19 Inéditos A

Ele acaba de se levantar, Teresa. E o observo em jeitos bruscos depois de tantos anos, ele, que reapareceu sem anúncios ou advertências para me devastar em despropósitos e nenhum pedido de desculpa, nada. Admito que gostaria de não compreender a razão pela qual se levantou contrariado e tão obtuso, mas é inevitável. Aliás, Teresa, acredite que sou eu quem deveria estar em pé com modos grosseiros, um olhar atravessado a ele que, sentado e cabisbaixo, teria de aceitar o impróprio da minha reação. Mas sequer -consegui articular resposta: ele se levantou interrompendo com brutalidade o curto silêncio em que tentava aceitar o que de fato estava acontecendo, as coisas que me disse. Que direito tenho eu, afinal?

Ele está parado à minha frente num olhar que persiste em desdém enquanto joga algumas notas sobre a mesa, vira as costas e caminha sobre as andorinhas desenhadas em pedras na calçada ambicionando desaparecer na esquina que o engolirá num truque fajuto cheio de abracadabras que já vi antes, Teresa, há tantos anos. Lembra-se?
E mais uma vez estou sozinho.

...

Definitivamente sozinho, mas não sem lutar, Teresa. Corri antes que ele sumisse para afrontá-lo em questionamentos e assertivas, encará-lo com os olhos em riste, a boca em palavras duras que o impediriam da saída fácil de me culpar por suas loucuras. Em vão. Ou pior: volto agora com o peito sobressaltado e a cabeça mais embaraçada pelos disparates que ele disse
(você não acreditaria, Teresa)
Aquela voz de tanto tempo colocando meus pensamentos em desencontros como desencontrada é minha vida. Pouco adiantou interpelá-lo, eu não poderia evitar que ele desaparecesse
(abracadabra)
Naquela esquina que agora observo atordoado e des-crente, aquela esquina.
E, irremediavelmente sozinho como sempre estive, resigno-me a um gole da cerveja quente. Por um instante parece que nada aconteceu. Deliro? Como viemos a esse lugar?, esse bar que conheço de outros sábados em que muitas pessoas à minha volta arrotam redundâncias até comemorarmos embriagados a derrota de mais um dia tão logo a madrugada suspende-se sobre nós anunciando o domingo.
Não sei como viemos parar aqui.
Entretanto, esta garrafa de cerveja e os dois copos
(o dele com um gole por tomar)
Não me deixam acreditar que alucino, assim como o garçom que se aproxima, passa uma flanela molhada cheirando a álcool sobre a mesa, suspende a garrafa à altura dos olhos em perpendicular e pergunta
– mais uma?
Enquanto perco o olhar no centro desta cidade fe-chando-se lento ao fim de semana, a tarde quente e o sábado jovem, poucas pessoas percorrendo a calçada en-tre as quais procuro os passos dele à margem da esqui-na, nos desvãos das asas de andorinhas alçando estranhos voos, mas apenas o garçom repetindo
– mais uma?
Mostrando-me a garrafa que determina a realidade de todo o acontecido e prenuncia a madrugada em derrocada, tantas outras quedas quando respondo
– sim.

...

Foi uma alucinação, Teresa. Há pouco, apesar do sábado à janela de casa igual a tantos outros sábados e da mãe sentada invariavelmente naquele lugar à mesa do almoço
(ela sempre com os olhos turvos e incertos e paralisados num sem ação terrível)
Apesar dessas normalidades, eu à frente dela emulava as mãos débeis que agravavam o mal-estar
(justo eu que sempre mantenho a compostura)
consternado com a certeza de que essa falta de jeito denunciava que algo estranho pairava sobre nós. Alice ao meu lado pedia atenção em esparsos sorrisos bobos que lhe escapavam dos lábios, mas eu estava atento à movimentação tímida que agia e reagia como se sugerissem ameaças e afrontas incitando confronto muito embora se tratasse tão somente de mãos ao encontro de garfos e colheres e copos d’água. Mesmo que débeis ou incertas, as nossas mãos. Sentados num constrangimento insuportável, Teresa, nos esforçávamos para não reparar que os objetos postos sobre a mesa e tudo que compõe a sala e casa anunciavam num vastíssimo e intenso incômodo a tensão que expunha e sublinhava a distorção do sábado em tudo diverso devido a alguma coisa fora do lugar, violentamente fora do lugar.

Esse é um trecho do romance A instrunção da noite, que a editora Rocco lança este mês



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