Ilustração por Karina Freitas

 

Pagou a edição com dinheirodo próprio bolso, 2000 exemplares, papel pólen soft 90g, capa 4 cores, miolo costurado, 448 páginas, ele mesmo escreveu a orelha, mas não teve coragem de assiná-la nem de inventar outro nome, não posso criar em mim alguém que poderia, por acidente, sobrepor-se a mim, talvez algum receio de que aquilo pudesse trazer mau agouro, foi isso, daí a crítica sem autor, vazia de homem e de si, recebeu a edição em casa, numa tarde de quarta-feira, chuviscava, algumas caixas ficaram pintalgadas de água, marcas que foram desaparecendo aos poucos, enquanto o escritor respirava, porque o medo da chuva o obrigara a ajudar na operação apressada de descarregá-las do caminhão-baú, pintas que deixaram a leve memória de um mínimo intumescimento na pele do papelão, quase imperceptível, recidiva que se impunha como possibilidade perpétua, sim, respirou de novo, riu da situação com refinado falso desgosto, o peito chiando de leve, então esticou os braços, cansado, avaliando o trabalho e os músculos desacostumados ao peso das letras que não fosse aquele cujas pontas dos dedos carregaram sem esforço por dez anos de escrita e reescrita diárias, é agora, disse para si, e passou incontáveis horas tirando os livros das caixas, sem descanso, não poderia descansar, nunca mais, tinha certeza disso, nunca mais, então foi dispondo com paciência os 2000 volumes nas prateleiras de madeira da biblioteca até então inabitada, estante inteiriça de jacarandá da bahia, feita sob encomenda, seguindo as rigorosas medidas que repassou ao marceneiro, peça que tomaria toda uma parede com exatidão premeditada, como sempre imaginara, e qual não foi seu espanto quando percebeu que sobraria um espaço vazio na última prateleira, como de fato sobrou, ele tremia com o desastre que se ia anunciando conforme os livros da última caixa se esgotavam, e eles se esgotaram, revirou o papelão que se amontoava, algum pacote perdido naquela barafunda de caixas vazias?, não, que nada, contou os volumes, imaginando um erro da gráfica, não, não, 2000, 2000 volumes, não podia acreditar naquilo, cerca de 30 centímetros vazios na estante, pegou a régua, 34 centímetros e 3 milímetros, 34,3 centímetros sem livro algum, vazios, vazios, trezentos e quarenta e três milímetros, 343, caramba, calculei com tanto cuidado, meu deus, alguma muito pequena diferença, multiplicada por 2000, deixara no alto do móvel aquele buraco, aquela fenda inexplicável, espaço vazado como o olho cego que, doravante, o espiaria ininterruptamente por todos os dias que lhe restassem, tempo que passou então a contar ansiosamente sem que ele mesmo o soubesse, pegou a calculadora, erro de 0,1715 mm por livro, os ineptos da editora, poxa, pedi com tanta insistência, frisando o absoluto rigor, absoluto, porque a literatura só vai sair do buraco assim, e agora isso, meu deus, quase dois décimos de milímetro por livro, caramba, ele balançava a cabeça como se o movimento ritmado daquele pêndulo natural pudesse fazer a lacuna desaparecer aos poucos a cada ciclo negativo de um balangar mais e mais inconformado, ele, que agora tinha uma biblioteca de 2000 exemplares, escritor que, não obstante o cômodo com todas as peças do mobiliário tão bem dispostas, haveria de suportar a observação continuada daquele rasgo impalpável no alto de sua estante, estrutura que abrangia toda a parede, a não ser pelo poço do buraco sem fundo de um espaço sem livros, ele, autor que, com 2000 volumes à sua disposição, jamais ousaria abrir um só deles, nem um, nem pela curiosidade de folhear aquelas páginas, nada, 2000 volumes finalmente intocados, 2000, tornou-se, pois, como um dia sonhara ser, o único e mais completo desconhecedor de sua própria obra, tão bem acomodada nas estantes de madeira, ou quase, não fosse aquele olho vazado do destino em vão, aquele olho vazado, aquele olho, olho vazado, vazado, vazado.

 

 

Outros Inéditos dessa edição:

Queridos dias difíceis

Casamento

 

 

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