Confira a segunda matéria de Inéditos: José Juva
14h30 – Aeropuerto El Prat
Já passava das 14h30 quando dei conta da horrível situação em que havia me metido. Tentava ver em retrocesso uma solução, mas o caso já tinha sido dado por perdido. Gritei, insultei, matei a mãe duas vezes e todos me condenavam com um olhar de reprovação de tirar a esperança do cristão mais fervoroso. “Señora, ele está ali ainda. Posso ver a porta aberta!”. “A irresponsabilidade foi sua. Já está demasiado tarde. Por favor, volte”. A outra senhora, mais simpática, ainda fez um sinal com a cabeça como se dissesse “vai, deixa, o bichinho”, mas a sisudez da primeira parecia irreversível. “Não tem jeito. Você terá que falar com alguém lá fora”. Cartão não funcionava no exterior ao contrário do que me disse o gerente do banco. Lembrava que tinha centavos o suficiente para fazer do meu bolso um chocalho com o qual apelei para a piedade alheia. “Dá para comprar uma passagem para o Brasil com isso?”
Estava no fim de uma viagem de um mês na Europa. Essa seria a última escala de uma temporada de verão até então tranquila. Portava um mochilão furado e de procedência questionável presenteado pelo amigo e anfitrião brasileiro, André. Dentro, só uma muda de roupa suja e uma edição em francês de O estrangeiro de Camus cuja leitura estava inutilmente prevista para ser feita a bordo. Fui caminhando de cabeça baixa, a camisa estava suada da maratona que acontecera 20 minutos antes, desde a parada do trem até a correta porta de embarque. A outra senhora, a do balcão de informação, pede para ver o passaporte. Enfio a mão no bolso da frente e ele não está. Saio tapeando tudo: peito, bolso, carteira, cueca e nada do bendito. Parece que ele havia caído do outro lado do balcão pelo buraco da mochila quando a coloquei em cima de sua mesa para melhor chorar-lhe as pitangas. Ela me devolve com um riso. Apenas digo arranhando no portunhol e numa atuação dramática digna de um prêmio “pode ficar, creo que no voy a necesitar”.
Essa com certeza seria a melhor hora para contar à família que havia peregrinado para Barcelona, a meca dos descolados, numa promoção relâmpago cibernética e ainda incluir o twist final no enredo: o retorno talvez não aconteceria. O telefone da casa dos meus pais não atende. O da agência responsável pela passagem tampouco. Domingo é sagrado; ai do ente ingrato ou do cliente herético que queira profaná-lo impondo a outrem qualquer atividade laboriosa. Taco a última moeda de 2 euros, ligo para o celular da minha mãe (pois seu amor é laico) e o orelhão a engole toda ainda no sexto toque sem obter resposta. Na mente repassava a última hora a fim de encontrar o possível erro no plano. “Como assim eu não vou voltar para casa?”.
A porta fechou e a maçaneta ficou na mão. Não sou adepto à poupança, nunca cogitei um plano de previdência e desde criança aprendi que o dinheiro no porquinho é para torrar; logo entraria numa grande contradição de ordem ontológica se aqui confessasse ter reservado um arroubo emergencial para situações improváveis. A partir das onze horas da manhã seguinte seria outorgado o no show em Lisboa, meu portal de entrada no velho continente,cuja pena era uma passagem de volta mais cara que todo o pacote CVC. O voo perdido era para Lyon, na França, onde o André morava, onde se encontrava minha mala, de onde eu sairia para Lisboa e para onde eu deveria estar a caminho naquele exato segundo rumo a uma noite de despedida a qual se anunciava inesquecível.
Só restava apelar para companhia aérea. Explico a delicadeza da situação em português enrolado, colocando uns I’s no meio das palavras, assoviando como Javier Bardem e com muito espacio. O señor da cia. deu nos ombros, assegurando que sin plata não se vai muito longe (na vida), quiçá de um aeroporto. “vosotros es el culpado”. Ânimos se exaltam. Berrei bem alto que moraria ali para sempre igual a Tom Hanks no filme O terminal. Tomaria banho no banheiro do aeroporto, comeria dos restos alheios e viraria um caso social. Tudo na esperança de sensibilizar um simpático casal de idosos logo atrás de mim na fila... em vão.
