emilia

Levamos Lewis Carroll à praia. Seria a nossa leitura do verão, mas calculamos mal. Ou nos empolgamos demais. Alice acabou depressa e ficamos no vácuo. Saímos à rua, atrás de uma banquinha que nos salvasse, e encontramos uma feira de livros num shopping de descontos. Ali achei uma caixa com oito títulos de Monteiro Lobato. Edições bem ilustradas, bonitas, por 60 reais. Comprei.

Até então, nem eu nem minha filha havíamos lido Lobato — me refiro à sua obra para crianças. Nós o conhecíamos da tevê. Eu assisti à série dos anos 70, e ela, ao desenho animado. Aquela noite, portanto, marcaria nossa primeira passagem pelo verdadeiro Sítio do Picapau Amarelo.

Começamos por Histórias diversas, lançado na segunda metade da década de 1940. O livro parecia leve, inteligente, divertido. De pronto, o carisma de Emília conquistou minha filha, e a mim também. A boneca já entrava em campo com o jogo ganho, e a prosa fluía. No entanto, logo me peguei aborrecido com o uso excessivo da palavra “negra”, ou da péssima expressão “boa negra”, com que o narrador teima em chamar Nastácia. E me vi tentado a “editar” o texto enquanto o lia para minha filha, preferindo me referir àquela personagem sempre pelo nome. Sim, me senti estranho ao fazer isso, mas aquela necessidade de “corrigir” um texto considerado clássico e genial, em vez de parecer uma arbitrariedade minha, uma afronta a um grande escritor, me surgia obrigatória, inescapável.

Mais adiante, uma história específica, no mesmo livro, me causou espanto. Eu lia Lobato inegavelmente influenciado por sua fama de racista, mas encontrei ali um conto chamado “A violeta orgulhosa”. Nele, uma violeta branca nasce no canteiro de violetas roxas de Emília. Essa flor passa a se proclamar superior às suas irmãs e é prontamente repreendida pela boneca e pelo Visconde de Sabugosa. Não demorei a lembrar que estávamos em 1945, ou 46. Com Hitler vencido, a eugenia era algo cada vez mais malvisto. Pensei: seria Lobato capaz de defender a igualdade das raças somente por uma questão “comercial”, de sobrevivência? E aí me veio à lembrança uma carta dele ao escritor Gastão Cruls, em 1927, quando Lobato vivia em Nova York, e que dava conta de suas tentativas de lançar por lá o romance eugenista O choque das raças:

“Um escândalo literário equivale no mínimo a 2.000.000 dólares (...) Esse ovo de escândalo foi recusado por cinco editores conservadores e amigos de obras bem comportadas, mas acaba de encher de entusiasmo um editor judeu que quer que eu o refaça e ponha mais matéria de exasperação. Penso como ele e estou com ideias de enxertar um capítulo no qual conte a guerra donde resultou a conquista pelos Estados Unidos do México e toda essa infecção spanish da América Central. O meu judeu acha que com isto até uma proibição policial obteremos — o que vale um milhão de dólares. Um livro proibido aqui sai na Inglaterra e entra bootlegged com o whisky e outras implicâncias dos puritanos.”

Histórias diversas fez sucesso com minha filha. Ela gostou especialmente do episódio com o centauro Meioameio. Mas, naquela leitura, havia outra coisa que a encantava. Um ponto em comum com o trabalho de Lewis Carroll (de quem Lobato foi tradutor), e que acabáramos de ler. Minha filha antecipava as perguntas que Alice, curiosa, fazia aos habitantes do País das Maravilhas, da mesma forma que antecipava as perguntas de Emília, Pedrinho ou Narizinho a Dona Benta. No sítio, como em Wonderland, essa identificação entre personagens e leitores era plena, o que enchia a menina de satisfação. Ela se sentia “parte da família”.

Passamos, pois, ao livro Fábulas. Nele, Dona Benta reconta às crianças, reunidas na sala, os clássicos de Esopo e La Fontaine. O esquema narrativo de Lobato é ótimo, extremamente eficaz: ao fim das histórias, crianças e bonecos comentam o que ouviram, muitas vezes discordando da moral convencional que encerra cada conto. O formato estimula o debate e a consciência crítica, e parece ensinar aos pequenos o saudável hábito de duvidar das verdades estabelecidas, da infalibilidade dos panteões e até mesmo do que se costuma chamar de sabedoria. Mas nesse mesmo livro, infelizmente, a quantidade de trechos que me recusei a ler para minha filha, em voz alta, aumentou.

