O trecho abaixo são os segundo e terceiro pontos da primeira parte do livro História de quem foge e de quem fica, de Elena Ferrante. É a terceira obra da tetralogia napolitana, que projetou a autora mundialmente. O livro será lançado no fim deste mês pelo selo Biblioteca Azul, da Editora Globo. A tradução é de Maurício Santana Dias.
2.
Nunca mais esqueci aquelas três palavras, foi a última coisa que ela me disse: de mim, não. Agora já faz semanas que escrevo num bom ritmo, sem perder tempo relendo o que escrevi. Se Lila ainda estiver viva — fico fantasiando sobre isso enquanto sorvo um café e vejo o rio Pó se chocando contra as pilastras da ponte Principessa Isabella, ela não vai resistir, virá xeretar meu computador, vai ler e, velha lunática que é, ficará furiosa com minha desobediência, vai se intrometer, corrigir, fazer acréscimos, deixando pra lá o desejo de desaparecer. Depois lavo a xícara, vou à escrivaninha, volto a escrever a partir daquela primavera fria em Milão, uma noite passada mais de quarenta anos atrás, na livraria, quando o homem de óculos grossos falou com sarcasmo de mim e de meu livro diante de todos, e eu repliquei de modo confuso, trêmulo. Até que de repente Nino Sarratore se ergueu, quase irreconhecível com a barba inculta, pretíssima, e atacou com dureza quem tinha me atacado. A partir daquele momento, comecei por inteiro a gritar seu nome em silêncio — há quanto tempo não o via, quatro, cinco anos — e, embora estivesse gelada por causa da tensão, me senti queimar.
Assim que Nino terminou sua fala, o homem pediu o direito de réplica com um gesto contido. Era óbvio que ele sentira o golpe, mas eu estava muito envolvida em emoções violentas para entender imediatamente o porquê. Tinha percebido, naturalmente, que a intervenção de Nino deslocara a discussão da literatura para a política, de modo agressivo e quase desrespeitoso. Porém, naquele momento dei pouco peso ao fato, não conseguia me perdoar por não ter sido capaz de enfrentar o debate, de ter sido inconsequente diante de um público muito culto. No entanto eu sabia reagir. No liceu, tinha reagido a uma condição de desvantagem tentando imitar a professora Galiani, apropriando-me de seus tons e de sua linguagem. Em Pisa aquele modelo de mulher não bastara, tive de me haver com gente muito aguerrida. Franco, Pietro, todos os estudantes que se destacavam, e naturalmente os professores prestigiosos da Normal, se expressavam de maneira complexa, escreviam com calculadíssimo artifício, tinham uma habilidade em categorizar, uma nitidez lógica, que Galiani não possuía. Mas eu me exercitara para ser como eles. E frequentemente consegui, tive a impressão de dominar as palavras a ponto de varrer para sempre as incongruências do estar no mundo, a insurgência das emoções e os discursos trôpegos. Em suma, agora eu sabia recorrer a um modo de falar e de escrever que, por meio de um vocabulário selecionadíssimo, um andamento amplo e meditado, a disposição implacável dos argumentos e a clareza formal que jamais podia faltar, visava a aniquilar o interlocutor a ponto de lhe tirar a vontade de rebater. Mas naquela noite as coisas não correram como deveriam. Primeiro Adele e seus amigos, que eu imaginava de finíssimas leituras, depois o homem de óculos grossos acabaram por me intimidar. Eu me tornara a mulherzinha voluntariosa que vinha do bairro, a filha do contínuo com a cadência dialetal do Sul, ela mesma assustada por ter ido parar naquele lugar, recitando o papel da escritora jovem e culta. Por isso perdi confiança e me expressei sem convicção, atabalhoadamente. Sem falar de Nino. Sua aparição me tirara qualquer resto de controle, e a própria qualidade de sua fala em minha defesa confirmara que eu havia perdido subitamente minhas habilidades. Vínhamos de ambientes semelhantes, ambos nos esforçáramos para adquirir aquela linguagem. Entretanto ele não só a tinha usado com naturalidade, direcionando-a facilmente contra seu interlocutor, mas também, nos momentos em que lhe pareceu necessário, até se permitiu inserir programaticamente alguma desordem em seu italiano elegante com uma negligência ostensiva, que logo fez soar antiquada e talvez até um pouco ridícula a impostação professoral do homem de óculos grossos. Consequentemente, quando notei que este último queria retomar a palavra, pensei: deve estar furioso e, se antes falou mal de meu livro, agora vai falar ainda pior, só para humilhar Nino, que o defendeu.