Pela insistência DEL SEÑOR, que portava um questionável bigode de ator pornô, deixei a fila. Instalei-me numa pilastra há alguns metros do guichê com minha mochila com o rasgão transformado numa cratera, deixando toda roupa suja à mostra. Fixava o responsável pelo check-in com insistência. Ele apenas soltava o ar pela boca e revirava os olhos quando me via. Meu casaco cinza de pano servia de lençol para me encobrir enquanto fingia ler Camus tranquilo. O pacote de biscoito e a garrafa d’água no chão sinalizavam que o meu #occupy era pacífico. Não ousaria levantar a voz novamente se a outra parte concordasse em me ceder o retorno pelo preço justo. Como em todo protesto, a polícia armada foi chamada a intervir a qual me pediu gentilmente para que considerasse ficar perto da escada, atrás dos carrinhos de bagagem, no andar de baixo. Aproveito este espaço para dizer que DEL SEÑOR faço muito esforço para não guardar rancor, pois ele não é melhor do que eu.
Dirigi-me ao lugar indicado. Era a parte reservada ao desembarque, estrategicamente composta de uma porta para a saída dos passageiros e outra para a saída do aeroporto, o que limitaria minha atuação de protesto. Policiais de sacanas. O voo que acabara de chegar era da França repleto de turistas aparentemente de férias. Inventei várias histórias envolvendo mãe, fome, hospital, terceiro mundo cujos detalhes deixarei de fora com medo de deixar uma péssima impressão. Notas de 5 e 20 cifras apareceram miraculosamente na minha mão. Os outros foram menos generosos, mas não os culpo. Recusar um pedido de estranho com história manjada, “quem nunca”? Arrecadei 80 euros ao todo. Um funcionário alertou que a polícia poderia me expulsar pela prática lucrativa. Era o fim de uma carreira promissora.
“Hoje a mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama”. Camus não reconforta. De duas uma: minha família estaria preocupadíssima acionando o Itamaraty ou julgavam estar tudo bem e por isso foram para a rua comemorar. De todo jeito, o telefone ainda tocaria sem a euforia esperada. Talvez fossem me buscar no aeroporto e lá teriam uma notícia inesperada pela qual ainda alimento um desejo secreto de tê-la visto pela perspectiva de um narrador-observador. No pior dos casos, saberiam por telegrama. Comecei a ler as primeiras linhas do livro no ônibus de volta para a estação central na tentativa de aquilo me tirar um pouco da realidade. Fui aconselhado a não mais ficar no aeroporto naquele horário e voltar apenas no dia seguinte para não ser condenado a voltar de ônibus, segundo fontes nada sutis. Conselho maravilhoso.
Uma jovem pintada, bochechas roxas e longos cílios, aparência de um personagem de Fellini, era a responsável pela venda de passagens rodoviárias na estação Sants. A moça engraçada pergunta quantos anos eu tenho. Ela afirma que existe diferença tarifária de acordo com a idade. Até 25 anos há redução. Tenho sorte, pois meu um quarto de século ainda iria ser comemorado. Minto. A palavra é mais preciosa que documentos comprobatórios. Anuncia então a partida do ônibus nas próximas horas enquanto imprime o bilhete pago pela gentileza francesa. Estava salvo.
21h00 – Estació Barcelona Sants
Uma mulher vestindo burca se desespera ao telefone. Ela fala em francês que seu ônibus para Paris não vai sair. Há uma apreensão desconfortante na fila do embarque. O guichê alerta a todos sobre um incêndio na fronteira com a França, obrigando a fechá-la por tempo indeterminado. Mandou-me pegar outro amanhã ou o reembolso. Peço a segunda opção, pois “amanhã” eu não era para estar ali.
