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Eu não queria me meter com aquelas viadagens. Mas teria de passar por cima delas para estar com ele. Daniel andava com uma galera; e daquele pessoal morreu muita gente. Os que vieram pra cá da última vez, Pablo, Vera, nem sei mais o nome dos outros. Maria disse que Daniel não foi o único, nem o primeiro. A foto de meu irmão: um cara bonito. Cabeludo. Eu disse não, não quero vê-lo no hospital; e meus pais, o que viram? Trouxeram o corpo para Recife. Estou tão próximo do caixão, não é a lembrança que desejo guardar. As mãos, cruzadas sobre a barriga – brancas e magras e manchadas – são o que vou levar daqui. E as vejo: largas, como patas de um animal valente. Mil vezes preferiria que as unhas dele estivessem pintadas; mil vezes! Meu pai abriu a porta e Daniel pintava as unhas de vermelho. Ele ficou num desespero, para lá e para cá, tirando o esmalte com a camisa. 

Papai gritou:

- Está gostando, princesinha? Você tem um pau pra botar na mesa, cretino! É homem? – e fechou a porta.

E minha confusão: Daniel também havia pintado as minhas unhas no dia anterior, e eu não estava brincando de ser mulher. Chorei de tanto rir dele: Daniel parecia uma banana machucada. Seus olhos amarelos se deitavam sobre o chão.

O pau na mesa. Um pedaço de madeira sobre a mesa da sala. Acho que desde aquele dia, a confusão entre pau e pai tornou-se frequente nas teclas da minha máquina de escrever. E quanto tempo demorei até entender a expressão?

Coisa ridícula, drama mexicano. Daniel apanhando do primo brutamontes. Oscar me defendia sempre, mas Daniel se fodeu. Azar de morarmos todos na mesma rua por tanto tempo. Para mim era bom, Oscar na defesa, eu queria ser como ele. Os desenhos de Daniel... não me lembro de nenhum. Ele deixava rabiscos sobre a cama, rostos. Eu não queria saber, covarde. Daniel nunca soube que sim, eu me preocupava. E por que mundo ele circulava? Por onde a cabeça dele ia quando estava rolando no chão depois de tantas pancadas? Seria mais fácil: por que Daniel não era igual a todo mundo? Foi azar: época errada, família errada, enfim. Estivesse em outra geração, mais atual, não seria tão ruim ser quem era. Mas nem sei se isso é verdade em 1988.

Está encaracolando os cabelos, ô mulherzinha? – Oscar esbofeteou a porta do banheiro. Marteladas. Meu irmão a abriu, um soco no meio das fuças.

Para narizes grandes se fazem plásticas. Para Daniel, o que se fazia?

E ele indo pro colégio militar. Puta merda. Minha mãe o meteu naquela escola. Lá ia o menino, lépido, bater continência.

- Ele não gosta de exercício. Lá, vai fazer esporte.

O meu pai. E Daniel fazia desenhos assim, de guardas com a arma na cara dele. Mamãe pensando que podiam fazer algo contra o meu irmão por causa disso, mas Daniel nunca foi politizado nem porra nenhuma. A história era outra.

O carro. Papai alegre com o presente e nós também... Os bancos fedendo a cigarro de Daniel. O odor tão desconhecido quanto a viadagem, e tudo se misturava numa coisa só. O cheiro dele em mim me dava asco. Cinzento, alienígena, compartilhando da minha vida. Eu enfiava o dedo na cara dele. “Imbecil!”. Daniel ria. Foi nessa idade, não foi? Ele já não estava lá; estava presente, mas já não estava lá.

Depois que terminou a faculdade, o Rio. E eu achei bom. Achei sim.

A música, o ladrilho desta igreja, um corpo... o uísque de que gostava de beber. As pernas dele cruzadas balançando a ponta do pé. Quando vinha visitar, não era mais Daniel; o rosto erguido, como se sua língua lambesse a própria face. Vinha por causa de minha mãe; disso não há dúvidas. E esse cara que morreu não é o que se escondia pelos cantos. Quem eu guardo comigo, morreu muito antes dele. Daniel deixou uns quadros para mim, também a máquina fotográfica. Profissional, nem sei usar. Fora isso, poucas coisas, sem carta de despedida. A história é de que morreu de pneumonia. Um monte de besteira, como se todos não soubessem. Minha mãe gosta de partir espelhos.

O colégio militar, Daniel pelas calçadas da cidade, a boca dele se abrindo, o corpo a mover-se como se dentro de uma gaiola. E diante da AIDS, lá esteve: no batalhão de frente.

E as porradas e risadinhas e vergonhas. Daniele. E o esmalte que ele tentava tirar com a camisa. E como ele devia esfregar as mãos no rosto, desejando ter o mesmo resultado.

O pau na mesa - o pau de Daniel sobre a mesa incomodou tanto. Ele não queria aparecer, se escondia pelos cantos, um cachorro violentado, e todos nós tínhamos vergonha dele.

Parece que morto vira santo; jamais pensei em Daniel assim, com tanta condescendência. Por que entendo agora que ele sempre foi parte da minha vida?

Foices, bigornas, serras elétricas, facões, martelos... Daniel com os olhos caídos. E lá, as unhas limpas no caixão. E não poderiam ser as minhas ali. Seriam muito menores, menos grossas, mais traiçoeiras. O rosto dele a sorrir ­– dentes de força. Tirara o esmalte das unhas como se fizesse algo de errado. Mas um leão sabe que o esmalte lhe pertence. Um leão sabe que tem esse direito. Meu irmão rugiu três vezes quando riu da fumaça no carro. Sabia da vastidão das savanas. E eu, preso em canos subterrâneos - como todo o resto da minha ninhada.

