Trecho inédito do livro Como se estivéssemos em um palimpsesto de putas, que será lançado pela Companhia das Letras
Era Lola.
João tinha acabado de se casar, entrar na firma. Brasília é uma de suas primeiras viagens a trabalho. Depois ele voltará muitas vezes. Algumas delas com Lola, a passeio. Emendando um fim de semana depois de uma estada a trabalho. Ou mesmo uma viagem exclusiva, com ela. Para que conheça a cidade, para que passe uns dias em Caldas Novas. Nas piscinas térmicas de Caldas Novas. Uma referência afetiva aos tempos de piscina olímpica, do nado sincronizado.
Se hospedam no Saint Paul.
Acho que Lola tentará lembrar dela atravessando o hall do Saint Paul, a avenida. Talvez passando, braço dado com João, em frente à mesma galeria, agora diferente um pouco, mas não muito. João viraria nessa hora o olhar para dentro da galeria como qualquer um que passe em frente a uma galeria pode virar o rosto para olhar o que tem dentro e depois seguir em frente, passeando, ela falando uma besteira qualquer, contando um caso qualquer, e ele sorrindo, fingindo que uma atenção. E ela não notaria nada.
E ela pode mesmo ter falado:
“Vamos sentar aqui e comer uma coisinha?”
E ele pode ter dito que não, que catariam um lugar melhor. Ou pode ter dito que sim, ela lá, a boca cheia com o bauru, falando, falando mais, olhando em volta, e ele lá, neutro, sorrindo de volta para ela, neutro, não lá, não naquele dia, lá, com Lola, mas lá em outro dia, no dia da sauna pobre típica, Lola sendo um nada que fala e para quem ele precisa sorrir de vez em quando.
Lola tentará lembrar.
Mas não sabe como foi, o que fazia e com que roupa estava, ao atravessar o hall dos faraós, e como estava João a seu lado, se estavam de mãos dadas como às vezes ficavam. E não lembra de fato se comeu algum bauru em um bar qualquer na entrada de uma galeria qualquer, com João ao lado, olhando para todos os cantos, menos para a cara dela, que era como ele sempre fazia.
E Lola fica com vergonha. Da fala boba dela, da risada, do bauru. Fica com vergonha de estar lá sem saber onde estava, como uma idiota.
Ela também tentará lembrar como estava, o que estava fazendo, na hora mesmo em que João se mete no cubículo disso que ele chama de sauna pobre típica.
Tinham se casado há pouquíssimo tempo, nesse dia.
No apartamento vazio, arrumado, Lola acha que as coisas estão boas afinal. O curso de corretagem uma ideia que ainda não tinha surgido. Mas mesmo assim.
Lola costuma tomar banho para esperar o telefonema de João. Não sabe por quê. Mas gosta de falar com ele, ele nas viagens dele, ela na cama, de banho tomado. E depois do telefonema, gosta de ficar lá, no escuro, o olho aberto, falando outra vez para ela mesma que as coisas estão boas afinal.
Deve ter sido assim.
É como acho que deve ter sido, para Lola, quando João fala com ela o que já havia falado comigo, num trailer, um ensaio. Não tenho certeza de que essa conversa com Lola tenha de fato havido. Acho que sim. Acho que pode ser que sequer seja uma conversa, como não o foi comigo. João apenas fala, Lola lá, como eu, antes, nós duas na função de orelha e de, deseja ele, concordâncias com a cabeça.
É em Lola que penso.
Em como ela fica, ou não fica, nessa vida que João considera ser dele por direito (e é) e que ele considera ser melhor do que muitas (e é) porque ele não se impede, não obedece regras, porque ele é um fodão.
Não é.
Nem ele nem os colegas do seu ex-trabalho com quem viaja.
Ou melhor, é.
Mas o grupo dos fodões inclui mais gente. Lola, por exemplo. Mas para saber disso, ele teria de ter olhado para o lado e nunca olhou.
E mais um problema. Devia ter escolhido. Não mentido para ele mesmo. E para Lola. Mas escolhido. Isso o que ele queria? Vivesse, então, o isso.
E mais um problema. Como tudo nessa vida, há uma a ida e há a volta.
E mais uma problema.
Tudo muda nessa vida.
João sai dos hotéis, com ou sem os colegas, e vai para os programas com as garotas de programa.
Aos poucos, o programa, por ser sempre o mesmo, muda.
E quando me conta, o próprio contar aos poucos também muda.
No fim, é esse o assunto daquilo que conta. Essa mudança.
A ida até as boates e puteiros, até as garotas de programa, começa aos poucos a não ser uma viagem para um mundo melhor, um raio de luz para outra realidade, tão mais legal. Só na cabeça dele ainda se mantém, e com dificuldade, a ideia de que é possível ir e ir e ir. E não voltar.
Ainda tenta.
Faz a cena de deixar a roupa no cabide de um hotel vagabundo, ele virando outro, um personagem dele mesmo, quando nu. De, na saída, se convencer de que o mundo não está lá, esperando por ele, igual. De a garota, nua, ser a entrada para outro mundo, e dele ser a decisão para que mundos aconteçam.
Peremptória.
Outra vez, a palavra. Muda o personagem.
João é que decide.
Tenta a peremptória. Nem sempre dá certo.
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