Mas o homem pareceu preocupado com outras coisas: não voltou ao meu romance, não fez mais nenhuma menção a mim. Concentrou-se, em vez disso, em certas fórmulas que Nino usara marginalmente, mas repetindo-as com insistência; coisas do tipo arrogância oligárquica, literatura antiautoritária. Só então compreendi que sua raiva derivava da inflexão política do debate. Não apreciara aquele léxico, e o sublinhou escandindo a voz profunda com um repentino falsete sarcástico (portanto a altivez do conhecimento hoje é definida arrogância, então até a literatura tornou-se antiautoritária?). Depois passou a jogar sutilmente com a palavra autoridade, graças a Deus — disse — uma barreira contra os jovenzinhos incultos que se pronunciam a esmo sobre qualquer coisa, recorrendo às platitudes de sabe-se lá que curso livre da Estatal de Milão. E falou demoradamente sobre esse tema, dirigindo-se ao público, jamais diretamente a Nino ou a mim. No entanto, ao final, concentrou-se primeiro no velho crítico que estava sentado a meu lado e, depois, diretamente em Adele, talvez seu verdadeiro alvo polêmico desde o início. Não tenho nada contra os jovens — disse em síntese —, mas contra os adultos estudados que estão sempre prontos, por interesse, a cavalgar a última moda da estupidez. Neste ponto finalmente se calou e fez menção de sair com abafados mas enérgicos me desculpem, com licença, obrigado.
Os presentes se levantaram para deixá-lo passar, todos hostis, mas respeitosos. Então pude confirmar definitivamente que se tratava de um homem de prestígio, de tanto prestígio que até Adele respondeu ao seu cumprimento raivoso com um cordial: obrigada, até logo. Talvez tenha sido por isso que Nino surpreendeu a todos quando, de modo imperativo e ao mesmo tempo zombeteiro, mostrando saber com quem estava falando, o chamou com o título de professor — professor, aonde vai, não fuja — e então, graças à agilidade das pernas compridas, bloqueou sua passagem, o enfrentou, lhe disse frases naquela sua nova língua que, de onde eu estava, mal pude ouvir e entender, mas que deviam ser como cabos de aço sob o sol forte. O homem escutou imóvel, sem impaciência, depois fez um gesto com a mão que significava afaste-se e rumou para a saída.
3.
Saí da mesa transtornada, demorava a me dar conta de que Nino realmente estava ali, em Milão, naquela sala. Mas lá estava ele, que e de quem fica vinha a meu encontro sorrindo, mas com o passo medido, sem pressa. Apertamos as mãos — a dele estava muito quente, a minha, gelada — e declaramos quanto estávamos contentes por nos revermos depois de tanto tempo. Saber que finalmente o pior da noite havia passado e que agora ele estava diante de mim, real, atenuou meu mau humor, mas não a agitação. Apresentei-o ao crítico que havia generosamente elogiado meu livro, disse a ele que era um amigo de Nápoles, que tínhamos feito o liceu juntos. Mesmo tendo recebido de Nino algumas estocadas, o professor foi gentil, elogiou- -o pelo modo como havia tratado aquele sujeito, falou de Nápoles com simpatia, enfim, dirigiu-se a ele como a um estudante brilhante que devia ser encorajado. Nino explicou que morava em Milão havia anos, se ocupava de geografia econômica, pertencia — e sorriu — à categoria mais miserável da pirâmide acadêmica, ou seja, a dos assistentes. Expressou-se de modo cativante, sem o tom mal-humorado que tinha na adolescência, e me pareceu estar vestindo uma armadura mais leve que aquela que me fascinara no liceu, como se tivesse conseguido desembaraçar-se de pesos excessivos para poder esgrimir com mais rapidez e elegância. Notei com alívio que não usava aliança.