"Este livro é dedicado ao Ocupe Estelita e a todos que se esforçam para construir um Brasil mais bonito." É essa a dedicatória que se apresenta na mais nova publicação escrita pelo norte-americano Benjamin Moser, mais conhecido no Brasil como o biógrafo de Clarice Lispector. Moser, que também prepara neste momento uma biografia sobre Susan Sontag, lança na Flip 2016 o título Autoimperalismo (editora Planeta), uma reunião de três ensaios: "Cemitério da esperança" (que já havia sido publicado pela editora Cesárea), "A pornografia dos bandeirantes" e "Autoimperialismo". A linha que costura esses textos dá conta de uma observação política que Moser tem sobre o Brasil a partir daquilo que primeiro se põe aos olhos: a paisagem urbanística, seus prédios, vias e monumentos. Com exclusividade, o Pernambuco publica abaixo um trecho do ensaio que dá título ao livro, em que o escritor sustenta a ideia que o Brasil é regido por um projeto de desenvolvimento "autoimperialista". Confira:
"Demolir-se, destruir-se, invadir-se. O conceito de autoimperialismo remete à mais antiga das imagens da historiografia brasileira: a da antropofagia. O Brasil já teve os seus canibais literais – aqueles que, na São Paulo seiscentista, sequestraram Hans Staden; aqueles pintados por Albert Eckhout em Pernambuco, no século XVII, que perambulavam carregando punhados de membros humanos para o jantar. No século XX, Oswald de Andrade reciclaria essas imagens. Vislumbrou um país que tomaria as partes que desejasse de culturas estrangeiras, as digeriria, e faria delas algo útil para o Brasil. Era uma ótima metáfora que poderia também ser aplicada à cultura norte-americana: um modo de ver o Novo Mundo.
Mas, gracejos à parte, havia algo obscuro na metáfora, e não apenas porque o canibalismo pressupõe o homicídio. O Brasil esteve sempre a consumir a si mesmo. Estendendo a metáfora à deglutição de seu próprio povo e território, seria possível encontrar um meio de enxergar o país como algo que, apesar da retórica patriótica, não mereceria proteção ou preservação. Seu único propósito seria enriquecer aqueles que o haviam vindo espoliar. Aí estaria o nexo entre os reiterados assassinatos de pessoas pobres e os reiterados ataques à natureza. Seria a explicação para a selvageria direcionada às cidades históricas. Autoimperialismo implicava que alguns brasileiros vissem outros como peles-vermelhas.
Czesław Miłosz, que ganhou o Nobel de literatura em 1980, descreveu como uma atitude tipicamente polonesa “um apego a uma Polônia ideal combinada a uma denúncia amarga da realidade, quase um ódio, de seus habitantes”. Quando topei com a frase de Miłosz, pensei imediatamente no Brasil. Parecia resumir todo um veio do pensamento brasileiro. Muito raramente o amor por uma terra existente só na teoria se somava ao amor pela terra em si – muito menos a um amor por seus habitantes. Em lugar disso, encontrava-se um nacionalismo sentimental que sugeriria um país, como a Polônia, sitiado. Mas o Brasil não estava, como a Polônia, sitiado. Não tinha sido invadido ao longo de séculos. A ideia do autoimperialismo explicava quem estava invadindo o Brasil. Em Brasília percebi como os próprios brasileiros viam o Brasil. Era com aquele mesmo olhar imperial que eu tentara evitar.
Parecia uma sociedade que nunca se cansara de colonizar-se a si própria. E de encarar sua população e seu território como passíveis de exploração, controle, submissão, violação. Dar-se conta do autoimperialismo era dar-se conta de um país que, até muito literalmente, desejava que ele próprio não existisse. Por isso a fantasia que se revelava nas revistas que datavam da inauguração de Brasília era tão interessante. Era a esperança de que o Brasil pudesse renascer pela construção de um enorme complexo de prédios no meio do nada. Mas por que ele precisaria renascer, e por que dessa maneira? O fato de que o estilo desses prédios fosse importado não era um detalhe, como não havia sido no caso do Theatro Municipal e como não seria nas futuras Trump Towers Rio.
Uma vez que vi autoimperialismo lá, comecei a vê-lo em toda parte. Por isso era tão difícil que eu me entusiasmasse verdadeiramente com os debates políticos que começaram a grassar durante os anos ruins. Se solucionar os problemas do país fosse apenas uma questão de trocar um partido escuso por outro, os brasileiros certamente teriam feito isso há décadas. Era difícil se animar com qualquer um dos candidatos ao poder federal. Eles se ocupavam em apontar as falhas dos seus adversários, mas todos estavam de acordo em relação ao modelo autoimperialista: destruir o ambiente, tanto natural quanto urbano, em nome do lucro de curto prazo. Mais shoppings, mais carros, mais edifícios feios."
Trecho de 'Autoimperialismo'
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- Categoria: Inéditos
- Escrito por Benjamin Moser