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O aro

Está em sua mãos. Ela a ergue. Quebra o punho.

A bola viaja, e bamboleia pelo aro.

- Caramba! Só dá aro hoje! – reclama a amiga, irritada.

A mágica está na matemática que a cabeça de Ana Clara faz escondida, mancomunada com o corpo. A força do movimento está no fazer, não no pensar. A mágica está na matemática que sua cabeça faz e nunca vê, na matemática que sua cabeça nunca faz, e nunca viu fazerem. Mas a matemática está ali, em cada tendão que realiza o movimento. Em cada impulso que faz a bola cair dentro ou fora do aro.

A bola, aliás, dançava.

Sua mãe estava com câncer. Cavalo de Troia, amigo da onça, presente de grego: autodestruição: traição, a maior de todas. Sua mãe não era fumante, não tinha propensão genética, sua mãe aos 35 anos. E trair-se, traí-la desse jeito! Que golpe baixo, que golpe sujo. Que sacanagem.
Tampouco era justo, pensava Ana Clara, deitar toda a culpa daquele veneno corrosivo em sua mãe.

- Vocês só fazem falar de morte! – reclamou quando algum coleguinha desavisado veio falar do poder que o vampiro tem de sugar o sangue inteiro, a alma toda de alguém.

A matemática secreta dos músculos. A dor de barriga em dia de prova. Escorregar numa manga e se espatifar no chão.

- Não suporto mais este aro! – exclamou Ana Clara.

Acertar a cesta era uma questão de prática. Mas é preciso cuidado, pois já dizia Michael Jordan: se praticar errado, pode praticar o dia inteiro, e vai continuar errando.
Ana Clara não aguentava mais – o aro. Se o corpo aprende errado. É banhado desde o primeiro apagão, o primeiro susto e a primeira luz na direção contrária do desejo. Se Ana pensa em tudo o que faz, e quando não pensa é pega de surpresa. E mesmo quando pensa, calculista, é pega de surpresa também.

Para ser cestinha é preciso naturalmente se unir à cesta. Como se ela fosse teu umbigo. Como se a bola viajasse para dentro da imensidão do útero. Fazendo:

- Chuá.

A bola balança mas não cai.

Lembrou-se da redação de Abner. Sobre um nadador que abre os braços diante da piscina segundos antes de a competição começar. Respira fundo, engole as luzes dos refletores e das estrelas e mergulha, flecheiro. Como um disparo, como um míssil, como um ser humano.

- Mamãe?

57 sessões de quimioterapia. E parece haver uma rede por debaixo daquilo tudo, guiada, fiada pelo vento das atitudes, respirações, digestões. O começo de tudo sempre está em algum lugar que não se vê.

- Você não vai conseguir.

Entre a viagem milimétrica e interestelar de suas mãos até o aro. Sua mente foi engolida por um buraco negro ancestral. Questão de segundos.
Como um corpo pode trair-se? Rejeitar-se? Atacar-se?
A bola não entra.
Ana Clara tenta de novo.
Fora.
O médico disse que sua mãe não tinha mais chances. Perdeu o timing. Era tarde demais.
Ana Clara tenta de novo.
Fora.
O erro ela tinha. Como um arranhão no disco. Ela queria arranhar a cara do erro.
O corpo de sua mãe estava sendo bombardeado há um ano. Os seios lhe foram roubados. O que mais o câncer ia tirar?
E vem outra menina e lhe toma a bola. Furiosa, Ana corre, corre, corre. Corre até ofegar profundamente. Olhos fixos na bola. Queria-a de volta. Exigia. Com urgência. Como um touro quer a capa vermelha.
Falta!
O heroísmo na derrota Ana Clara conhece bem. Aquela estrelinha lá dentro que irradia e impulsiona todo arremesso. É falha. E ela faz milhares de lançamentos tentando aparar as arestas que transbordam toda vez que se enraivece.
Estava cansada do erro.
Do erro que estava ali como um tumor, operando as batutas do invisível.
A bola bailando em círculos. Ínfimos segundos em que ela rodopia, dança, roça os lábios do aro.
Treinava com empenho e apuro de jogador de 1ª linha. Queria ensinar seu corpo a viajar até a cesta.

Queria que sua mãe se ensinasse a não morrer.

Ana Clara, as bochechas vermelhas e suadas de locomotiva, não queria ouvir falar de morte. Queria ser o arqueiro que é a flecha, que viaja na flecha. Alcançando a dança íntima dos movimentos, o bolero suave do voleio, o mistério dos números primos, do pi, a essência do cão quando, mesmo cego, acha o longo caminho até o alimento. O bote certeiro da naja. O revide espetacular do mangusto. As coisas que são como são, mas têm uma história recôndita como areia de barro de tijolo por dentro da parede. Suave, brincando na dureza como uma aurora boreal.

Tudo está ali. Junto com o aro, com a doença.

Os uivos para o céu, a dor surda, o oco da falta, o corpo sáfaro, o sorriso insubjugado. Os milissegundos fugidios, enguias. A primeira célula rebelde, anjo caído.
Ana Clara aguerrida, marchando, hirta e desobediente, pela quadra. Espionando todos os mistérios aparentes e velados. Perscrutando a luz que foi apagada, mas não se apagou. Querendo matar o que escapa. O que a morte mata. Fazer queda de braço com seu próprio braço. Movida pela esperança de um dia tonar-se arqueiro-flecha, e atingir em cheio a maçã no escuro.

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