Trechos do Livro dos Começos, de Noemi Jaffe. Trata-se de um livro com curtos ensaios da escritora em cima da ideia de começo, do começar. Ironicamente, é esse o título que marca o desfecho da editora Cosac Naify.
Se estiver muito preocupado com o começo, esqueça. Vá fazer outra coisa e, quando menos esperar, ele aparecerá. Provavelmente cairá sobre sua cabeça quando você estiver guardando a louça ou se preparando para ir dormir. Ou você poderá encontrá-lo largado no chão, embaixo de algum móvel, esquecido ali pelas crianças ou pelo gato. Mas não se incomode; ele virá, porque o começo surge do acaso. Na verdade, o começo é o próprio acaso; é ele que dispara todos os acontecimentos e sensações. Se você se prepara, nada acontece. Ou, no melhor dos casos, acontece de forma frustrante. Não almeje. Procure manter a disposição para a surpresa. Mas não cuide para ser descuidado; o treino para isso é mais profundo e acontece sem querer. O segredo é aprender a distrair-se sem tentar fazê-lo. Num momento de desatenção, como quem não quer nada, o começo virá despercebido e o levará para um lugar onde habitam vários outros começos, meios e fins. Lá você nem perceberá que está cercado por tantos começos. Todos eles o receberão bem e o tratarão como se o conhecessem há muito tempo, desde antes de você estar procurando como começar. Você então terá inúmeros começos e poderá fingir que nem estava considerando essa busca com dificuldade e receio. Tudo será como se sempre tivesse sido seu. A esta altura, entretanto, você deve estar se perguntando como fazer para entrar nesse estado de graça desatenciosa. Se, ainda mais, é preciso não precisar de nada, nem ao menos de treino para receber os começos, como destreinar a memória, como descumprir tudo? Sim, esse é um problema. Para obter a distração é preciso distrair-se de querê-la e, o que é pior, não se obtém a distração porque ela não é algo que se possua; ela escapa. Só a tem quem não a tem. Talvez um bom método seja permitir que suas falhas se manifestem. Deixe as coisas caírem, tropece, suje a mesa e a roupa, esqueça as chaves e não se culpe. Pare de anotar tudo em fichas, não planeje a semana e acolha as surpresas. Se surgir um imprevisto, aceite-o. Demore mais tempo para fazer tudo e comece a ir a lugares desconhecidos. Não aprenda a chegar; só decida qual será a condução. Entre no primeiro ônibus, desça no trigésimo ponto e vire na quinta rua à direita. Entabule uma conversa sobre o passado com o primeiro velho. Esse será o começo. Mas, se você pensar bem, esse método não passa de infantilidade. Parece original, mas é pura autoajuda. Esqueça tudo.
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Por onde começar? Como encontrar o lugar, em meio à vertigem de possibilidades, que servirá para um começo? Como desbastar as oportunidades que se oferecem como certas, únicas e redentoras? Será que, escolhendo um caminho que surge como chance de começo, não se perdem outros melhores? Ou será que qualquer caminho serve, contanto que se comece e, mais tarde, quando já se tiver começado, conserta-se o que estiver errado? Tantas foram as vezes em que se optou pela ousadia, pela entrega ao acaso, para logo se perceber que não, que era uma fraude, uma trilha condenada ao fracasso do começador. Era tudo aparência e nada levou a nada. O começo era não mais do que uma história sem-vergonha que, assim que tomou forma, desmanchou-se em mil. Não havia nada maciço ali; só uma falsa impressão. Nessas ocasiões, a frustração é tanta que começar novamente é mais trabalhoso e complicado. Primeiro é preciso vencer a frustração para só depois passar a empreender outra tentativa. Não; é melhor nem tentar, se não houver certeza. Além do mais, quando se escolhe um caminho, ele parece definitivo, quando na verdade não é bem assim: você sabia, mas não queria reconhecer, que junto àquele havia muitos outros que poderiam acompanhá-lo sem prejuízo para qualquer um deles e nem para você; seria possível abordar muitos começos, deslocar-se de um para outro, começar e recomeçar, mas não: você enfiou na cabeça que somente um era desejável e que se você escolhesse vários não passaria de um inseguro e ninguém em sã consciência seria capaz de gostar de uma história com vários começos. Todos querem apenas um. Querem um começo definido que é para a história prosseguir adequadamente e o tempo passar a contento. Ninguém quer ficar para sempre estacado em começos soltos que não levam a nada e só se voltam para si mesmos. Isso é narcisismo, dificuldade em aceitar que as coisas acabam e devem dar sequência a outros estágios do tempo. Então você não começa: fica se perguntando por onde começar e isso passa a impressão de que você fará finalmente um começo decente. Mas não passa de fuga; quem quer mesmo começar faz de qualquer jeito, não fica inventando questões de profundidade duvidosa. Alguém dirá que não começar ou ficar se perguntando também é um começo e que qualquer questionamento é hipócrita. Um jeito de enganar a si mesmo. Ponha a mão na massa, pegue uma enxada, vá trocar fralda de bebê e pare de fazer manha. Isso não é pergunta que se faça; aqueles que vivem a vida sem medo jamais se perguntam por onde começar. Essa questão nem passa pela cabeça. Nada; eles não se perguntam nada, os fazedores, os começadores, os acabadores. Você não. Você interpõe dificuldades entre você e qualquer coisa que apareça: vem com dúvidas até sobre o que já está realmente fazendo. Pare com isso.
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O começo não passa de interrupção de algo que já vinha ocorrendo, mas que ainda não tinha recebido nome. As coisas estão em permanente processo até que alguém apareça e nomeie um ponto das coisas como começo. Assim, o começo pode até ser chamado de fim, em nome de uma fúria nomeadora. Mais do que nomear, designar um começo é localizar algo no tempo e condená-lo à temporalidade, já que o começo é um elemento da tríade composta de passado, presente e futuro. O que agora é começo, em muito ou pouco tempo já será passado. Porém, se não nomearmos nada, se não interrompermos as coisas para chamá-las de começo, elas simplesmente continuarão, sem jamais se darem conta de suas partes ou de sua localização no tempo e no espaço e então não estaremos condenados ao meio e ao fim, pois nenhum deles o será. É como cortar algo que passa, represar a correnteza e desviá-la de seu curso para estabelecer um curso que se disfarça de novo, quando é somente uma violação do que já existia. Começar é o sintoma mais forte do desejo de novidade, já que todo começo contém a energia do novo, a que poucos resistem. Logo depois, o novo se desgasta, vira passado e surgem outros começos, outras interrupções do que já vinha acontecendo para que aquela energia se refaça. Não se respeita a energia da inércia, essa sim mais genuína; uma força que se arrasta sozinha e que se mantém até que sua carga se esgote. É preciso agarrar a inércia, enxertar-lhe forma e significado, até que ela se recomponha e se transforme em começo. Dessa maneira o acontecimento se enfileira, como um soldado a postos, para dar sequência às coisas que de agora em diante se abaterão sobre ele. Ele agora faz parte de uma perspectiva, de um projeto, e terá que se postar obedientemente, para depois ser substituído pelo meio e pelo fim. Ele já avista ao longe, preparando-se, os batedores do meio, que se encaminham para o seu lugar e já lhe lançam olhares temerários. Que o começo não se estenda demais, eles parecem dizer. Que ele não venha com caprichos, retardando o momento da entrada. Que não os atrase, eles dizem. E o começo, que antes vinha embalado, inconsciente de si, no fluxo das coisas, conforma-se cabisbaixo a sua nova condição e aceita seu destino.