No dia em que Caio Fernando Abreu (1948-1996) faria 72 anos, publicamos este texto do crítico literário Italo Moriconi (UERJ), amigo de Caio, constrói a perspectiva de uma "escrita da Aids" nos últimos trabalhos do autor. Segundo Italo, Caio que acreditava "que a condição soropositiva lhe propiciará entrar num surto criativo" semelhante ao que ocorrera com outros artistas também diagnosticados com Aids (como Cazuza ou Derek Jarman). Para isso, o crítico constrói uma série de ideias sobre a cultura bareback entre gays, a do sexo sem camisinha, e de como tal prática culmina, em CFA e Foucault, em uma indagação sobre o melhor modo de existir.
O texto abaixo é um trecho de Urgência, orgia: Escritas da Aids, um dos ensaios de Literatura, meu fetiche, de Italo Moriconi, livro mais recente do selo Suplemento Pernambuco/Cepe Editora. A obra reúne textos de Italo sobre a vida literária brasileira dos últimos 20 anos, discute autorias — Caio Fernando Abreu, Clarice Lispector, Torquato Neto, entre outras — e traz uma “proposta de remodelação do pensamento sobre literatura produzido na universidade", segundo as organizadoras do volume, Paloma Vidal (Unifesp) e Ieda Magri (UERJ).
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Experiências extremas — a prisão, a doença, a loucura — produzem literatura de urgência. O extremo é vertiginoso, é o que avança e devora, instaurando uma velocidade no tempo e o desejo de um apaziguamento definitivo. O extremo é aquilo que tememos não possa ser dito, que cremos seja arriscado dizer, que no entanto está constantemente desafiando e exigindo os poderes do dizer. Enfrentar o extremo é aflorar, desafiar os tabus da linguagem. É chegar ao limite entre vida e morte, entre consciência e perda da consciência, entre mal-estar cotidiano e sofrimento físico insuportável.
Entro e saio da literatura. Privilegio a leitura como atividade pública em torno de referenciais universais e locais que vão sendo consolidados, enquanto referenciais, pela imprensa, pela escola, pelo mercado de bens simbólicos — em suma, pelas redes e circuitos da comunicação. O que distingue a leitura literária de outras é que seus referenciais são, por um lado, o “autor” ou “autora”, e por outro, o autor ou autora como escritor/a. Há portanto que haver uma figura autoral física (uma pessoa física), ela própria objeto de consideração pública e há que estar em pauta na avaliação dessa figura de vida/fala/texto o problema da escrita enquanto técnica, arte e poder expressivo valoráveis.
A partir daí, se esboça a possibilidade de uma definição pela qual a literatura da urgência seria a leitura crítica, reflexionante, de textos autorais, ficcionais ou não, e de narrativas de trajetórias de vida/fala/escrita em que se tematizam fatos extremos experienciados pelo autor enquanto pessoa física. Na cena da teoria, está em pauta a relação entre vida e escrita. Na cena descritiva, está a escrita como registro, gráfico, sintoma, estilização, encenação, dramatização de uma experiência extrema. Sim, trata-se de um gênero discursivo, o da escrita da urgência, e no campo por ele definido, inclui-se a escrita da Aids, a balada vivida do HIV em sua transliteração gráfica, seja ela conceitual ou poética, como vertente da literatura da virada do século.
Experiências extremas são históricas e a escrita da Aids é um gênero inseparável da circunstância instaurada no decorrer dos anos 1980 do século passado e da maneira como nossas visões naquele momento tanto quanto nossas visões atuais daquele momento foram afetadas pelas transformações tecnológicas, ideológicas, existenciais ocorridas ao longo das décadas subsequentes. Toda literatura da urgência se radica numa circunstância singular, seja esta acontecimento, situação ou condição. Se abordo a situação extrema da Aids, minha atenção é também chamada pela circunstância histórica do acontecimento. Se abordo a loucura, ou aquilo que a sociedade diagnosticou como loucura num determinado indivíduo-autor, tenho uma circunstância de condição. Na literatura contemporânea enquanto disciplina de pensamento e pesquisa, o tema da literatura da urgência apresenta interfaces com as teorias e estudos do testemunho, da memória do holocausto, e do trauma em geral, nas suas dimensões individuais e coletivas.