Na esquina, existia um locutório. A primeira ligação para casa é sem sucesso. A segunda para André, o único não parente anotado na agenda. Parecia pouco preocupado. Falo da perda do voo, da falta de grana, do guichê escroto, da perseguição policial, da falsidade ideológica, do ônibus, do fogo. Quando digo que pedi dinheiro a estranhos começo a chorar. “Bicho, e a tua mala?”. Resposta bem difícil. Não era bom pensar como faria para reembolsar as encomendas de terceiros, incluindo uma do seu chefe, num momento parecido. Desconversei até a música da minha suposta festa impedir por completo a comunicação. Percorri a cidade a ermo a procura de uma boa saída para a inviável logística. Parei numa Mcdonald’s ainda aberta no meio do caminho. Um hambúrguer e uma coca para levar. Cerveja é proibida em lugares a céu aberto. Comi no banco da praça. Já era quase meia-noite e não podia arcar com os hotéis ao redor. Sem cerimônia, ali dormi esperando em algum momento a câmera escondida aparecer revelando a pegadinha de péssimo gosto. “Muito boa, pessoal!”.
5h30 – Plaça Catalunya/Aeropuerto El Prat
O ônibus de volta ao aeroporto saía da praça Catalunha, perto da região das Ramblas. Dessa vez não tive contratempos para estar lá na hora indicada. Estava manjando bem os trejeitos da cidade. Os espanhóis não têm pressa. São bons vivants por naturaleza. O ritmo lento dita o modo de comportamento dos estrangeiros àquele lugar. A adequação precisa ser rápida. Os catalães ensinam sem nenhuma candura que existe mais na vida a ter que se preocupar com você.
El bigodón não trabalhava no guichê da cia naquela hora. Um outro muito mais legal disse que estava ciente da minha situação. Uma luz no final do túnel, finalmente. Uma energia positiva emanava desse rapaz. Daria todo o dinheiro no bolso (uns 60 euros naquele ponto) e o resto restituiria à agência de viagem, a qual também havida sido devidamente informada. Estavam à minha procura desde a noite anterior, anunciando várias vezes no microfone. Virara celebridade instantânea em Barcelona pelas más razões (e qual não é?).
“Señor, Lisboa non. Lyon!”. O rapaz simpático havia tomado a frente na decisão e achou melhor me poupar dos quilos da bagagem. Em sua defesa, uma parada a mais no trajeto e perderia a conexão para o Recife. Era eu ou a maleta. Desde o início quis fazer uma viagem nova, no entanto, não esperava uma inédita. Taí, nunca viajei sem mala. Deveria existir algum serviço de entrega internacional especializado para pessoas esquecidas. Meu chefe me entenderia quando retornasse das férias sem seu relógio SWATCH. Pediria perdão in locus. Diferente do acontecido com o personagem Meursault de Camus, acusado por uma série de absurdos inclusive de colocar a xícara de café no caixão da mãe, todos me absolveriam por todos os erros cometidos se o caso fosse a julgamento público com todas as testemunhas espanholas a meu favor.
20h27 – Aeroporto Gilberto Freyre
Pela alfândega passei rápido. Cheguei com a calça arregaçada até o joelho, de Havaianas e as pernas sujas à mostra. Durante o voo consegui terminar minha literatura. Não quis conversa com o colega de assento. Tampouco interessei-me pelo filme a bordo. Minha mãe me esperava atrás das portas do desembarque. Perguntou da mala sem fazer ideia das últimas 24h. Reclamou muito do perfume e dos cremes pelos quais prometi total reembolso. Inteirou-me das novidades: meu tio distante e desinteressante se separou da mulher com os mesmos adjetivos. Minha vó fez uma operação. Tumor benigno. A visita era a primeira parada antes do meu descanso em uma cama. “Rapaz, como você pode fazer isso? Era Lancôme”.
Imaginei o quão legal seria se eu pudesse largar do carro e voltar para a área de embarque? Não estava tão longe assim. Voltei para o lugar em cuja praça nunca dormirei. O trabalho iria começar na semana seguinte. Tento sair dele há no mínimo 6 meses assim como de um relacionamento o qual perdeu a graça há mais tempo que isso. Com a família também não estava em bons termos. Eu confesso: sabia que iria perder o voo assim que cheguei no metrô e não hesitei em pegar um meio mais rápido e resguardar minha sanidade. Veio um flashde que estava voltando para aquilo me fez fugir em primeiro lugar. Estava comprovando por A + B a lei do retorno eterno de Nietzsche. Tinha que admitir que a senhora chata do embarque estava certa. El bigodón estava certo. El culpado soy yo. O aeroporto ia desaparecendo no retrovisor.
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