Na impressionante crise de violência social – que perdeu toda delimitação de continente por um estado alienado em sua missão de manter as contas globais do fim do mês em dia, embora sequer soubesse fazer direito tais contas –, que tomou todo o segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, o que chamou a atenção de todos nós foi o desenvolvimento em massa de uma prática criminosa relativamente sofisticada, e pouco comum: o sequestro. Neste período, em cuja organização da estrutura social estamos plenamente instalados, chegou-se mesmo a produzir o significante onírico, a figura mítica da “indústria do sequestro”, construção que, como tudo nesta época, ainda não foi analisada, dissolvida em suas condensações e tornada pensamento.
Em primeiro lugar, podemos verificar, na hesitação muitas vezes anunciada frente a patologia policial em se chamar ou não o exército nacional para intervir no crime organizado e industrial, a própria falência da noção de Estado nacional, único detentor do uso da força legítima, mas que no período do segundo governo tucano sequer reconhecia em si qualquer força de coesão social, na desmontagem da noção de autonomia ou responsabilidade pública do Estado, muito própria ao seu governo, a quem nada deve ser imputado, pois ainda hoje, também como idéia fixa, todos sabemos que sempre tivemos e sempre teremos ali o melhor presidente que o Brasil já teve.
Da mesma forma, apagaram-se as luzes do país durante seis meses, ali onde o Estado foi exigido em uma demanda estratégica de controle e avaliação das condições públicas de um bem geral, a energia, um tipo de trabalho para o qual o governo não sabia estar apto. Este tipo de trabalho, de caráter produtivo, fugia aos negócios de caráter especulativo, da privatização internacionalizada da economia, de dependência acentuada do capital financeiro global ou dos interesses políticos de manutenção re-eleitoreira do grupo no poder, atividades lucrativas às quais não se pouparam esforços nem diligências de sucesso nos primeiros quatro anos do governo, que se revelaria, ao fim das contas, tão irreal.
O célebre weberiano Fernando Henrique Cardoso abria mão de estruturas definidoras do Estado moderno, como o limítrofe uso da violência legítima para a manutenção da vida social – definitivamente alienada do Estado –, pela propaganda vazia de um governo que esvaziou o Estado das coisas públicas, tornadas abstratas, tornadas o fetiche de sua própria propaganda, cuja maior criação era uma nota de dinheiro (e o seu nome perverso: o real), e entregou-se à voracidade neoliberal, transferindo, com poucas canetadas e um grande biombo ideológico, 40% da renda nacional de mãos, em apenas três anos.
Do público ao privado, do nacional ao globalizado, da realidade concreta à abstrata, da vida nacional ao fetiche de classes: eis as direções gerais de tal processo.
De mãos dadas com o liberalismo econômico mais radical e problemático, já proposto por Friedman e seus homens de Chicago desde os anos 1950, contra a tradição intelectual econômica brasileira, mergulhou o país, em seu segundo mandato, em um controle estrito da base monetária, mantida aprisionada nas mãos do governo, controle simultâneo a um endividamento sem fim, de prazos muito curtos, não negociados politicamente, para saldar as contas das próprias contas malfeitas, que levaram o país a tornar-se inteiramente refém do capital financeiro especulativo global, a quem tivemos que pagar alto tributo para podermos ter uma eleição livre. Como recentemente foi dito, a estabilidade econômica de FHC, baseada no controle da inflação como ideal fixo, não sobreviveu a uma eleição democrática.
O resultado patético, ao fim da era tucana, foi a estagnação econômica com retorno da inflação, operada pela dependência de dólares em que o país foi alucinadamente lançado, desde o primeiro momento FHC, como um adicto. Terminamos na mão dos traficantes de dólares internacionais, que, por sua vez, sequestram a nação, cobrando o resgate da riqueza nacional para deixá-la, apenas, mal sobreviver.