Como pesquisador universitário e pessoa impactada pela crise do HIV, particularmente na esfera das letras e artes, interessei-me pela escrita da Aids, pelas relações entre vida e escrita (o que vale dizer também relações entre escrita e consciência ou expectativa da morte) e, last but not least, pelas trajetórias de vida e morte de alguns personagens da vida intelectual e literária recente, tanto daqui como de fora. Assim, voltei minha atenção às biografias de Foucault, de Caio Fernando Abreu, escritores tão amados, tão ligados à experiência histórica da revolução e da contracultura nos anos 1960 e 1970, autores que morreram tão cedo, a Aids fornecendo o epílogo das utopias e das práticas de liberação extremadas, enquanto em outros casos o epílogo veio na forma de suicídio, loucura, exílio voluntário ou mesmo, simplesmente, a introjeção pouco problematizada de um discurso de derrota ou fracasso, signo de impotência em tempos de neoconservadorismo triunfante.
Por meio de explorações biográficas, penso a mim mesmo, rascunho autobiografias geracionais, de amplo escopo, e, sincero, finjo confissões por interposta pessoa, finjo irmandades entre perversos felizes mas não inocentes. Penso enfim, e primeiramente, na experiência da orgia que alguns de nós vivemos ou sonhamos e penso no que veio depois, o depois de nossa juventude, minha juventude exaltada, vertiginosa — é por ela que escrevo, para ela que escrevo, bem passageiro, bem durável. Na memória de nossa juventude revolucionária e contracultural, a placa-mãe de nosso ser histórico, fugaz, anacrônico. Criar uma linguagem para o extremo é levantar véus, é desprezar tabus, é produzir sinergia entre o sublime banal e o abjeto facinoroso.
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Comecemos, pois. Comecemos pelo escuro. Comecemos pelos extremos cegos do corpo vivido: a boca, o ânus. Avessos femininos dos olhos e do pênis ereto no corpo masculino. Ao fim e ao cabo, o escritor periférico Caio Fernando Abreu e o filósofo universal Michel Foucault morreram pela boca ou pelo ânus. E assim morreram porque foram barebackers, porque transaram sem camisinha já em tempos de Aids. Se considerarmos que do momento da infecção pelo HIV ao desenvolvimento das doenças ligadas à síndrome da Aids se passa um tempo de dez ou mais anos, nenhum dos dois pode ser imputado de culpa. Principalmente Foucault, que deve ter se contaminado entre o início e meados dos anos 1970, portanto ainda numa era de inocência quanto ao retrovírus. No caso do nosso Caio Fernando, trepar sem preservativo nos anos 1980 já representava um comportamento bareback, antes que este se tornasse opção existencial e política de uma difusa, singular — e minoritária ainda, creio eu — tribo dentre as diversas tribos gays ou queers contemporâneas.
A tribo barebacker é a dos homens que fazem sexo anônimo sem camisinha com outros homens. Experiência extrema. Chamo-a de difusa porque encontra-se diluída no caldo maior das relações homoeróticas masculinas em geral. Seus componentes não exibem um gênero comportamental específico — entre bichas e homens, fora ou dentro do armário, sempre pode existir um barebacker camuflado. Também não há entre os barebackers a exigência de um perfil corporal definido — diferente do que se vê entre os maduros ursos ou, por contraste, entre certos gays marombeiros jovens. Pode-se, porém, utilizando apenas o olhômetro de incursões etnográficas por esse caldo mundo, aventurar a hipótese estatística de que há uma incidência maior de barebackers nos circuitos leather. Na prática, o reconhecimento mútuo entre os pares se dá mediante um gesto eloquente, realizado no momento imediatamente prévio à conjunção carnal, trata-se na verdade da ausência de um gesto, ausência do gesto regulamentado de pegar a camisinha no bolso e rasgar com a ajuda dos dentes sua capinha de celofane. No não gesto, o gesto, a senha performática, o pacto anônimo, o segredo compartilhado no universo paralelo dos dark rooms — quartos escuros, festas do apê, os locus da orgia.
