como o mais sarnento dos cães.

 

Se eu fosse, humanamente, como meus narradores foram até agora, eu cometeria suicídio prendendo a respiração”, você afirmou sobre o personagem de seu romance anterior. Consegue explicar por que se interessa por esses tipos (acho que podemos incluir João nessa leva) desiludidos?

Meu João, meu Yannick, é diferente dos meus outros personagens, pelo menos humanamente. Eu não diria que se fosse como ele me suicidaria prendendo a respiração. Apesar de grosso, de machista, ele tem uma humanidade que acho que meus personagens anteriores não têm. Não é simplesmente um cínico, tenta compreender a estrutura violenta de seu passado que o obriga a interagir com o mundo usando as armas da violência. E ele, talvez isso não seja mera coincidência, também não é o narrador da minha história. Não há nada mais ridículo, artisticamente falando, do que um personagem triunfante. Só o fracasso merece ser contado, até porque nós só paramos para contar quando fracassamos, quando tropeçamos, quando sofremos. Enquanto triunfamos, enquanto somos felizes, nós simplesmente vivemos, nos esbaldamos nas melancias roubadas.

 

O romance é repleto de fatos recentes da nossa história e críticas às transformações do país nas últimas décadas. Para além do crescimento econômico dos centros urbanos e de um interior que continua basicamente o mesmo, o narrador observa, na virada do último milênio, “o mundo começar a virar do avesso de vez”. Era seu objetivo discutir ou chamar atenção a questões socioeconômicas?

Eu quero entender o processo pelo qual passa o mundo em que vivo, em sentido amplo e em sentido estrito. Se o Brasil passou por várias transformações nos últimos tempos, me choca o fato de talvez em nenhum momento da história nem da geografia universal mais recentes ter havido um desequilíbrio tão grande entre as célebres categorias da infraestrutura e da superestrutura. Quer dizer, nós evoluímos economicamente, mas educacionalmente, culturalmente talvez tenhamos definhado. Obviamente estão excluídas desse definhamento as manifestações subjetivas e pessoais, esporádicas, que aliás só tendem a alcançar mais estofo em processos de transformação caracterizados pela complexidade. Talvez não tenhamos definhado, aliás, mas nossas precariedades apenas tenham se tornado mais manifestas, porque agora têm meios, inclusive econômicos, para aparecer, o que também não deixa de ser importante, por outro lado.

 

Como lida com as limitações da tradução? Hoje, mais experiente, fica mais à vontade para fazer as “traições” necessárias?

Talvez sim. Mas também traduzo cada vez menos e escrevo cada vez mais. A tradução, as doze ou quinze mil páginas que traduzi foram a oficina literária que nunca fiz, os estágios que galguei pra chegar melhor não ao pódio, mas ao fundo do poço em que sempre esteve o escritor. Eu sou escritor desde criança e é mais fácil ser matador de aluguel e escritor do que tradutor e escritor, por isso eu sou cada vez mais escritor e alguma outra coisa, no caso, professor, mas não tradutor. Durante o dia converso com meus fantasmas na solidão que opera o lado mais sombrio da minha alma e à noite saio para minhas aulas em que abro como um guarda-chuva um viés mais solar, que sabe fugir à solitude pra conviver humanamente com os outros nos meus grupos de estudo, em dois ou três encontros por ano com amigos, alguma festinha aqui em casa ou fora.

 

O brasileiro como Vermelho, “verdadeiro gaúcho”, que guarda os costumes de sua terra e tradições de seus ancestrais está desaparecendo e dando lugar a um cidadão cosmopolita?

Está, certamente está, mas lamentavelmente somos obrigados a perceber que a barbárie não é tão bárbara nem a civilização tão civilizada quanto parecia. Yannick, o Vermelho, é uma vítima dessa transformação em seus aspectos menos auspiciosos. Ele é, ele era um homem aberto, bem mais transparente, alguém que ainda tentava usar a linguagem – em todas as suas manifestações – para revelar, e não para esconder a verdade. E também por isso acaba fracassando do jeito que fracassa.

 

Yannick confessa na cadeia, narrando toda a sua existência na tentativa de compreendê-la. A literatura é sua confissão?

É, mas no meu confessionário não há padre, nem seminarista, assim como no meu divã não há analista.

 

 

SFbBox by casino froutakia