As falas de Emília eram as que eu mais “censurava”. Por exemplo: “(...) as fábulas são indiretas para um milhão de pessoas. Quando ouço uma, vou logo dando nome aos bois: este mono é o Tio Barnabé”. Mas Dona Benta, culta, independente, literata, também sofreu tesouradas: “A cara de Tia Nastácia está me sugerindo uma fábula (...) Um galo estava ciscando no terreiro. De repente encontrou uma pérola. ‘Que pena!’, exclamou. ‘Antes fosse um grão de milho’”.

Insisti na leitura, e chegamos às Histórias de Tia Nastácia. As crianças decidem trazer a “boa negra” da cozinha à sala, onde pedem que lhes conte algumas “histórias do povo”. E o pesadelo se aprofunda. Não por causa dos contos populares, que são ótimos e logo ganham o amor de minha filha. Mas devido aos comentários dos meninos, de Emília e também de Dona Benta, que atacam as narrativas e a “incultura” da cozinheira com tamanho desprezo e preconceito que desisti desses personagens. Nunca mais vou lê-los, não gosto deles, pois me contaminaram com a intolerância de seu próprio criador. “Censurei” sem dó metade da obra, e não apenas os trechos em que Emília ameaça cortar os “beiços” de Nastácia. Amontoo aqui uns fragmentos aleatórios:

“Essas histórias do povo são muito bobas (...) Por isso é que não sou ‘democrática’! Acho o povo muito idiota”. “Eu, francamente, passo essas tais histórias populares. Gosto é das de Andersen, das do autor de Peter Pan e das do tal Carroll. Sendo coisas do povo, eu passo”. “Que é o povo? São essas pobres tias velhas, como Nastácia, sem cultura nenhuma, que nem ler sabem e que outra coisa não fazem senão ouvir histórias de outras criaturas igualmente ignorantes e passá-las para outros ouvidos, mais adulteradas ainda”. “Só aturo essas histórias como estudos da ignorância e da burrice do povo. (...) Parecem-me muito grosseiras e bárbaras, coisa mesmo de negra beiçuda como Tia Nastácia”. “Tudo bobagens de negra velha”. “O que vale é que você mesmo confessa não ter culpa das idiotices da história, senão eu cortava um pedaço desse beiço”. “O povo, coitado, não tem delicadeza, não tem finuras, não tem arte. É grosseiro, tosco em tudo que faz”. “Bem se vê que quem as inventa é gente do povo, de pouca imaginação e cultura”. “Bem se vê que é preta e beiçuda, não tem a menor filosofia”. “Que se há de esperar de nossa pobre gente roceira?” “Ora, menina, você está a pedir muito aos nossos pobres índios”. “Mas que havemos de esperar dos pobres negros do Congo?” “Histórias do povo, não quero mais. De hoje em diante, só as assinadas pelos grandes escritores. Essas é que são as artísticas”. E quando Pedrinho diz que determinado doce é de lamber os beiços, Emília o repreende: “Beiço é de boi. Gente tem lábios”. Isso tudo dito diante de Nastácia.

Ora, são histórias “para crianças”, e quem quiser que as leia para as suas. Considerei a leitura dolorosa, doutrinária. Não falo como especialista, não o sou; sou só um leitor. Mas censurei Monteiro Lobato. Editei oralmente os seus textos. E não acho que ele deva ser “reescrito”. Não devemos mexer no que ele preparou para suas crianças ideais. Melhor deixá-lo intacto, envelhecendo mal. Por mim, morrerá sozinho.

Posso até vê-lo daqui a alguns anos, um fantasma branquíssimo numa penteadeira antiga. Eternamente preso a um último delírio de erudição eurocêntrica, admirando-se no espelho de um mundo acabado, ele diz: “A Marquesa de Rabicó c’est moi!”.

Ou talvez eu esteja apenas sendo otimista.

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