Sexo em pelo, sexo pele, pelo com pele, pele a pele. O corpo a corpo: é pele com pele, até o nível da cega, da sensível mucosa. Tato e língua. Invasão, retração. Corpos boiam, água espessa, estado de ameba, fluidos, ânus-anêmona, cuspes, corpos boiando entre corpos. Tentemos traduções. Durante muito tempo, os mestres da cultura letrada ocidental em matéria de homossexualidade foram os franceses. A operação tradutória sempre foi necessária nesses assuntos, e isso em diversos sentidos, tanto linguísticos quanto culturais, tanto entre culturas diversas quanto no interior delas, entre diferentes grupos ou tribos. Nos tempos pós-literários da hegemonia pop-consumista, somos obrigados a traduzir do inglês as palavras de acesso. Chamemos provisoriamente de sem-borracha a tribo barebacker, aproveitando-nos da expressão “transar sem borracha” — ela própria outro anglicismo — usada frequentemente por homossexuais masculinos brasileiros como sinônimo de “transar sem camisinha” — “rubber” ou “borracha” é sinônimo de camisinha em inglês. Por motivos de eufonia e por motivos de representação mais adequada da ambivalência intercultural, oscilo entre o uso do termo original e o uso do termo traduzido. Acrescente-se que cada palavra em inglês aqui utilizada apresenta um problema de tradução/adaptação cultural.
Em inglês, a metáfora do barebacking foi importada do prazer da cavalgada. Cavalgar bareback, “bareback riding”, é cavalgar a pelo, cavalgar sem sela.
Recuperar o prazer da livre cavalgada depois do tenebroso apocalipse.
Recuperar o prazer da orgia em pleno tempo de pós-orgia.
A confraria silenciosa dos sem-borracha surgiu como fenômeno autoconsciente entre meados e final dos anos 1990, quando o coquetel de medicamentos passou a garantir vida prolongada aos portadores do HIV. Assim, a curta sobrevida dos primeiros tempos apocalípticos, com sua colheita de mortes precoces, cedeu lugar a perspectivas de futuro, perspectivas até mesmo de envelhecimento, contrariando os deuses gregos, que, segundo reza a lenda, gostariam de continuar levando embora para junto de si tantos homens belos, tantas bichas na flor da idade mais vivaz, mais produtiva, homens-mulheres, sempre homens, somente homens, circuitos misóginos. Os tratamentos, ou seja, as tecnologias e próteses finalmente desenvolvidas pela ciência, fizeram com que se modificasse radicalmente o timing existencial dos soropositivos. Na nova situação, aqui e ali, indivíduos tomaram a decisão de jogar no lixo a camisinha e erigiram autojustificativas que reapareciam lá e acolá, de cabeça a cabeça, era mesmo a glande ocupando o lugar da razão.
Possivelmente estatísticas que se queiram mais científicas, mais quantificadoras que aquelas baseadas no tosco olhômetro do etnógrafo amador, haverão de mostrar que o sexo sem borracha cresceu bem mais nos países do chamado Primeiro Mundo que no Brasil. Nosso país é dos mais bem-sucedidos tanto na distribuição gratuita do coquetel anti-HIV quanto na educação e disseminação do uso da camisinha. Poucos aqui se atreveram a construir uma razão pessoal, uma racionalização autojustificadora de sua desobediência civil secreta, subversão contraposta à implacável normatividade vigente do uso da camisinha. Neste campo, entre nós, a lei escrita adquiriu força de lei não escrita. Em matéria de sexo, estamos com nota 10 em saúde pública, tendo em vista que saúde pública exige comportamento padronizado, disciplinarizado. O tabu da morte é desafiado no trânsito, nas corridas de Fórmula 1, na violência urbana, mas prevalece, férreo, nos espaços intersticiais da contínua e diuturna orgia gay, a qual, assim, com toda essa borracha, com todo esse plástico, com todas essas restrições e repetidos nãos, vira orgia virgulada, orgia com ressalvas.
