Gertrudes era a única pessoa de quem Téo gostava. Desde o primeiro momento, ele soube que os encontros com ela seriam inesquecíveis. Os outros alunos não ficavam tão à vontade. Mal entravam na sala, as meninas tapavam o nariz; os rapazes buscavam manter alguma postura, mas o olhar revelava o incômodo. Téo não queria que notassem como se sentia bem ali. Andava de cabeça baixa, passos rápidos até a mesa metálica.
Serenamente à sua espera, estava ela. Gertrudes.
Sob a luz pálida, o cadáver ganhava um tom amarronzado muito peculiar, feito couro. A bandejinha ao lado trazia instrumentos para investigações mais profundas: tesoura com ponta curva, pinça anatômica, pinça dente-de-rato e bisturi.
“A veia safena magna pode ser observada nas proximidades da face medial do joelho. À medida que ascende à coxa, ela passa para a face anterior, no terço proximal”, Téo disse. Esticou o epitélio de Gertrudes para mostrar os músculos ressecados.
O professor baixou os olhos, encastelado na prancheta de anotações. Mantinha o ar sério, mas Téo não se intimidava: a sala de anatomia era seu espaço. As macas pelos cantos, os cadáveres dissecados, os membros e os órgãos em potes davam a ele uma sensação de liberdade que não encontrava em nenhum outro lugar. Gostava do cheiro de formol, das ferramentas nas mãos enluvadas, de ter Gertrudes sobre a mesa.
Em sua companhia, a imaginação não tinha limites. O mundo desaparecia e só restava ele. Ele e ela. Gertrudes. Havia escolhido o nome no primeiro encontro, ela com as carnes ainda no lugar. A relação se estreitara durante o semestre. A cada aula, Téo fazia descobertas: Gertrudes adorava surpreendê-lo. Aproximava-se da cabeça — a parte mais interessante — e extraía conclusões. A quem pertencia aquele corpo? Seria mesmo Gertrudes? Ou teria um nome mais simples?
Era Gertrudes. Ao olhar a pele ressecada, o nariz fino, a boca seca cor de palha, não concebia outro nome. Ainda que a degeneração tivesse retirado o aspecto humano, Téo via algo mais naqueles glóbulos disformes: via os olhos da mulher arrebatadora que, sem dúvida, ela havia sido. Podia dialogar com eles quando os outros não estavam olhando.
Provavelmente ela havia morrido velha, sessenta ou setenta anos. Os poucos fios na cabeça e no púbis confirmavam a hipótese. Numa investigação minuciosa, Téo havia encontrado uma fratura no crânio.
Respeitava Gertrudes acima de tudo. Apenas uma intelectual seria capaz de se desprender da bajulação de um enterro para pensar adiante, na formação de jovens médicos. Antes servir de luz à ciência do que ser devorada na escuridão, ela pensava, sem dúvida. Tinha uma estante repleta de boa literatura. E uma coleção de vinis da juventude. Havia dançado muito com aquelas pernas. Bailes e mais bailes.
É bem verdade que muitos daqueles corpos nas cubas malcheirosas eram de indigentes, mendigos que encontravam seu propósito de vida na morte. Não tinham dinheiro, não tinham educação, mas tinham ossos, músculos e órgãos. E isso os tornava úteis.
Gertrudes era diferente. Difícil acreditar que aqueles pés tinham suportado as ruas, que as mãos tinham recebido trocados por toda uma vida medíocre. Téo também não aceitava a ideia de assassinato: uma coronhada na cabeça depois de um assalto ou pauladas de um marido traído. Gertrudes havia morrido de causas extraordinárias, um incidente na ordem das coisas. Ninguém teria coragem de matá-la. A não ser um idiota…
O mundo estava repleto de idiotas. Bastava olhar ao redor: idiota de jaleco, idiota de prancheta, idiota com voz aguda que agora falava de Gertrudes como se a conhecesse tanto quanto ele.
“A cápsula articular foi aberta, rebatendo-se a camada fibrosa externa, até a visualização das extremidades distal e proximal dos ossos fêmur e tíbia.”
Téo quis rir da garota. Rir não, gargalhar. E, se Gertrudes pudesse ouvir aquelas baboseiras a seu respeito, gargalharia também. Juntos, degustariam vinhos caros, conversariam sobre amenidades, assistiriam a filmes para depois discutir a fotografia, o cenário e o figurino como críticos de cinema. Gertrudes o ensinaria a viver.
Era irritante o despeito com que os outros alunos tratavam Gertrudes. Certo dia, aquela menina — a mesma que agora gastava sua estridência com termos médicos rebuscados —, na ausência do professor, tinha sacado do bolso um esmalte vermelho e, entre risadinhas, pintado as unhas do cadáver. Os alunos logo se aglomeraram; divertiam-se.
Téo não gostava de vinganças, mas teve vontade de se vingar da garota. Poderia conseguir uma punição institucional, burocrática e ineficaz. Poderia providenciar um banho de formol — ver nos olhos da maldita o desespero ao sentir a pele ressecar. Mas o que ele queria realmente era matá-la. E, então, pintar seus dedinhos pálidos com esmalte vermelho.
Lógico, ele não faria nada daquilo. Não era um assassino. Não era um monstro. Quando criança, passava noites sem dormir, as mãos trêmulas diante dos olhos, tentando desvendar os próprios pensamentos. Sentia-se um monstro. Não gostava de ninguém, não nutria nenhum afeto para sentir saudades: simplesmente vivia. Pessoas apareciam e ele era obrigado a conviver com elas. Pior: era obrigado a gostar delas, mostrar afeto. Não importava sua indiferença desde que a encenação parecesse legítima, o que tornava tudo mais fácil.
O sinal tocou, liberando a turma. Era a última aula do ano. Téo saiu sem se despedir de ninguém. O edifício cinza ficava para trás e, ao olhar sobre o ombro, ele se deu conta de que nunca mais veria Gertrudes. Sua amiga seria enterrada junto aos outros corpos, jogada em uma vala. Nunca mais teriam aqueles momentos.
Ele estava sozinho outra vez.
* Trecho do romance Dias perfeitos (Companhia das Letras)