Uma pequena revolução entreas prateleiras da Casa dos Frios

 

O chá, os sequilhos e a geléia disseram adeus e deixaram um vazio no coração do bairro das Graças. Da porcelana branquinha, repleta de miúdas flores azuis, existe um ou outro exemplar na cristaleira. A casa grande, com oito quartos, foi vendida com todos os móveis dentro (“Parece que foi R$ 500 mil”, diz o guardador de carros que passa o dia sob uma árvore na rua das Pernambucanas). Perto, um solar cheio de eiras e beiras deu lugar a um edifício marrom. Quem prestar atenção ainda encontra no chão os trilhos dos bondinhos que circulavam por ali, onde a Pernambuco Street Railway Company, com seus bondes puxados a cavalos (chegaram em 1883) acabou se rendendo à modernidade dos veículos elétricos da Pernambuco Tramways (a novidade chegou em 1915). Sem chá, finas xícaras e moças usando finas rendas enquanto observavam o progresso passar, o que restou dessa antiga freguesia que em 1872 contava com 4.511 orgulhosas pessoas livres e 922 escravos? Apenas ela, a querida Casa dos Frios.
Erguido há mais de 50 anos, esse verdadeiro oásis do bem-estar não resume, observe, suas prateleiras abarrotadas de antepastos e vinhos do Dão ao clichê de ponto turístico. Se aquele bolo que não ouso dizer o nome – aquele, enroladinho, feito de pão de ló, recheio de goiabada – foi também responsável pela promoção destas terras em escala extra-estadual, ele, ao mesmo tempo, causou certa popularização de um canto onde se reuniam, ainda que timidamente, os saudosos donos da porcelana branquinha. De repente, no corredor das massas caseiras, perto do balcão que exibe o incomparável queijo de cabra (fromage de chèvre, prefere o gourmet) encontravam-se os amigos cujos avós banharam-se num outrora limpo rio Capibaribe. A alegria de encontrar aqueles que pertencem e sempre pertenceram a um círculo prestigioso e feliz, no entanto, foi de alguma maneira maculada pela invasão de curiosos atraídos pelo bolo que não ouso dizer o nome. Ah, se eles soubessem que há tantos outros segredos naqueles becos cheirosos onde o gourmet sente-se finalmente feliz ao encontrar o seu arroz selvagem preferido, o chardonnay inebriante, os delicados filamentos de açafrão...
Na verdade, a circulação de donos de sobrenomes e cores mais comuns entre a antiga população de 922 escravos do que entre as 4.511 orgulhosas pessoas livres ocorre para além das paredes da Casa dos Frios. Lá fora, no entanto, é mais fácil encontrá-los ocupando-se de funções como a do nosso citado guardador de carros da Rua das Pernambucanas. Há também a senhora que assa tapiocas pertinho da Igreja de Nossa Senhora das Graças, padroeira do bairro; há os meninos que brincam e pedem uns trocados em frente a pequena padaria de onde sai o cheiro reconfortante de pão no fim de tarde. Há também um ou outro morador atraído pelo charme dos prédios antigos, de encanamento ruim e aluguel possível. São eles que também, talvez se sentindo em casa, vão até a nossa delicatesse-símbolo em busca de algo mais gostoso e menos ordinário. Chegando lá, percebem um ou outro olhar não acostumado à face do “novo visitante”, o olhar daqueles cujos avós banharam-se num outrora limpo rio Capibaribe.
Mas nem tudo é tristeza: alguns dos novecentos e poucos misturaram-se de fato aos quatro mil e tantos, multiplicaram-se em termos de população e todos observaram, felizes, a pesquisa onde se via que o agregado dos bairros residenciais Graças/Aflitos/Derby/Espinheiro estava no segundo lugar no ranking de áreas mais ricas da cidade, com índice de 0,953. É preciso frisar que nesse atual bolo (respeitando a tradição açucareira de nosso Estado) a proporção de participantes daqueles novecentos e poucos e a outra, a dos quatro mil e tantos, se mantém. A receita leva bem mais leite do que chocolate. Essa gente hoje passa com seus carros, ora levando a caixa azul do bolo comprido, ora os vinhos do Dão, por cima dos trilhos dos antigos bondes da Street Railway Company e da Pernambuco Tramways: 87,6% dos moradores das Graças/Derby/Espinheiro têm um. É a maior proporção por habitante no Estado. Talvez isso explique a necessidade de os belos modelos, alguns importados, pararem na pequena praça reservada aos pedestres localizada em frente a nossa querida Casa. Talvez explique o engarrafamento em frente ao histórico Palácio dos Manguinhos, aquela gostosa confusão que a gente se acostumou a ver no início da manhã ou no comecinho da noite. Mas é preciso considerar. Muito já foi perdido e é necessária alguma leveza, tanta quanto a da massa do bolo com goiaba. Deixem os carros bonitos sobre a praça, que os pedestres caminhem pelas  históricas ruas. arborizadas, beleza que certamente é maior que um ou outro esgoto estourado ou a enorme quantidade de cocô deixada pelos cãezinhos  vestidos com blusas de time.  É preciso, sempre, abrir passagem para aqueles que procuram alguma paz nas prateleiras da Casa dos Frios.

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