Descortinando o véu do passado, flutuava a cortina queimada pela janela aberta daquela casa na primavera de 1986. Um ano marcado pelo fogo dos pneus queimados nas ruas de Santiago, oprimida pelo patrulhamento policial. Uma Santiago que vinha acordando com o tinir das panelas e dos relâmpagos do blecaute; com os comunicados em rede nacional, com fios elétricos despencando dos postes e faiscando no asfalto escuro. Logo, então, a escuridão completa, as luzes de um caminhão blindado e o grito - fica quieto aí seu merda - os disparos e a correria do terror, como castanholas de metal que trincavam as noites de feltro. Essas noites fúnebres, engalanadas de gritos, do incansável “Já vai cair”1, e de tantos, tantos comunicados de última hora sussurrados pelo eco radial do “Diario de Cooperativa”.
 
Naquele então, a casinha magricela era uma esquina de três andares com apenas uma escada vertebral que conduzia ao sótão. Daí se podia ver a cidade na penumbra, coroada pelo véu nebuloso da pólvora. Era um pombal, apenas um esquálido corre-mão para estender os lençóis, toalhas de mesa e cuecas que hasteavam nas mãos afetadas da bicha louca da frente. Em suas manhãs de janelas abertas, cantarolava o “Tengo miedo torero, tengo miedo que en la tarde tu risa flote”. O bairro inteiro sabia que o novo vizinho era assim, a noiva do quarteirão encantada com essa ruinosa construção. Uma borboletinha de sobrancelhas franzidas que chegou perguntando se alugavam esse escombro da esquina. Essa bambolina presa somente pelo arrivismo urbano de tempos melhores. Tantos anos fechada, tão cheia de ratos, almas penadas e morcegos que foram desalojados implacavelmente pela Louca, armada de espanador e vassoura, rasgando as teias de aranhas com sua energia de veadinho falsete entoando a Lucho Gatica2, tossindo o “Bésame mucho” nas nuvens de poeira e cacarecos que empilhava na calçada.
 
Só lhe faltava um noivo, fofocavam as velhas na calçada da frente, seguindo seus movimentos de beija-flor na janela. Mas é simpático, falavam, ouvindo essas líricas passadas de moda, seguindo com a cabeça o compasso dessa música do passado que acordava o quarteirão inteiro. Essa música afetada e pegajosa que de manhã tirava da cama os maridos que tinham virado a noite, os filhos vagabundos que se enrolavam nos lençóis, os estudantes preguiçosos que não queriam ir à escola. A voz estridente de Cecilia3 cantando “Aleluia”, essa cantante da velha guarda era um toque para acordar, um canto de galos ao amanhecer, um alarido musical que a Doida aumentava o volume ao máximo, como se quisesse compartilhar com o mundo inteiro a letra brega que desgrudava do sono todos os vizinhos com aquele “Y...y tu maano to-o-o-mará la mía –a-a-a”. 
 
Assim, a Louca da frente, em pouco tempo, fez parte da zoologia social dessa cafonice santiaguina que coçava as pulgas entre o desemprego e duzentas gramas de açúcar que pediam fiado no armazém. Um boteco de bairro, epicentro das fofocas e comentários sobre a situação política do país: o saldo das últimas manifestações de rua, as declarações da oposição, as ameaças do Ditador, as convocatórias para setembro. Falavam que agora sim, que não passa deste ano, que 1986 era o ano. Que vamos todos para a rua, para o parque, para o cemitério, com sal e limões para resistir às bombas lacrimogêneas e tantos, tantos comunicados da imprensa vociferados pelo radio permanentemente.
 
COOPERATIVA ESTÁ CHAMANDO
MANOLA ROBLES INFORMA
 
Mas a Louca não estava preocupada com a contingência política. Só sentia medo ao escutar o radio que anunciava apenas más notícias. Essa emissora que se ouvia por todo lugar, com canções de protesto e esse chamado de notícias de emergência mantinham a população com a alma por um fio.
 
Ela preferia sintonizar os programas com músicas do passado: “Ao compasso do coração”, “Para aqueles que um dia foram brotinhos”. “Noites no subúrbio”. E assim passava tardes inteiras bordando essas enormes toalhas de mesa para alguma velha aristocrata que lhe pagava bem o aracnídeo ofício de suas mãos.
 
