A gaúcha Veronica Stigger tem uma das escritas mais particulares da literatura brasileira contemporânea: sua obra mistura frases colhidas em jornais, ouvidas na rua, interjeições de outros segmentos artísticos, tudo reunido num processo de condensação que deixa o leitor numa posição estranha, ainda que jamais estrangeira, diante do texto. Seu primeiro romance, Opisanie świata, que acaba de ser lançado pela Editora Cosac Naify, tem título em polonês e começa numa Polônia que a autora jamais visitou (ela até adiou a viagem para que a realidade não interferisse na ficção; preferiu montar a sua própria Polônia). Nessa entrevista para o Pernambuco, Veronica traça a rota que a levou a iniciar o projeto de um livro antigo, e por isso moderno, isto é, um livro que “embaralha as noções costumeiras de tempo e de história, tanto de história em geral quanto de história da literatura” e destaca o quanto sua obra é um quebra-cabeça artístico.
Muito se diz que romances são formas que podem abarcar um mundo inteiro. E o título do seu primeiro romance, em polonês, significa justamente “descrição do mundo”. O que lhe inspirou a desejar, dessa vez, descrever um mundo inteiro?
Opisanie świata é o título de uma série de gravuras de Roman Opalka, artista polonês que eu estudava à época em que comecei a escrever o romance. Fiquei obcecada com esse título e fui pesquisar de onde vinha. Descobri que se tratava do modo como se chama, em polonês, Il Milione, o livro de viagens de Marco Polo, aquele livro que, aqui no Brasil, recebe o título de As viagens ou O livro das maravilhas, dependendo da edição. Eu já vinha pensando em escrever um romance que fosse uma espécie de livro de viagens, e um dia decidi (ou descobri...) que meu personagem seria um polonês numa viagem de volta ao Brasil, mais especificamente à Amazônia. Na hora, ele já passou a se chamar Opalka, e o livro, Opisanie świata. Meu romance é uma descrição do mundo na medida em que toda viagem, em que todo deslocamento, ao tirar o sujeito de sua posição confortável e segura, proporciona um contato renovado com as coisas, com o mundo. Descrever é, nesse sentido, descobrir, transformar em palavras aquilo que se descobre, em suma, escrever (literatura).
De certa forma, escrever um romance não é um movimento “conservador”, se pensarmos na preocupação que a sua obra sempre manteve com rupturas, em sempre realizar algum tipo de “transgressão”, livro após livro?
Existe melhor forma de transgredir a tradição do romance do que escrever um romance? O movimento fundamental da minha escrita, de texto a texto, e não apenas de livro a livro, foi sempre o de experimentação com as mais variadas formas literárias — por que deixaria justamente esta forma de fora? Além disso, ao percorrer o Opisanie świata, o bom leitor perceberá que ele tem muito pouco a ver com os romances contemporâneos, sobretudo com os romances contemporâneos brasileiros. Se há nele algo de conservador, é algo de paradoxalmente conservador, na medida em que, deixando entre parênteses o vínculo imediato com a nossa época, preferi voltar, através das mais variadas modalidades de apropriação (da citação literal ao pastiche etc.), à tradição brevíssima, interrompida, do romance modernista. Quis escrever um livro antigo, isto é, um livro moderno, isto é, um livro que embaralha as noções costumeiras de tempo e de história, tanto de história em geral quanto de história da literatura.
Por que escrever um livro com título justamente em polonês? Você já havia pensado na Polônia, de alguma forma, antes desse projeto?
Infelizmente, não conheço ainda a Polônia, embora morra de vontade de visitá-la, ainda mais depois desse livro (confesso que, depois que escolhi o título, evitei ir à Polônia antes de terminar de escrevê-lo, para que a Polônia “real” não interferisse na minha Polônia). O título em polonês tem, é claro, uma função na economia do livro: queria, com ele, produzir um certo estranhamento — um estranhamento que, nem que fosse por um breve instante, colocasse o leitor numa posição de estrangeiro, como é a do personagem principal. O polonês é a língua materna de Opalka, que, ao saber que tem um filho na Amazônia e que este filho está doente, empreende uma viagem de volta ao país em que estivera décadas atrás. Vale lembrar que não é a primeira vez que lanço mão de um título em outra língua para um livro. Gran Cabaret Demenzial está em italiano. E vários dos meus contos levam títulos em língua estrangeira, como “Argumentum chronologicum”, “L’après-midi de V. S.”, “Quand avez-vous le plus souffert?”, “Des cannibales” — sendo que cada um tem sua razão de ser.
A impressão que passa com esse romance é que você se colocou num desafio de se distanciar completamente de qualquer rastro seu e de desafiar seu próprio limite de ficção. É correto pensar assim?
Não me parece haver um distanciamento tão grande em relação ao que fiz anteriormente. Pelo contrário, vejo muito não só de continuação, como também de resgate. A dicção do personagem Hans ao narrar uma história para seus companheiros de viagem, no capítulo intitulado “Desesperadamente verde”, por exemplo, parece recuperar a voz narrativa da maioria dos contos do meu primeiro livro, O trágico e outras comédias: há um quê de jocoso e quase infantil no seu jeito de falar. A experimentação com as formas narrativas também está presente. O romance se constitui a partir de cartas, poemas, notícias, vinhetas, narrativas em terceira e em primeira pessoa, além de lançar mão de imagens, como postais e anúncios de jornal. Creio que também se acentua em Opisanie świata uma atenção aos gestos dos personagens, que vinha desenvolvendo em textos anteriores, como “Tristeza e Isidoro”, “Caverna”, “Pat e Morg”, “2035”, para citar só alguns. Segue também presente neste livro uma característica que vem se acentuando nos meus últimos trabalhos, Os anões, Massamorda e, principalmente, Delírio de Damasco, que é a inserção de citações, a construção do texto, em certa medida, a partir da apropriação de vozes alheias. Encontra-se portanto no Opisanie świata um pouquinho de cada um dos livros anteriores. Isso tem muito a ver, aliás, com a tradição do romance modernista que ele evoca e invoca. Imaginei o livro tomando a forma que ele tem enquanto eu o escrevia. Isto está no Ulysses de Joyce, no Macunaíma de Mário, no Serafim Ponte Grande de Oswald.