Do sequestro da poupança de Fernando Collor, que iniciou a abertura atabalhoada e fetichista do mercado, ao sequestro da nação de FHC, como sabemos, as coisas nacionais entraram em ritmo de terra em transe e talvez o principal sintoma social de tal dissolução tenha sido a organização espontânea da vida criminal, em massa, dos excluídos da riqueza, da cultura, ou mesmo do interesse humano, por essa gente. Em um mundo de senhores criminosos, os escravos excluídos que só têm o horizonte da mesma cultura para sonhar constituem-se como organização social de criminosos. O crime é, em grande parte, a única mediação social objetivamente disponível. Um bom analista econômico e simbólico da famigerada era, Francisco de Oliveira, escreveu a respeito:
“Para além do desastre econômico que está à vista de todos, que ajudou a eleger alguém inteiramente imprevisto no esquema do Reich de 20 anos do sinistro Sérgio Motta, o que há de não retorno, é a consolidação, visto que este é um processo de longue haleine, de uma sociabilidade do êxito a qualquer preço, que, nas condições de miséria, se transforma em violência – no grosso a falência do Estado e, a granel, as gangues e a criminalidade soltas, que aliás são faces da mesma moeda, são o lado perverso e sinistro da modernidade que levou tanto tempo para ser hegemônica no Brasil. Uma espécie de ‘revolução burguesa lúmpen’. A contrapelo da reconhecida pavonice do personagem (FHC) que gostaria de ser lembrado como o arauto de uma modernidade civilizadora.”1
Podemos considerar uma pequena semiologia do sequestro, tal qual a sua indústria desenvolveu entre nós nos últimos poucos anos. Em primeiro lugar, trata-se de um crime complexo. Não se trata do ato instantâneo, imediato, de bater uma carteira, ou do planejamento pontual de um assalto. O sequestro envolve muitas pessoas, grupos de quatro, cinco ou seis, coordenados em um planejamento paramilitar, envolve uma estrutura a ser sustentada no tempo, do cativeiro à dura negociação, implica em custos relativamente significativos e riscos enormes de denúncia e falhas em qualquer um de seus muitos momentos.
Além disto, trata-se de uma radical teatralização do horror, de caráter sádico pelo limite do controle absoluto do objeto do sequestro, mas de grande exigências emocionais a todos os participantes. O sequestro é portanto, uma atividade coletiva, que congrega um grupo, representante de uma comunidade e que se organiza na forma racionalizada da divisão do trabalho e da exigência de performance em um grande trabalho planejado, um ante-espetáculo.
Instados a adentrar definitivamente a ordem criminal de seu mundo, podemos imaginar que grande parte dos trabalhadores desenraizados de qualquer destino na vida de sua sociedade tenham preferido organizar-se para o trabalho de alta performance, quase técnico, racionalizado, e de valor positivo no mercado da indústria cultural, o sequestro.
Não deixa de ser altamente significativo que muitos dos sequestradores sejam criminosos de primeira viagem. O caso de Fernando Dutra Pinto, sequestrador da filha de Silvio Santos, do próprio Silvio Santos e do governador Alckmin, que morreu miseravelmente, torturado, em pouquíssimo tempo de prisão em uma cadeia pública, é exemplar: tido como promissor em sua comunidade pobre, vestido com os adornos e marcas da inserção social rápida e superficial do consumo, jovem liderança evangélica, queria fazer cursinho para entrar em alguma faculdade e se inserir, provavelmente, em algum lugar da ordem conservadora deste mundo. Terminou, modernamente, como sequestrador, crime técnico e espetacular, e, ainda, envolvido na corrupção policial explícita e revelador da política de exclusão da justiça e da impunidade, logo morto na cadeia do governador que lhe deu garantias de vida e socialmente esquecido em silêncio cúmplice. Como diziam os antigos antropólogos, trata-se de um ato social total, totalmente negativo, embora nítido na verdade que revela, em todos os seus momentos.
O concreto desmantelo dos horizontes reais de ascensão, ou mesmo de mínima inserção social, desaguou a ação social no complexo trabalho do crime, quase a figuração, às avessas, de uma ação política de grande porte.