Aquela casa primaveral era seu aconchego. Talvez a única coisa amada, o único espaço próprio que a Louca da frente teve em toda sua vida. Por isso esse capricho em decorar seus muros como torta nupcial, enfeitando a beirada do telhado com pássaros, leques, trepadeiras e essas mantas de Manila que penduravam do piano invisível. Essas franjas, rendas e misturas de tule que embrulhavam as caixas utilizadas como mobília. Essas caixas tão pesadas que aquele moço que conheceu no armazém lhe pediu que guardasse, aquele garoto tão lindo que lhe implorou esse favor, dizendo que eram somente livros, só literatura proibida, disse com essa boca de açucena molhada. Com esse tom de voz tão másculo não pode negar-se e o eco dessa boca continuou ressoando na sua cabecinha de pássara oxigenada. Pois é, para que averiguar mais, ele falou que se chamava Carlos, não lembro do quê, que estudava não sei o quê, em não sei qual universidade e lhe mostrou a carteira de identidade tão rápido que ela nem pôde olhar direito, cativa pelo tom violáceo daqueles olhos. 
 
Ele deixou as três primeiras caixas no corredor, mas ela insistiu em que ali incomodavam, pediu que as colocasse no quarto para usá-las como criado mudo e ter onde colocar o radio. Se não for muito incômodo porque o radio é minha única companhia, disse ruborizada com cara de cordeira abandonada, olhando as gotas de suor que lhe enfeitavam a testa. As restantes, as distribuiu no espaço vazio da sua imaginação, como se mobiliasse um set cinematográfico, dizendo: Por aqui, Carlos, frente à janela. Não Carlos, não tão juntas porque parecem féretros. Mais ao centro, Carlos, como mesinhas de canto. Em pé não, Carlos, ficam melhor deitadas ou de lado para separar os ambientes. Mais pra cima Carlos, mais à direita, desculpa, quis dizer à esquerda. Você já está cansado? Descansemos um momento. Você quer um café ? Assim, como um zangão zumbando, ia e vinha pela casa envolvido em seu echarpe de plumas falando: Sim, Carlos. Não, Carlos. Talvez, Carlos. Quem sabe, Carlos. Como se a repetição do nome bordasse suas letras no ar arrulhado pelo eco de sua proximidade. Como se o pedal dessa língua afeminada se obstinasse em nomeá-lo, chamando-o, lambendo-o, degustando essas sílabas, mastigando esse nome, enchendo-se inteira com esse Carlos tão profundo, um nome tão amplo como para tornar-se um suspiro, agasalhada entre o C e o A desse C-arlos que iluminava com sua presença a c-asa toda.
 
Em todo esse tempo foram chegando caixas e mais caixas, cada vez mais pesadas, mas que Carlos carregava com sua musculatura viril. Enquanto a Louca inventava novos móveis para a decoração de fronhas e almofadas que ocultavam o secreto dos sarcófagos. Depois vieram as reuniões à meia noite, ao amanhecer, quando o bairro era uma orquestra de roncos e peidos que trovejavam a Marselhesa do sono a perna solta.
 
Em pleno aguaceiro, encharcados, chegavam esses amigos de Carlos para se reunirem no sótão. E um deles ficava na esquina, de bobeira, cuidando a rua. Carlos tinha pedido licença, com esses enormes cílios dos seus olhos de lince a meio fechar. São colegas da universidade e não tem onde estudar e tua casa e teu coração são tão grandes. Cómo negar o pedido se, quando se aproxima, fica encharcada de suor. Além do mais, os garotos que conseguiu ver eram jovens educados e belos. Passavam por amigos mesmo, pensava ela servindo café enquanto retocava o brilho dos seus lábios com a ponta da língua, cantarolando baladas de amor que tocavam no radio: “Tu me acostumbraste y por eso me pregunto”e todas essas frases frívolas que desconcentravam a estratégia pensante dos garotos. Nesse instante, lhe cortavam a inspiração e trocavam a sintonia do radio que transmitia esse horror de notícias. 
 
COOPERATIVA ESTÁ CHAMANDO: VIOLENTOS INCIDENTES E CONFRONTOS COM A POLICIA SE REGISTRAM NESSE MOMENTO NA ALAMEDA BERNARDO O´HIGGINS4.
 
