inedito varal1

I

Sei que um dia vou ter saudades dessa luz
e das cores desse subúrbio,
até mesmo dessa mosca
que faz cócegas em minha perna,
e dessa modorra de depois do almoço,
e desse suor que roreja a minha testa,
e desse céu tão azul que refresca,
e desse silêncio convidando-me à sesta,
e desses insidiosos insetos alienígenas,
de um verde metálico ou amarelo-cromo,
que vêm dar na varanda não sei como,
náufragos de uma realidade paralela,
cujos nomes científicos ignoro
para poder cultivar mais quimeras,
e dessas borboletas de um pálido ocre
que esvoaçam no terreno baldio
como fragmentos de um papiro antigo
despedaçado por um ocultista desiludido
após décadas de estudos infrutíferos,
e desse papagaio analfafônico
que só fala seu próprio dialeto
a não ser pra fazer fiu-fiu
a quem passa sem o menor critério
ou arremedar um galo por puro desafio,
se bem que agora eles sejam anarquistas,
os galos, ou quem sabe cyberpunks,
e cantem na hora que bem entendem
num ato do mais puro psicodelismo,
e desse gavião anacrônico
que só poderia ser só
em oposição à prodigalidade dos pombos
e dos pardais pardacentos, rapaces,
e desses panos dependurados das janelas,
esses tapetes voadores inválidos, memoribundos,
saudosos das suas arábicas peripécias,
esses lençóis balançando voláteis como véus
que sobreviveram às dançarinas,
odaliscas de remotas épocas.

II

Sei que um dia terei saudades dessas duas
irmãzinhas, uma morena e uma ruiva,
que brincam no pátio do prédio em frente
como se estivessem na privacidade
de um quintal dos fundos
de uma casa de antigamente,
e desses meninos descamisados
que jogam bola no meio da rua
sem saber que desafiam o tempo
e tripudiam da crise mundial
- não só dos esparsos carros
que têm que desviar das marcações -,
e desses outros que empinam pipa
e jogam bola de gude,
que alguns ainda chamam de chimbra,
todos ignorantes de que compõem
uma espécie em extinção,
e da voz possante do vendedor ambulante,
Ôi, ói o milhôôô, pamonha, canjica, mungunzá olhaêêê,
que ecoa por dez ou doze quadras,
de modo que já é ansiosamente esperado
por pessoas de pé nas calçadas
quando aponta com o carrinho de mão
contendo as panelas perfumadas,
e desse caboclo de lança anônimo,
cheio dos seus belengodengos,
que passa fazendo clanclanclanc
e de vez em quando dá um apitaço,
sempre brandindo o seu projétil
tão enfeitado de fitas coloridas
que é como se de longe avisasse
que vem em missão de paz e fanfarra
a despeito do ar carrancudo
e da empáfia dos óculos escuros,
e desse vizinho empertigado
ostentando a barriga túrgida,
grave como se grávido
de seu sonho de feminilidade,
e desse rapaz com síndrome de Down
que toda semana torce desde criancinha
para o time que lidera o campeonato,
e desse beberrão com ares de Jesus Cristo
arrastando solenemente as sandálias,
cumprimentando os transeuntes
como se distribuísse bênçãos,
e desse velho que tem um carro vermelho
e os cabelos brancos sempre tão bem penteados
que receio que use um espelho,
e dessas janelas indiscretas,
as mesmas dos panos dependurados,
que à noite se acenderão manteigosas
e às vezes nos presenteiam
com alguma silhueta sinuosa
da qual se pode dizer pelo peso
e pela liberdade de movimento dos seios
que pertence a uma mulher nua em pêlo,
ou quem sabe ao fantasma de uma daquelas
odaliscas de remotas épocas
às quais os lençóis sobreviveram.

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