Claro que nesse contexto não aparece ninguém disposto a defender no espaço público o direito a transar sem camisinha, como fazem ou fizeram alguns sem-borracha americanos, na imprensa e nos sites ditos gays ou queers. A tribo semissecreta e anônima dos barebackers é a face rebelde e ilógica, desafiante e arriscada, que faz contraste histérico-político ao projeto burocrático de enquadramento social via casamento gay. Antes porém de promover ações de criminalização ou estigmatização, seria interessante investigar a que necessidades corresponde o comportamento sem-borracha. Para além do direito dos soropositivos a terem uma vida sexual plena ou dos não soropositivos a disporem de seu corpo como julgam melhor, a postura bareback traduz uma insatisfação com o ritmo lento que as pesquisas sobre Aids adquiriram, uma vez garantida a força de trabalho pela ação do coquetel. Trata-se de reivindicar, ainda e sempre, a tecnologia suficiente para erradicar o retrovírus do corpo humano, virando de vez essa página da história da saúde e do corpo. Isso se torna mais relevante num momento em que o clima de guerra favorece a priorização de pesquisas voltadas para aperfeiçoamento de tecnologia militar e de vigilância panóptica.
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Em A transparência do mal, publicado em 1990, Baudrillard desenvolve um léxico para descrever os fenômenos extremos do início do fim do século passado (anos 1980) em sua relação histórica com o fenômeno extremo que é a própria modernidade ocidental-global. A modernidade é orgia contínua, liberação contínua de forças. Nesse sentido, os fenômenos extremos do fim do século são vistos por Baudrillard como pós-orgíacos, acontecimentos induzidos pela própria disseminação ilimitada de forças em liberação no contexto de total permissividade e crescente transparência, acarretando um declínio dos sistemas diferenciais de valores na medida em que todas as forças são positivadas. É impossível valorar o comportamento sexual, quando o ato sexual é exibido em horário nobre na TV, tema que Baudrillard retoma ao comentar as confissões sexuais de Catherine Millet em Telemorfose. A negatividade é expulsa para fora do sistema mas volta como uma espécie de retorno do recalcado na forma da catástrofe totalizadora: um só ato terrorista, escreve ele, “força a reconsiderar todo o político à luz da hipótese terrorista”; o aparecimento da Aids “força a rever todo o espectro das doenças à luz da hipótese imunodefectiva”; o vírus que ataca as memórias do Pentágono “basta para desestabilizar potencialmente todos os dados dos sistemas de informação”.
Baudrillard ergue uma ponte especulativa entre a experiência da orgia e a experiência do adoecimento e morte precoce acarretados pela Aids. Haveria um elo necessário, propriamente sistêmico, entre o fenômeno extremo e o processo dominante de replicação e ampliação das positividades. O excesso de promiscuidade, positividade sexual moderna, a partir de um certo ponto engendra seus próprios limites físicos. Por certo este elo naturalista-sistêmico ecoa aquele afirmado pelo discurso religioso-punitivo dominante, que profere: é preciso conter-se, é pecado a sodomia, é loucura a sexualidade promíscua. Liberar o corpo numa sequência infinita e cotidiana de atos sexuais casuais (como faz e relata Catherine Millet) só pode trazer doença, só pode trazer a morte. É falta de amor, falta de afeto, é uma exacerbação da sexualidade que já nada mais tem a ver com sexualidade, no egoísmo monádico de um gozo que não precisa de parceiro fixo. O discurso religioso, que pune todo prazer sexual fora de uma heteronormatividade, replica-se e hiperboliza-se no discurso homofóbico, que julga serem os homossexuais e os bissexuais merecedores da morte por Aids. E talvez sejamos mesmo merecedores dela, não como punição, mas como prêmio, se a morte deixa de ser o espectro terrificante de um ataque terrorista iminente sobre o indivíduo e passa a ser a personagem amena com que se dialoga calmamente, enquanto se prepara a sala e o aparelho de chá para o momento de sua visita fatal.