No decorrer do cálido ar de agosto a casa estava um brinco. Uma cenografia da Pergola de las Flores5 improvisada com desperdícios e cacarecos hollywoodianos. Um palácio oriental, com um céu de toldos de sedas e manequins velhos, mas remoçados, como anjos do apocalipse ou centuriões guardiões dessa fantasia de bichinha tulipa. As caixas e caixotes tinham se convertido em confortáveis tronos, poltronas e divãs onde as pouquíssimas amigas bichas que visitavam a casa esticavam seus ossos. Um reduzido grupo de “loucas” que vinham tomar chá e iam embora antes de que chegassem “os homens da senhora”, falavam brincando, insistindo em conhecer esse arsenal de músculos admiradores da dona de casa. Mas ela, nem um pouco boba, recolhia as xícaras, tirava as migalhas da toalha e as acompanhava até a porta, dizendo que os meninos não queriam conhecer mais veadinhos. 
 
Assim, as reuniões e o desfile de homens pela casa enfeitada foram cada vez mais insistentes, cada dia mais aflitos subindo e descendo a desfiada escada que ameaçava desabar sob os passos firmes daqueles machos. As vezes nem mesmo Carlos podia subir ao sótão e a distraía para que não visse alguns clandestinos visitantes. Nem ele próprio podia participar dessas reuniões e lhe fechava o passo quando ela, amavelmente curiosa, oferecia café. Nossa, devem estar morrendo de frio lá em cima, falava olhando o rosto insubornável de Carlos. Além do mais, por que não posso subir se esta é minha casa. Então Carlos baixava a guarda e segurando-a pelos braços, lhe cravava aquele olhar de falcão em sua inocência de pomba. São coisas de homens, você sabe que eles não gostam de serem incomodados quando estão estudando. Tem um exame importante, já vão terminar. Olha, é melhor sentarmos, conversemos um pouco.
Carlos era tão bom, tão doce, tão amável. E ela tão apaixonada, tão cativa, tão sonâmbula por todas as longas noites que passava falando com ele até acabarem as reuniões. Longas horas de silêncio espreitando o cansaço de suas pernas esquecidas no cetim rosa das almofadas. Um silêncio de veludo roçava sua face azulada, sem barbear. Um silêncio espesso, cabeceando de cansaço prestes a derrubá-lo. Um silêncio adormecido de plumas, pesando como chumbo em sua cabeça, e ela atenta, ela feita um algodão, com toda delicadeza, ajeitava um travesseiro de espuma para acomodá-lo. Então essa maciez, essa carícia da delicada luva bichinha tentou aproximar-se ao rosto com a intenção de tocá-lo. Então surge o sobressalto, o arrepio desse tato elétrico que o acordou, levantando-se de um pulo e procurando alguma coisa urgente no costado do casaco, perguntando, o que houve? O que aconteceu? Nada, você dormiu, quer um cobertor? Quero, sim. Ainda não acabaram? Não me deixe dormir, me fale de sua vida, de suas coisas. Tem mais café?
 
Assim, separados por bastidores de fumaça, naquele fumar e fumar sugando a vigília, ela tricotava a espera, alinhavava traços de memória, pequenas lembranças fugazes no tom afeminado de sua voz. Retalhos de uma errância prostibular por ruelas sem nome, por ruas sujas arrastando sua entorpecida “Vereda tropical”. Andando ao som da viadagem, no vaivém da noite e da ereção de algum bêbado, companheiro de sua dança, sustento do seu destino por algumas horas, por algumas moedas, compartilhando esse frio bastardo no gemido de uma transa quente. Da esfregação vadia que cobra da vida lixando com o sexo o azar. Depois, apenas uma cueca engomada, uma meia esquecida, uma garrafa vazia, sem mensagem , sem rumo, nem ilha, nem tesouro, nem mapa onde ancorar seu coração de andorinha. Seu encrespado coração de menino-colibri, órfão de mãe desde criança. Seu nervoso coração de esquilinho assustado com o grito paterno, com a chicotada em suas nádegas marcadas pelo cinto reformador. Ele falava que tinha que me fazer homem, que por isso me batia. Que não queria que o envergonhasse, muito menos brigar com seus amigos do sindicato que lhe gritavam que eu tinha saído falhado. Justo ele, tão macho, tão malandro com as mulheres, ele que tinha tanta ginga com as putas, tão bêbado aquela vez manuseando-me. Tão ardente seu corpo de elefante em cima do meu, espetando-me, sufocando-me na penumbra daquele quarto, desesperado batendo asas como pintinho espetado, como filhote de passarinho despenado, sem corpo, nem coragem para resistir o impacto de seu nervo duro enraizando-me. E logo mais, o mesmo dissabor, a mesma meia esquecida, o mesmo lençol pingado de pétalas vermelhas, a mesma ardência, a mesma garrafa vazia com seu S.O.S. naufragando na água cor de rosa da pia.

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