Leia a segunda matéria de Inéditos: Cidade irresoluta, na voz de Lady Laet

 

Ilustração por Karina Freitas

EXCERTO 1

Três vezes, Macabeu teve de ler na luminosidade da tela do notebook a notícia pairando como um silêncio insuportável pós- piada mal contada para conseguir começar o processo de lubrificar as engrenagens que, uma vez funcionando, produziriam um vago entendimento do conteúdo da mensagem após mais cinco lidas. Numa nona lida, um espeleólogo que estivesse profundamente penetrado poderia vislumbrar, ao alcance débil de sua lanterna de cabeça, uma formação rochosa de pânico. Ao prosseguimento de uma décima, décima primeira e décima segunda lidas, o aventureiro adentrado na furna imensa do enorme titã perceberia a dita rocha em movimento (se aproximando, para sermos mais específicos). E a décima terceira lida era determinante: a rocha estava, de fato, vindo nesta direção, e era redonda feito fosse artefeita por uma civilização sul-americana como mecanismo de proteção, e ela vinha assustadoramente rápida, e o espeleólogo não via outra saída senão correr desesperadamente por amor à própria vida até que se visse salvo à luz do dia e a pedra emperrada na entrada da caverna, e ele fatigado da cabeça aos pés, assustado, traumatizado se tanto, mas livre do esmagamento cruel e apto a pensar em maneiras de como reabrir a passagem tapada para que se possa vir a explorar ainda mais seus interiores.

 

EXCERTO 2

Enclausuramento natural pelos montes contornantes inabilitavam qualquer fuga – efetivamente, o sítio era um buraco, traçássemos um plano horizontal do topo das serras e considerássemos tudo abaixo baixio. Era uma barafunda, um inferno, uma mescla dantesca, satânica, impossível1,uma cidade bíblica fulminada pela maldição tremenda dos profetas. E quando tiros dela partem, de todos os pontos, irradiando para todos os pontos da linha amplíssima do cerco, a fantasia apenas divisa ali dentro uma legião invisível e intangível de demônios2. O arraial era justamente o que não havia (e também o que deixou de haver). Ausência é elemento predominante na composição da tristeza. A morada do camaleão não era tão distante dali. Setas luminosas alardeavam a direção, para além dos montes, para próximo a uma larga vala onde um dia acamparam bigodes frondosos em tendas militares, para em cima de um tabuleiro cor de cobre, para junto a uma clareira de terra infértil. Silêncio. De estrada, caatinga, cidade interiorana, ruína histórica, fumaça, resíduo de massacre.

- Veja bem..., História não alimenta ninguém.

- Mas tem quem ainda haverá que engoli-la.

 

João Pederneiras permanece agachado após apanhar uma folhinha no chão. Nariz arabesco apontando para as páginas cor de creme do caderno. Cola branca não fixa folha de árvore seca em papel, mas um miniclipe de fundo de bolso anexa-a no cantinho superior, o lombo do clipe irrisório no que diz respeito ao lombo da folha. E, não bastasse, vira a página e imprime com lápis grafite as veias foliculares no verso. São dois lados: o real, ou verdadeiro, que definhará com o tempo, secará ainda mais, se tornará quebradiço, se decomporá e cairá por completo, excetuando-se talvez o fragmento aferrolhado entre o clipe e o papel; o outro é a reprodução carbonada, muito possivelmente mais duradoura – um documento, um relato de que a folha existiu.

 

EXCERTO 3

Se o homem não é santo, a água o é por ele. A santidade da água é facilmente provada num mergulho: um homem completamente submerso não faz mal a ninguém (uma benção por si só, não ferir), ou porque está demasiadamente relaxado para ter preocupações, ou porque, noutro cenário, estaria amarrado a uma corrente que, por conseguinte, está atracada a uma pedra; a lei dos fluidos sendo fiscalizada com seriedade, basta seguir o procedimento básico de somar as massas dos corpos (pedra+presunto) e tirar o quociente entre elas e o volume total; se a densidade for maior do que 1, não há o que fazer. Corpo em descendência. E se mal é algo que se faz a alguém/ e um homem não tem o que fazer,/ um homem que não tem o que fazernão faz mal a ninguém (benção dos céus!); silogicamente.

 

1 M. B., 1897

2 E. da C., 1897

 

 

Leia a segunda matéria de Inéditos: Cidade irresoluta, na voz de Lady Laet

 

SFbBox by casino froutakia