Nas trajetórias de vida/fala/escrita de Michel Foucault e Caio Fernando Abreu podemos identificar modulações diferentes do elo entre a experiência da orgia e a experiência da Aids. Podemos levantar a hipótese biográfica de que a experiência da orgia leather sem borracha é o pano de fundo em relação ao qual se erige o olhar queer que de certo modo estrutura ou emoldura a História da sexualidade. Entendo por olhar queer o gesto de adquirir uma distância etnográfica em relação à heteronormatividade ocidental moderna. Por outro lado, o enraizamento na experiência da orgia impregna as muitas declarações e entrevistas dadas por Foucault nos seus últimos anos de vida (ele morre em 1984) a periódicos e jornais, motivadas pelo crescente engajamento do filósofo no debate suscitado pelo movimento gay.
Nessas entrevistas, a ideia, bem paradoxalmente pós-1968, de que o excesso de liberação sexual coloca em pauta a transformação do sexo em outra coisa é fraseada por Foucault nos termos de uma proposta de substituição da retórica do sexo por uma retórica dos prazeres. Ao tornar-se o valor supremo da existência na modernidade, o sexo suscita um heroísmo que pode ser mensurado pela busca do prazer ilimitado. O ilimitado é inatingível, conferindo valor ao signo que se arrisca nas escarpas da transgressão, buscando desfazer-se de seu ser letra, tornando-se corpo significante, corpo suporte, corpo em pedaços, à caça de sensações cada vez mais intensas, em busca do êxtase infinito, final, fatal. A conexão com o desejo de morte é imediata. Declara Foucault numa entrevista de 1982:
Eu gostaria e eu espero morrer de uma overdose de prazer, qualquer que seja. Porque eu acho que é muito difícil e eu tenho sempre a impressão de não experimentar o verdadeiro prazer, o prazer completo e total, e este prazer, para mim, é ligado à morte.
Assinale-se o emprego da palavra “overdose”, na medida em que o uso crônico de drogas é uma componente eu diria que imprescindível na experiência da orgia. Roubando um pouco da retórica de Baudrillard, a lógica da orgia seria a infinita replicação virótica das fontes de prazer. A repetição obsessiva do consumo das drogas chamadas recreativas favorece a dinâmica delirante. Anonimato, seminarcose, moto contínuo. Deslocar a sexualidade para o prazer e o aprender de si do corpo integral (um corpo pós-fálico, ou extrafálico ou ainda, se se quiser, transfálico e descentrado) envolvendo sua própria dissolução ou a dissolução da consciência articula-se ao sentido do deslocamento da pesquisa do último Foucault de uma história da sexualidade para uma hermenêutica do sujeito fortemente ancorada num interesse pronunciado pela releitura dos cínicos e dos estoicos. O foco no prazer (prazer de viver, prazer de estar morrendo) integra-se às questões do cuidado de si, da escrita de si, da estética da existência. Ultrapassada a fase histérico-política da entrega orgiástica, chega o momento da indagação sobre o melhor modo de existir.
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Não é implausível que Caio Fernando tenha contraído o HIV no ano da morte de Michel Foucault. Em carta enviada à amiga e artista plástica Maria Lídia Magliani, a 16 de agosto de 1994, ainda internado no Hospital Emílio Ribas, Caio conta que foi diagnosticado soropositivo e comenta que seu médico avalia estar ele infectado há pelo menos dez anos. Pouco mais de um mês depois, Caio retoma sua coluna no Estadão com a primeira das famosas “Cartas para além dos muros”, em que comenta com o público todo o processo de adoecimento, diagnóstico, estar-no-hospital (aquém do muro branco), perspectivas para o futuro próximo, que ele deseja de muito trabalho. A Aids pegou Caio num momento de salto profissional, com traduções no exterior, convites para viagens e sobretudo vontade de tocar uma série de projetos literários. Alguns deles foram efetivamente realizados nos quase dois anos de sobrevida. Caio morreu em fevereiro de 1996, no mesmo mês em que a mídia internacional trombeteava aos quatro ventos a potência do novo tratamento com o coquetel múltiplo de medicamentos. O recurso adotado a partir de 1995/1996 pela ciência médica para combater a Aids assemelhava-se a estratégias de controle que tinham sido utilizadas com sucesso contra a tuberculose no final dos anos 1940, pouco antes da possibilidade de cura definitiva com a descoberta da penicilina.
