
As demissões já tinham ocorrido quando cheguei no estágio. Foram 12 no total. Pensei: “Alguns poderiam dizer que não foi tanto se compararmos a redações que demitem 30 ou 40 de uma vez”. Mas era gente que estava no jornal há dez, vinte anos.
Olhei meus amigos, todos com cara fúnebre. Ninguém próximo havia sido demitido, nem mesmo os colegas de editoria. Os que se foram eram aqueles que só conhecíamos pelas piadas em voz alta, pelas histórias contadas por terceiros e por um “E aí? Tudo bom?” ou um reles “Bom dia”. Havia alguma simpatia.
Entrei na redação no fim da manhã. Quando passei pela sala-aquário de Juraci, Jura, o diretor de redação, o vi sentado com seu adjunto e a editora executiva. Não consegui ouvir nada. Soube depois que, dos 12 demitidos, ele recebeu cinco em sua sala. Fez questão de, ele mesmo, dispensar os mais antigos.
Sentado em cima de uma bancada perto da escada, no fundo da redação, vi grupos de três ou quatro pessoas se compondo e decompondo com espontaneidade inconsciente. Semblantes sérios.
Os que brincavam eram minoria absoluta, mas divertiam. “Ei, tu que só fala de iPad”, disse o editor-assistente de Cotidiano para o setorista de Tecnologia, “Tão te chamando lá no lounge do Jura”. A gargalhada foi geral.
Quando dei por mim, eram duas e meia da tarde. Acabávamos de voltar da reunião de pauta. Os três chefes da redação – diretor, diretor adjunto e editora executiva, todos jornalistas – estavam perto da entrada do lugar, em um espaço visível para todos. Os jornalistas, diagramadores, fotógrafos, contínuos e estagiários se aproximaram. Assembleia improvisada.
“Bem, é óbvio que estamos aqui para falar sobre o que aconteceu hoje”, começou o velho Jura. “Foi com grande dor que demitimos hoje profissionais exemplares. Muitos deles entraram aqui como estagiários há dez, quinze anos. Não é fácil, mas estamos vivendo um momento de mudanças.”
“Vocês sabem que a internet vem, há alguns anos, fazendo com que os jornais repensem o modelo de negócio”, emendou a mulher. “As pessoas hoje têm mais acesso à informação e hoje nossos leitores, de acordo com a pesquisa, são pessoas mais velhas. Em geral, aposentados”.
A pesquisa a que ela se referia era um estudo de mercado encomendado pelo jornal. O resultado era repassado aos funcionários da empresa em conta-gotas. Naquela época, o público idoso era uma das pouquíssimas conclusões conhecidas.
“O número de leitores só faz cair”, prosseguiu ela. “E não há renovação do público. Por isso que nós tivemos que cortar a própria carne: para reduzir custos.”
“E, só para pontuar, diante da concorrência com a informação gratuita que a internet proporciona, não existe possibilidade de fazer um reajuste decente nas assinaturas. Nem nos anúncios, que diminuem dia a dia. É duro, mas é a realidade. Vejam, do jeito que anda, se durarmos dez anos, duraremos muito!”, declarou o diretor adjunto.
Em algum ponto do fundo da redação completamente silenciosa começou a tocar um celular. Era o começo inconfundível de Bad romance, hit de Lady Gaga. De tão alta, parecia que eu estava escutando a música no computador ao lado.
“Quero que vocês saibam”, continuou Jura. Olhei para o lado e contemplei o rosto funéreo das pessoas. “Oh-oh-oh-oh-oooh-oooooh-oooh caught in a bad romaaance”. Segurei o riso. Lady Gaga continuou como backing vocal do diretor. Todos pareciam desconhecer o barulho.
“Quero que vocês saibam que não foi fácil. Estamos fazendo de tudo para poder nos manter de pé. Muitos jornais já fecharam. Vejam o Jornal do Brasil! Hoje só existe versão on-line, porque não houve como dar conta.”
Neste ponto, editora executiva tomou a palavra e Lady Gaga pulou para o refrão.
“Estamos aqui também para anunciar um novo produto que fará parte do jornal quando virar o mês. Ele se chama PLUS e vai sair aos domingos. No sentido de “mais”, mesmo. Vamos colocar apenas coisas boas, parar de falar de mortes, problemas e afins”.
Continuou o diretor adjunto (refrão repetiu):
“A ideia é que seja um produto leve. Por exemplo, uma pauta sobre o estilo de se vestir e de se comportar de Cristiano Ronaldo. É uma pauta interessantíssima para esse novo produto”.
Não contive uma cara de nojo diante do que acabara de ouvir, mas abaixei a cabeça rapidamente a tempo de esconder. A cantora voltou para o início (“Oh-oh-oh-oh-oooh-oooooh-oooh caught in a bad romaaance”), mas parou abruptamente assim que o verso terminou. A dona do celular – colunista social – fora desligar o aparelho.
“Asseguramos que, com a demissão deles, reduzimos os gastos de maneira satisfatória, o que nos permite prometer que, este ano, não deve ocorrer mais nada desse tipo”, garantiu Jura. “Perguntas?”
Setorista de cinema: “Como vai funcionar esse PLUS? É dominical, então vamos ter que escrever nossas matérias de domingo e também uma matéria para ele?”
“Querida, é o seguinte”, respondeu o adjunto, “nós enxugaremos os cadernos de domingo. Eles serão menos trabalhados. As matérias especiais que normalmente sairiam nele agora sairão no PLUS.”
Olhei para os lados. Todos atordoados, a ficha ainda não tinha caído.
Um designer perguntou: “O PLUS vai contribuir para a redução de custos?”
Jura tomou a palavra. “Pode apostar que sim, filho. Com ele, concentramos os bons trabalhos em um único lugar e ainda economizamos papel e tinta. Ele vai ter a aparência de uma revista, mas com formato standard. Não será necessário ter reportagens de todas as editorias. E vocês poderão propor matérias fora dos setores e editorias de vocês.”
“E, também, tá todo mundo cansado de ver desgraça. O PLUS vai dar mais leveza à pauta do jornal”, finalizou a editora executiva.
Não houve mais perguntas. Após os agradecimentos da direção, a assembleia dispersou lentamente em pequenos grupos de discussão sobre as novidades.
Ao lembrar a dança dos acontecimentos, dos discursos e dos corpos formando e dissolvendo grupos, me vem a imagem dos ritos que antecedem o enterro. As músicas cantadas pelos amigos, talvez. O padre ainda não começara a rezar a missa, imagino. Porque ele só começa quando o funeral está próximo do fim. E este vai levar alguns anos para acontecer.