No lugar de capítulos, o livro é dividido a partir de vinhetas?
O livro não é propriamente dividido a partir de vinhetas, mas de capítulos, cada um com seu título (“How to be happy in Warsaw”, “Ano novo”, “Vai, Priscila, dança a tarantela”, “Rema, rema, rema”, “Meus amigos no navio”, “Talvez possamos ouvi-la”, “Não se vá, Margarida!”, “Como soubemos? Fomos até a cozinha”, “Imponente e frágil”, “Netuno é um bom camarada”, “Nossa Senhora do Desejo”, “Desesperadamente verde”, “Tudo acabou”, “O que você vê quando me vê”, “O caderno de Natanael”, “Para não esquecer”, “Descrição do mundo”). Entremeados aos capítulos, há a inclusão de imagens, cartas, trechos do que parece ser um diário, tercetos extraídos de um guia de viagem e notícias pitorescas que pontuam a história. Imaginei que essas imagens e esses textos fossem como recordações recolhidas por Opalka.
Todos os seus livros são, de alguma maneira, também um objeto artístico. O que esse cuidado interfere na história que você quer contar?
O cuidado artístico não interfere na história, ele é parte da história. Imaginei o livro tomando a forma que ele tem enquanto eu o escrevia. Não são coisas separadas, a história e a forma — inclusive gráfica — como ela é narrada. Como já falei anteriormente, o Opisanie świata tem várias linhas narrativas e eu queria que houvesse uma diferenciação gráfica que deixasse claras essas linhas, mas sem que se recorresse aos tradicionais itálicos ou negritos. Por isso, as cartas, os fragmentos de diário e os outros textos curtos — aqueles que imaginei terem sido recolhidos ou pelo menos lidos por Opalka durante a viagem — aparecem sobre um fundo azul clarinho. A narrativa em terceira pessoa está sobre um fundo claro. E os tercetinhos, que falam ao viajante europeu o que eles devem esperar da América Latina, se acham sobre um fundo azul escuro. A abertura do livro também tem um jogo visual. Imaginei-a como a abertura de um filme. Assim, depois das imagens da Polônia, as cartas são os primeiros textos que aparecem, como uma espécie de cena antes dos “créditos” (o título do livro e minha assinatura em duas páginas). Só depois disso é que vêm as epígrafes, a dedicatória, os capítulos.
Após esse romance, você pensa em voltar às narrativas mais fragmentadas, curtas, ou talvez permaneça nesse formato?
Tenho vários projetos em andamento que envolvem, no geral, narrativas mais curtas. Até o final do ano, devo publicar, pela Cultura e Barbárie, de Florianópolis, outro livro pequeno, com um texto curto, chamado Minha novela, que concebi originalmente para outro suporte que não o livro. Este texto foi exibido em vídeo, como parte de uma instalação, na mostra que realizei na Embaixada do Brasil em Bruxelas, entre dezembro de 2012 e fevereiro de 2013. Além dele, pretendo dar continuidade ao projeto Pré-Histórias, em que trabalho com fragmentos muito curtos. A origem deste projeto está na divisão homônima do livro Os anões, que reunia textos que não eram ainda histórias propriamente ditas; eram mais histórias em gestação, histórias em potência. Por isso, pré-histórias: histórias antes de estarem completamente formadas. Naquele mesmo ano, fui convidada pelo Sesc para fazer uma intervenção na Mostra Sesc de Artes, nos tapumes de uma unidade em construção no centro de São Paulo. Elaborei as Pré-Histórias, 2, em que apresentei, pintadas sobre placas de madeira, frases ouvidas nas ruas. Este projeto resultou, depois, com o acréscimo de muitas novas frases, no livro Delírio de Damasco, lançado no final de 2012 pela Cultura e Barbárie. No início deste ano, novamente o Sesc me convidou para participar de outra mostra, a Tuiteratura. Como a mostra fazia referência ao Twitter, achei por bem pensar em textos que fizessem referência ao meio. O resultado foi Next tweet(Pré-Histórias, 3), em que trabalhei a partir do aplicativo That can be my next tweet, por meio do qual uma máquina supõe, com base no que você escreveu anteriormente no Twitter, quais seriam seus próximos tweets. Esse projeto também deve se ampliar e virar livro. Estou elaborando ainda as Pré-Histórias, 4, compostas a partir de frases ouvidas em galerias de arte e museus. Minha intenção é apresentar este projeto numa sala expositiva de uma galeria ou de um museu. Assim, a sala se povoará não propriamente de trabalhos artísticos, como esperado, mas de vozes, as mais diversas e dissonantes, que falam sobre aquilo que, naquele momento, se acha ausente: as obras. Estou trabalhando também num livro de contos, que se chamará Sombrio, ermo, turvo. Só talvez O Kayapó, outro projeto em progresso, vire um romance, ou algo parecido. De resto, no próximo ano, deverá sair a edição brasileira do Sul, livro que acaba de ser publicado na Argentina, reunindo um conto, uma peça teatral e um poema longo.