Talvez se dê relevância demais ao processo de domesticação que vem acontecendo na promoção de uma obra poética – cuja importância literária me parece incontestável –, como a de Ana Cristina César e a aposta mercadológica paralela à sua promoção que consiste na construção de novos leitores de poesia. Vimos nos últimos anos a reedição fluorescente de seus livros pela Companhia das Letras e tivemos, como consequência publicitária desse investimento para aquecer o mercado editorial, uma homenagem não menos furta-cor em que Ana C. foi o centro da “edição das mulheres” daquele que é considerado o principal evento literário do país. A Flip, claro, mas não só: poderíamos também levar em conta as anuais festas de premiação literária, em que se pode encontrar tudo que circunda a literatura escrita hoje, sem tocar no que haveria de mais relevante nas práticas e no debate literário da atualidade. Qualquer um que procure tornar-se um leitor de poesia hoje, abrindo os jornais e se informando sobre os grandes acontecimentos literários – festas, prêmios, lançamentos e pequenas querelas –, terá a constante sensação de estar diante de um debate literário morno; se olhar com mais calma, verá mais: é um debate que existe apenas com a intenção de mascarar certa frivolidade cultural.
Enrique Vila-Matas em Não há lugar para a lógica em Kassel narra a história de um escritor convidado a participar da décima terceira edição da Documenta – um dos mais influentes eventos de promoção e discussão da arte contemporânea da atualidade, sediado a cada cinco anos em Kassel, na Alemanha – ocupando como quisesse por três semanas a mesa de um restaurante chinês na periferia da cidade. Tendo que se deslocar do centro da cidade, palco das intervenções mais interessantes do evento, o escritor-residente, com seu lápis, sua borracha e sua caderneta vermelha, fica sentado num canto de um restaurante decadente, rodeado pelos funcionários do local, refletindo sobre a incongruência e o risível de emular o ato da escrita diante de um público inexistente. A pergunta que fica subjacente, não apenas diante do vago convite de intervenção proposto pelos curadores do evento, mas também na performance efetuada pelo protagonista de Vila-Matas muito nos diz sobre o lugar da literatura nesses espaços de promoção: haveria alguma possibilidade de atuação da escrita e da crítica literária que não esteja situada, ao mesmo tempo, às margens da lógica contemplativa do mercado da arte, como também, nesses grandes eventos, às margens da própria prática literária?
Lembramos que, diferente das bienais e outros eventos de promoção e discussão de arte como a Documenta, as festas literárias não dão a chance de um encontro do leitor com acontecimento literário. Aliás, acreditar que aconteça algo de muito relevante para o debate literário ali é acreditar também que a literatura se basta na presença ou na glamorização póstuma dos autores, pois esses eventos apenas endossam um sistema de canonização forjado pelo mercado editorial que é, por sua vez, sustentado pelas mídias de grande circulação. Daí a tristeza de ver uma poeta como Ana C., cuja obra complexifica constantemente as relações entre experiência real, escrita e autoimagem a partir de uma poética da leitura, da tradução e da articulação de vozes, ser engolida pelo sistema para ser lida como uma poesia pink e pop. Porém, se não é novidade alguma que a literatura está sendo promovida como uma grande festa, cujo fundo é puramente mercadológico e atrai turistas deslumbrados em ver performances rasas sobre o literário, por que então continuar a acreditar, endossando e reproduzindo as imposições do mercado, que a principal discussão em torno da poesia estaria no lugar que mais parece se distanciar da produção poética atual? Dar crédito e continuidade a uma discussão escassa sobre o poético com fins meramente mercadológicos – ainda que para tentar enriquecer o debate e/ou informar os leitores não especializados – parece paradoxalmente confirmar a suspeita de que a poesia e a crítica de poesia atuais são insuficientes, quando nas margens desse circuito de valor mercadológico formado pelas grandes editoras, festas, prêmios, jornais e revistas de alta circulação, vivemos um dos períodos mais ricos.
Ao mesmo tempo em que os espaços de crítica literária nos jornais continuam apostando pouco em novas vozes e reafirmando sua escassa autonomia em relação ao mercado editorial, existe paralelamente tanto uma produção acadêmica cada vez mais constante e rica, como também espaços alternativos, muitas vezes protagonizados pelos principais expoentes da poesia brasileira na atualidade, dedicados a discutir os caminhos da produção poética contemporânea. É verdade que esses espaços todos podem se cruzar em alguma medida: professores universitários podem ser poetas e são chamados para ocupar os poucos espaços críticos nos jornais e revistas; poetas podem também ser pequenos editores, tradutores, curadores, críticos e articuladores de sua própria geração. Não se trata de funções estanques, havendo a possibilidade de um alto hibridismo nas atividades literárias. E não há novidade nenhuma nisso: eis apenas uma descrição do circuito literário que, concêntrico como ele é, atrai e repele os elementos que o orbitam, do centro às margens. Pois é nas margens, aliás, e muito antes de um jornal ou uma revista de grande circulação publicar, resenhar e celebrar certas dicções poéticas, que se estabelecem os diálogos e trânsitos na poesia. Não é a toa que quando um jornal como a Folha de S.Paulo imprime em seu caderno dominical alguns poemas do cultuado O livro das Semelhanças, publicado pela Companhia das Letras, a poesia de Ana Martins Marques já é conhecida entre os leitores atentos, tendo sido publicada, por exemplo, na franquia online da Revista Modo de Usar. Formam-se novos leitores – ou seriam consumidores? –, mas não há risco algum, descoberta, aposta ou contribuição efetiva para o debate literário.
Basta acompanhar as atualizações de dois dos espaços alternativos mais interessantes dedicados à tradução, crítica e divulgação de poesia na internet hoje em dia, para entrarmos realmente no debate. Mais antiga, a franquia online da Modo de Usar, coeditada atualmente por Ricardo Domeneck, Angélica Freitas e Marília Garcia (mas também, em seu início, por Fabiano Calixto) é a plataforma virtual da publicação impressa cujos quatro volumes foram publicados pela Editora Berinjela (há um quinto volume no prelo). Considerada a herdeira mais jovem da revista Inimigo Rumor, a Modo de Usar propõe numa constante aposta na tradução e na divulgação de novas vozes e em novos formatos. O blog da Escamandro, coordenado por Adriano Scandolara, Bernardo Lins Brandão e Guilherme Gontijo Flores (além de Vinicius Ferreira Barth que coeditou o blog até 2013), por sua vez, nasceu em formato online e depois de sua excelente repercussão entre os leitores de poesia publicou dois volumes impressos pela Editora Patuá. Apesar das diferenças estéticas bem evidentes, ambos os espaços se tornaram centros de toda uma geração de leitores que, dentro da pluralidade de vozes, muitas vezes quase enciclopédica que a internet possibilita, encontra ressonâncias e um diálogo rico. Não condicionados pela lógica da mercadoria e nas apostas sem riscos que são regra no grande circuito, essas revistas são aglutinadoras de vozes propondo um novo valor para a formação de leitores baseada na afetividade, sem perder de vista a qualidade da produção divulgada.
Nas margens do circuito, portanto, há uma rica produção poética e crítica acontecendo e aquele que busca tornar-se um leitor de poesia hoje – e talvez sempre tenha sido assim – deve estar atento ao que fica ofuscado pelo processo de domesticação meramente mercadológico da poesia.