ineditos mesa

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Sentaram-se à mesa, às nove horas. A fome era grande, a comida era farta, mas se viam impelidos a adiar ao máximo a supressão desse lapso, a evitar ao máximo a saciedade, pois saciar a fome seria acusar o fracasso. Nenhum sabor agora cativaria o paladar, nenhum prazer possível na ingestão obrigatória. Os pratos ainda empilhados no aparador, utensílios ordenados, assados diversos inutilmente preservando seu calor, quatro braços pendendo ao lado dos corpos, seus dedos inertes apontando o chão. Era para ser um jantar, lamentavam os dois. Era para ser uma reunião íntima e gregária, ocasião para alardes e brindes, para se engajar em risos e banalidades, em infrutíferos debates embriagados. Era para ser um jantar, e não a mera satisfação de uma necessidade primária.

Ninguém apareceu, nenhum convidado, ninguém avisou nada. Já sem esperança de que batessem à porta, permaneceram os dois ali sentados sem dizer palavra, interrogando as paredes com olhos inquietos, interrogando os próprios sapatos. Por que tantos os desertavam? Quem os detinha ou impedia seus passos? Teria sido uma abstenção coletiva previamente arquitetada? O jantar era para os colegas dela, os colegas do hospital onde ela acabava de assumir um cargo alto, os colegas que ela encontrava todos os dias, com quem partilhava cafés pelos corredores, com quem discutia sem pressa os casos graves, com quem travava debates sóbrios sobre a reforma daquela instituição que já passara, ao menos no interior de suas salas, por tempos piores. Colegas de todas as horas, companheiros de lutas diárias, por que desapareciam, por que calavam agora?

Ninguém jamais diria, e no entanto era tão óbvio: julgavam a casa deles perigosa. É certo que as assembleias estavam proibidas, vedados todos os encontros de índole subversiva, mas podia um simples jantar ser enquadrado dessa forma? A esse ponto a vida estava proscrita, a casa interrompida, cancelada a amizade? Sim, porque se era isso o que os outros sentiam, toda aquela gente próxima, aquela gente íntima, se de fato julgavam a casa deles território minado, como podiam se privar de dizer qualquer coisa, de alertá-los sobre o risco que corriam? Calar, nesse caso, calar e se abster, calar e sumir, calar nesse caso não seria trair? Sem acusar, sem dizer palavra, permaneciam os dois ali sentados, abnegando a fome, abjurando aliados, e nunca havia sido tão sensível sua vulnerabilidade, nunca as janelas tão francas, nunca as paredes tão frágeis.

Essa noite não ficou registrada, nenhum dos dois se ergueria para buscar a câmera, nenhum dos dois se empenharia em lembrá-la. Por alguma razão, porém, a cena chega a mim em sua imagem quase estática, um milissegundo apreendido em meio à infinidade, meus pais prostrados diante da mesa, seus ombros curvados, a comida fumegante ainda intocada. Sei que dramatizo quando assim os vejo, sei que dou ao caso um peso exagerado, um peso que os relatos deles jamais comportaram. Mas acho que dramatizo esse peso porque posso senti-lo, porque de alguma maneira o entendo, ou creio entendê-lo. Conheço a frustração de um jantar fracassado. Conheço, talvez, a inquietude que bate quando não se pode ocupar o próprio espaço. Conheço, ainda que indiretamente, a sensação de casa tomada.

O que não conheço, o que não posso entender, é a dor de outros jantares cancelados nessa mesma noite, a dor de outras privações, de outras abnegações, de outros insistentes interrogatórios. Outros braços pendendo ao lado dos corpos, seus dedos mais inertes do que os dedos dos meus pais, apontando um chão muito mais próximo. Não consigo conceber a supressão do ser explorada ao máximo, a destruição sistemática desse lapso que é o ser, sua conversão em utensílio torturado. Não consigo imaginar, e por isso minhas palavras se fazem mais abstratas, a indizível circunstância em que calar não é trair, em que calar é resistir, a prova mais extrema de compromisso e amizade. Calar para salvar o outro: calar e aniquilar-se. Talvez estivessem distraídos nessa noite, meus pais, mas a pergunta não lhes escapava. Colegas de todas as horas, companheiros de lutas diárias, por que desapareciam, por que calavam agora?

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