Ineditos1 A

Trecho do romance Quando eu tinha cinco anos, me matei, que será publicado pela editora Rádio Londres.

Quando eu tinha cinco anos, me matei.
Eu estava esperando começar o Popeye depois do Jornal. O Popeye tem pulsos grandes para uma pessoa e uma força inesgotável. Mas o Jornal não acabava nunca.
Meu pai estava vendo. Eu ficava cobrindo os ouvidos com as mãos pois tenho medo do Jornal. Eu não gosto porque isso não é televisão. Aparecem russos que vão nos matar. Tem o presidente dos Estados Unidos, um careca. Passou o fabuloso Autorama, aonde eu fui uma vez este ano... foi muito gostoso como atividade.
Um homem apareceu no Jornal. Tinha uma coisa na mão, uma boneca, e a mostrou. (Dava pra ver que não era de verdade por causa da costura.) Estou fora.
“Esta boneca era o brinquedo favorito de uma menina”, disse o homem. “E agora, com esse acidente sem sentido, ela morreu.”
Subi correndo para o meu quarto.
Pulei na minha cama.
Enfiei a cara no travesseiro e apertei com força até não ouvir mais nada. Prendi a respiração.
Então, meu pai entrou, tirou o travesseiro da minha cabeça, pôs a mão em mim e chamou meu nome. Eu estava chorando. Ele chegou por cima de mim e pôs as duas mãos por baixo, levantando-me. Ele fez assim no meu cabelo atrás da cabeça e eu encostei a cabeça nele. Ele é muito forte.
Ele disse baixinho: “Tudo bem, filho, não chora”.
“Eu não estou chorando”, disse eu. “Eu já sou um menino grande.”
Mas eu estava chorando. Então, o papai me disse que todo dia morria alguém e ninguém sabia por quê. Essas eram as regras. E ele desceu de novo.
Fiquei um tempão sentado na minha cama. Eu só fiquei ali sentado. Tinha alguma coisa errada comigo e eu não sabia o que fazer. Então, deitei no chão. Estiquei o indicador e apontei para a minha cabeça. Nesse momento, puxei o polegar. E me matei.

2
Estou no Lar Residencial Confiança Infantil.
Estou aqui pelo que fiz com a Jessica. Meu nariz ainda está sangrando, embora tenha parado de doer, mas a minha cara está toda preta e roxa na bochecha. Dói. Estou com vergonha.
Quando cheguei aqui, a primeira pessoa que conheci foi a senhora Cochrane. Ela veio me conhecer na mesa que eu ocupava com minha mãe e meu pai. Todo mundo apertou as mãos, menos eu. Eu estava com as mãos no bolso. Elas eram punhos. A senhora Cochrane me levou com ela. Ela é feia. Eu mal conseguia olhar para ela... ela usa calça, mesmo sendo velha. Ela fala bem de mansinho comigo, como se eu estivesse dormindo. Mas eu não estou dormindo.
Ela me levou até a minha ala. Tem seis camas aqui. Sem cortina, sem tapete. Sem cômoda. Sem televisão. Tem grades como de cadeia nas janelas. Estou preso pelo que fiz com a Jessica.
Depois eu fui ver o doutor Nevele.
A sala dele é para lá, atravessa esse corredor e passa pelas portas grandes e vai, vai, vai e aí já é lá. Ele tem pelos até no nariz, parece palha de aço. Ele me mandou sentar. Sentei. Olhei pela janela dele, que não tem grade, e o doutor Nevele perguntou o que eu estava olhando. Respondi que era para os passarinhos. Mas eu estava procurando meu pai para me levar para casa.
Tinha uma foto de crianças na mesa do doutor Nevele e uma foto de Jesus Cristo que eu acho que é falsa porque eles não tinham câmera na época. Ele estava na cruz e alguém segurava uma placa em cima dele escrito “INFO”. Quer dizer que você pode pedir informações para ele.
O doutor Nevele sentou atrás da sua mesa. E falou: “Agora, por que o Burt não me conta alguma coisa sobre ele mesmo, como as coisas que mais gosta de fazer, por exemplo?”.
Eu cruzei as mãos na barriga. Como um pequeno cavalheiro. Não falei nada.
“Ora, vamos, Burt. Quais são as suas coisas favoritas? Por exemplo, o que você mais gosta de fazer com seus amigos?”
Eu fiquei ali sentado. Não respondi nada. Ele olhou para mim com aqueles olhos dele, e eu olhei para a janela à procura de meu pai, mas não o encontrei. O doutor Nevele me perguntou de novo e mais vez e depois parou de perguntar. Ele ficou me esperando falar. Ele esperou muito. Mas eu não queria falar nada. Ele levantou e ficou andando pela sala e, então, olhou pela janela também. Nessa hora, fui eu que parei de olhar para lá.
E falei: “Já está de noite”.
O doutor Nevele olhou para mim. “Não, não está, Burton. Lá fora está de dia. Ainda estamos no meio da tarde.”
“Já está de noite”, falei. “Quando o Pretinho chega.”
O doutor Nevele olhou para mim. “Você chama a noite de Pretinho?”, perguntou.
(Eu vi pela janela um carro parar e outro carro sair. Cara, o meu irmão Jeffrey sabe o nome de todos os carros. Ele é especialista em carros. Mas, quando a gente vai no banco de trás, eles gritam com a gente por causa da bagunça.)
“O Pretinho vem à noite na minha casa”, respondi, mas eu não falei isso para o doutor Nevele. Falei isso para a Jessica. “Quando já estou coberto na minha cama. Ele vem até a minha janela e fica esperando. E fica tudo em silêncio. Ele não faz nenhum barulho, diferente dos outros cavalinhos. Mas eu sei que ele está ali porque consigo escutar. O som dele parece o vento. Mas não é ele. Ele tem cheiro de laranja. Então, amarro os lençóis e desço pela janela. São trinta metros até o chão. Eu moro numa torre. A única torre do meu quarteirão.
“Quando monto nele, os cascos fazem um barulho parecido com o de figurinhas de jogadores de beisebol presos em roda de bicicleta, e as pessoas acham mesmo que é isso. Mas não é. Sou eu. E vou montado no Pretinho até onde não tem mais casa nem gente. Até onde não tem mais escola. Onde tem a prisão, aquele lugar no qual colocam as pessoas que não fizeram nada de errado, e nós paramos perto do muro. Fica tudo em silêncio. Eu fico montado no Pretinho, que é escorregadio, mas eu nunca escorrego. E escalo por cima do muro.”

SFbBox by casino froutakia