ineditos junho
 
Prólogo do livro A Amiga Genial, que será lançado em junho 
pela Biblioteca Azul/Globo Livros
 
1.
Hoje de manhã Rino me ligou, pensei que ele quisesse mais dinheiro e me preparei para negar. No entanto o motivo da chamada era outro: a mãe dele tinha desaparecido.
“Desde quando?”
“Faz duas semanas.”
“E só agora você me liga?”
O tom deve ter parecido hostil, embora eu não estivesse chateada ou indignada, era apenas uma ponta de sarcasmo. Ele tentou contestar, mas de modo confuso, embaraçado, misturando o dialetocom o italiano. Disse que tinha certeza de que a mãe estava passeando em Nápoles, como de costume.
“Inclusive à noite?”
“Você sabe como ela é.”
“Eu sei, mas você acha normal duas semanas de ausência?”
“Acho. Faz muito tempo que você não a vê, ela deu uma piorada: nunca dorme, entra, sai, faz o que bem entende.”
O fato é que agora ele estava preocupado. Perguntara a todo mundo, passara por todos os hospitais, estivera até na polícia. Nada, a mãe não estava em lugar nenhum. Que bom filho: um homem grande, de seus quarenta anos, que nunca trabalhou na vida, apenas transações e gastanças. Imaginei com quanto cuidado ele fez suas buscas. Nenhum. Não tinha cabeça, e em seu coração só havia ele.
“Por acaso ela está com você?”, indagou de repente.
Sua mãe? Aqui em Turim? Ele bem sabia como iam as coisas, perguntava só por perguntar. Ele, sim, é que era um viajante, viera à minha casa pelo menos umas dez vezes, e sem ser convidado.
Quanto à mãe dele, eu a teria acolhido de bom grado: ela nunca saíra de Nápoles na vida. Respondi:
“Não, ela não está comigo.”
“Tem certeza?”
“Rino, por favor: já lhe disse que não está.”
“Mas para onde ela foi?”
Então começou a chorar, e eu o deixei fazer sua cena de desespero, soluços que começavam fingidos e prosseguiam verdadeiros.
Quando terminou, disse a ele:
“Por favor, pelo menos uma vez, comporte-se como ela gostaria: não a procure.”
“O que você disse?”
“Disse isso mesmo. É inútil. Aprenda a viver por sua própria conta, e também não me procure.”
Desliguei.
 
2.
A mãe de Rino se chama Raffaella Cerullo, mas todos sempre a chamaram de Lina. Eu, não, nunca usei nem o primeiro nem o segundo nome. Há quase sessenta anos, para mim ela é Lila. Se a chamasse de Lina ou de Raffaella, assim, de repente, ela acharia que nossa amizade acabou.
Faz pelo menos trinta anos que ela me diz que quer sumir sem deixar rastro, e só eu sei o que isso quer dizer. Nunca teve em mente uma fuga, uma mudança de identidade, o sonho de refazer a vida noutro lugar. E jamais pensou em suicídio, incomodada com a ideia de que Rino tivesse de lidar com seu corpo, cuidar dele. Seu objetivo sempre foi outro: queria volatilizar-se, queria dissipar-se em cada célula, e que ninguém encontrasse o menor vestígio seu. E, como a conheço bem – ou pelo menos acho que conheço –, tenho certeza de que encontrou o meio de não deixar sequer um fio de cabelo neste mundo, em lugar nenhum.
 
3.
Os dias passaram. Chequei o correio eletrônico, a correspondência em papel, mas sem esperança. Escrevi muitas vezes a ela; ela quase nunca respondeu: este sempre foi o costume. Preferia o telefone ou as longas noites de conversa quando eu ia a Nápoles.
Abri minhas gavetas, as caixas de metal onde guardava coisas de todo tipo. Poucas. Tinha jogado fora muita coisa, especialmente o que dizia respeito a ela, e ela sabia disso. Descobri que não tenho nada dela, nem uma imagem, um bilhete, uma lembrancinha. Eu mesma fiquei surpresa. Será possível que em todos esses anos ela não me tenha deixado nada de seu ou, pior, que eu não tenha querido guardar nada dela? É possível.
Desta vez fui eu que liguei para Rino, e o fiz a contragosto. Não respondia nem no fixo, nem no celular. À noite ele me ligou, sem pressa. A voz era de quem buscava estimular um sentimento de pena.
“Vi que você ligou. Tem notícias?”
“Não. E você?”
“Nenhuma.”
Me disse coisas sem sentido. Queria ir à tv, um programa que trata de gente desaparecida, fazer um apelo, pedir perdão à mãe por tudo, implorar que voltasse.
Fiquei ouvindo pacientemente e então perguntei:
“Você olhou no armário dela?”
“Para quê?”
Naturalmente nunca lhe ocorrera a coisa mais óbvia.
“Vá lá ver.”
Ele foi e se deu conta de que não havia nada lá, nenhuma das roupas da mãe, nem de verão nem de inverno, apenas velhos cabides. Depois o mandei procurar pela casa. Os sapatos tinham sumido. Sumiram os poucos livros. Sumiram todas as fotos, e também os filmes caseiros. Sumiram o computador e até os velhos disquetes que se usavam antigamente, tudo, cada detalhe de sua vida de bruxa eletrônica, que começara a exercitar-se com calculadoras já no fim dos anos 1960, na época das fichas perfuradas. Rino estava espantado. Então eu disse a ele:
“Tome o tempo que quiser, mas depois ligue e me diga se achou alguma coisa dela, nem que seja um alfinete.”
Ele me ligou no dia seguinte, muito agitado.
“Não encontrei nada.”
“Nada de nada?”
“Não. Recortou todas as fotos em que aparecíamos juntos, até as de quando eu era menino.”
“Você procurou bem?”
“A casa toda.”
“Inclusive no porão?”
“A casa toda, já disse. Até a caixa de documentos sumiu: certidões de nascimento velhas, contratos telefônicos, boletos. O que significa isso? Alguém roubou tudo? O que estão procurando? O que querem de minha mãe e de mim?”
Tratei de acalmá-lo, disse que ficasse tranquilo. Era pouco provável que alguém quisesse alguma coisa, especialmente dele.”
“Posso passar um tempo em sua casa?”
“Não.”
“Por favor, não estou conseguindo dormir.”
“Vire-se, Rino, não posso ajudar.”
Desliguei e, quando ele tornou a chamar, não atendi. Fui me sentar à escrivaninha.
Como sempre Lila exagerou, pensei.
Estava extrapolando o conceito de vestígio. Queria não só desaparecer, mas também apagar toda a vida que deixara para trás.
Fiquei muito irritada.
Vamos ver quem ganha desta vez, disse a mim mesma. Liguei o computador e comecei a escrever cada detalhe de nossa história, tudo o que me ficou na memória.

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