O conjunto de quatro cartas, a primeira, privada, para Magliani, e as demais, na forma de crônicas endereçadas ao público leitor em geral, documentam as rápidas etapas pelas quais Caio consolida uma visão apaziguada de sua situação: na última crônica-carta afirma a aceitação da morte e a disposição de trabalhar pesado, de dedicar-se exclusivamente a seus projetos de escritor. A verdade é que, apesar do susto inicial, que o levara a ter uma crise nervosa dois dias após a notícia do diagnóstico, tudo na vida de Caio estava preparado para a eclosão desse acontecimento. Desde os anos 1980, como atestam diversas passagens e instâncias de sua obra, Caio conviveu cotidianamente com a Aids e com aquilo que se pode chamar uma “cultura da Aids”. A notícia trazida pelo exame de sangue é ruim, mas Caio se regozija por passar a pertencer à família de Derek Jarman, Cazuza, Hervé Guibert, Cyril Collard, autores citados por ele na carta a Maria Lídia e em diversos momentos daí para frente. Assumindo tom de blague autoirônica, que no entanto pode ser lida como a expressão de um desejo, Caio acredita que a condição soropositiva lhe propiciará entrar num surto criativo semelhante ao que teria acometido esses quatro praticantes de uma escrita da Aids. Uma vez absorvida a notícia, Caio logrou manter-se de cabeça fria e suportou os sofrimentos físicos com uma atitude estoica exemplar. Nos quase dois anos de sobrevida, estabeleceu seu diálogo calmo com a perspectiva da morte. Ele desejou essa morte, ele construiu o caminho para essa morte, tanto quanto Foucault sonhara a sua, por sabê-la e desejá-la inseparável de um estilo de vida.
O desejo de morte aqui tem menos a ver com uma condição mórbida ou patológica e mais com a conquista pelo ser humano do poder de cada indivíduo determinar a forma e o momento de seu desaparecimento físico. Nesse sentido, a peculiar relação estabelecida entre cada cidadão soropositivo e a história de sua contaminação, adoecimento e morte antecipa o novo tipo de relação com esta última na sociedade pós-moderna, pautada pela ampliação do período de sobrevida como resultado das novas descobertas científicas no tocante a tratamento das doenças graves e terminais. A própria noção de “terminalidade” foi ampliada: hoje, nas fímbrias afluentes do mundo globalizado, o fim da vida do indivíduo acaba se transformando no ponto final de um mais ou menos longo período, ativo e produtivo, em que a morte vai sendo administrada num processo cotidiano de negociação. O debate sobre a eutanásia e o suicídio assistido devem ser encarados nesse contexto. Na mesma linha de numerosos depoimentos anedóticos de cidadãos e cidadãs soropositivos anônimos, depois de diagnosticado, Caio manifesta em entrevistas e também em peças ficcionais o fato de estar se sentindo melhor e mais feliz do que em todo o período anterior de praticamente 15 anos (desde o início dos anos 1980 até o diagnóstico em 1994) em que, por sua condição homossexual, convivera com o pânico permanente de ser infectado, enquanto à sua volta morriam sem parar tantos amigos e companheiros, entre anônimos, autores e celebridades. A vida nos anos 1980 e na primeira metade dos 1990 foi um luto permanente para quem manteve contato tão próximo com grupos afetados pelo HIV. A questão sexual, assim como dentro dela as condições homossexual e bissexual, que tinham sido moduladas como utopia pelo espírito revolucionário e contracultural dos anos 1960/1970, voltaram a ser marcadas como “miséria sexual”.
Nossa felicidade, nossa miséria, o prazer sexual.
Na verdade, a grande questão biográfica colocada pelo “caso Caio” é responder à pergunta sobre por que teria ele optado por viver tanto tempo dentro daquele estado que os americanos chamam de “denial”, negação, cujo sintoma maior é recusar-se a fazer o teste de HIV quando se sabe que são grandes as possibilidades de estar contaminado. Talvez minha hipótese do Caio barebacker esteja equivocada. É possível que ele tenha passado a usar camisinha a partir de um certo momento nos anos 1980, mas que quando tomou essa decisão o HIV já estava lá, correndo no seu sangue, fazendo seu trabalho sujo.