O sequestro é, em parte, forma de oferecer-se ao todo da vida social por categorias que lhe pertencem, como organização, divisão do trabalho, racionalização e performance técnica. Exige contato social entre as classes dissociadas e inverte a natureza da negociação de exclusão radical de uma classe por outra. Exatamente por isso a ele se agregou a ideia de indústria. Ele parece ser assim um diálogo de sinais trocados de sentido que congrega todo este mundo e sua ordem simbólica, sua ordem do ganho máximo e da apropriação extrema da riqueza alheia a qualquer custo. E embora seja altamente sigiloso, sua indústria, como não poderia deixar de ser, tornou-se grande espetáculo da indústria cultural, que por outro influxo de inclusão social, agora pelo sucesso instantâneo da pura existência midiática, realimentou o fenômeno.
Por fim, penso que o psicodrama do sequestro, uma das experiências mais verdadeiras de nosso tempo, traz ainda luzes significativas sobre o seu sentido social, a natureza da sua imagem dialética. Para o sequestrado – pertencente ou à elite que sempre sequestrou a riqueza nacional e manteve uma imensa população no estado mais acachapante de miséria e desamparo social, ou ainda à classe média, que repressivamente comprou a ordem inaceitável das coisas chamada Brasil, na esperança de receber alguma migalha da concentração da renda –, a experiência do sequestro é a do horror da perda de qualquer direito humano, qualquer horizonte de desejo, expressão ou controle sobre a própria vida. Simplesmente, o que se encena aqui é a experiência do radical desamparo dependente em extremo do desejo e das condições humanas do outro.
Grupos desolados de brasileiros, talvez lançados em tal condição de desamparo social radical desde sempre, organizaram-se para fazer comunicar e encenar às elites de tal terra a natureza concreta do horror que sempre viveram. No sistemático virar o rosto às mazelas trágicas da organização da vida social entre nós, a indústria do sequestro é a indústria da verdade de uma classe na ordem violentamente injusta do país: desumanização radical, perda de qualquer garantia e direito, risco concreto de morte iminente, dependência social absoluta da psicopatia do outro de classe. Todas estas condições cotidianas de milhões dos excluídos são invertidas e projetadas na outra classe no psicodrama do sequestro – em seu teatro verdadeiro da realidade das coisas –, e é o outro de classe que habita por alguns dias, ou para sempre, o campo de concentração que é a realidade da vida de toda uma classe no Brasil.
Também não deixa de ser significativo que exatamente no mesmo período a televisão brasileira tenha importado a forma dos reality shows da Europa e dos Estados Unidos, e esta verdadeira figuração de um sequestro às avessas, elaboração onírica de uma condição geral – em que as pessoas mantidas trancafiadas por meses frente o controle voyeurístico das massas tem que se comportar bem para serem reconhecidas por uma estatística consciência do todo em alguma ética ou forma estética que lhe permita finalmente sair ilesa, com o dinheiro do seu resgate finalmente pago – tenha se tornado o sucesso de público, mobilizado todas as esferas do sistema da industria cultural e aquecido muito a concorrência direta entre as emissoras, as ocultas, mas verdadeiras, sequestradoras da intimidade.
Para minha paciente que foi sequestrada foi muito importante conversarmos com calma sobre estas coisas, e pensá-las juntos. O caráter repetitivo do trauma, neste caso, não dizia respeito apenas a um processo intrapsíquico, que já foi nomeado como tanático, da mesma forma que o traumático da Primeira Guerra Mundial não dizia respeito apenas à metapsicologia, mas à condição da vida humana, o que foi percebido por Walter Benjamin, mas não por Freud. O trauma, para minha paciente que foi sequestrada, dizia respeito, fortemente, à dura consciência social de que o sintoma, o sequestro e seu horror, na sociedade sequestrada imensamente de si mesma, está lá. Ou melhor, está ali em qualquer esquina. Superar os males melancólicos do trauma era ganhar consciência do estatuto desta realidade simbólica social: os sequestradores sequestrados continuariam a sequestrar seus sequestrados sequestradores, o outro de classe, no Brasil.